O útero é meu e faço com ele o que eu quiser

Mariana Almeida
Passaparola
14 min readOct 16, 2019

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Michi Staderini

Maio de 1975

O problema do aborto deu lugar a uma série de incompreensões, senão mistificações, sobretudo no que diz respeito às posições feministas. Gostaria de responder a algumas posições publicadas no Espresso no artigo de Adriana Zarri de 23 de fevereiro de 1975 (“E il cattolico disubbidisce ancora”) e no artigo de Daniela Pasti publicado no Mondo em 6 de março de 1975 (“L’utero è mio ma non so più cosa farne”). O slogan feminista sobre o qual a crítica católica, a crítica da burguesia iluminada e a crítica das companheiras de esquerda se concentraram foi “O corpo (o útero) é meu e faço com ele o que eu quiser”.

Essas críticas têm duas origens: uma série de diversos preconceitos, ou, mais gravemente, a recusa de querer aprofundar o sentido intrínseco e articulado deste slogan. No artigo de Zarri, a crítica ao slogan vem de uma posição católica que, apesar de justificar a possibilidade de abortar, afirma a predominância da socialidade sobre a gestão do indivíduo e ao que se refere aos seus bens e ao seu corpo: “Se também eu afirmasse que meu ventre pertence a mim, me sentiria o patrão que diz que meus funcionários e minha fábrica me pertencem”. Aqui fica evidente uma precisa matriz ideológica que, partindo de uma concepção dualista da pessoa (corpo + alma) — dá só à alma o direito-dever de uma completa “liberdade de consciência” — isto é, de uma gestão livre por parte da alma — enquanto a nega ao corpo, cujo governo é dado ao mundo, ao “social”. Se a posição católica possui uma coerência rígida, é mais grave que a posição dualista do indivíduo seja a posição de base de muitos ditos laicos, que explícita ou implicitamente substituem o conceito de alma pelo de “razão” e contrapõem esta última, como realidade metafísica, ao corpo.

Mas além dessas críticas de clara derivação ideológica, o slogan feminista é citato com desprezo por muito companheiros e começa a ser pronunciado com temor por algumas feministas.

É vulgar, dizem — (como a arte que foi publicado no Mondo), mas essa vulgaridade não é explicada, quase como se fosse evidente. Gostaria de tentar interpretar os motivos não ditos dessa acusação. Uma primeira hipótese é que a acusação de vulgaridade diz respeito não tanto ao slogan como instrumento político e de tomada de consciência, mas à palavra “útero” que faz parte dele; palavra que, para muitos dos companheiros, deveria ser usada só cientificamente porque está ligada estritamente ao momento do parto, momento que não faz parte, na educação tradicional, da noção complexa de maternidade, mas evoco somente contrações, dores, sague: dá nojo, em suma; ao contrário de “buceta”, “caralho” etc., que são almente vulgares, mas que o uso cotidiano e sua associação ao prazer sexual, na opinião corrente, acabam por resgatá-las da vulgaridade.

Essa associação entre órgãos femininos e tabus sociais, que neste ponto age como um condicionamento inconsciente demonstra, mais uma vez, que a condição de inferioridade da mulher não é só uma manifestação funcional (ou ainda “organizativa do sistema social”), mas espelha também sua passividade histórica em relação à definição dos modelos culturais, dos quais os tabus são uma manifestação.

Mas não é só esse tipo de preconceito que determina a acusação de vulgaridade, tanto que é verdade que a mesma acusação se volta para versões linguisticamente mais aceitáveis, como “a barriga é minha e eu faço o que quiser” (e no artigo do Espresso o tabu linguístico fez com que usassem a palavra “ventre” usada no Ave-Maria e não pelas feminista). Por trás disso há também um juízo sumário sobre a parcialidade e incorreção política do slogan.

Quem se opõe não quer contestar o princípio que o indivíduo deve ter direito à propriedade do próprio corpo. A afirmação de tal princípio foi, de fato, um objetivo central da luta da burguesia contra o feudalismo e da luta contra a escravidão. Ninguém implicaria com um homem que dissesse “o pênis e meu e faço com ele o que quiser”. Mas enquanto para o homem tal liberdade é reconhecida, ao menos como princípio, mesmo se realizada somente no nível burguês e perdendo força em outros contextos, nos momentos de emergência, como guerras, serviço militar, ou em regimes institucionalmente repressivos, tal liberdade não é dada à mulher, nem nos fatos nem no princípio. A não propriedade do próprio corpo é para a mulher uma realidade cotidiana que a atinge desde o nascimento. Ou na exposição contínua a todos os níveis de seu corpo como objeto sexual; ou todas as voltas em que corre o risco de engravidar sem querer ou sem ter consciência.

A luta contra essas formas de expropriação institucional do corpo da mulher é, deste modo, um “objetivo político” em pleno exercício, e a liberação do aborto como único remédio a uma maternidade não desejada — que para o corpo da mulher equivale a uma lesão física sofrida e acidental, exatamente como seria uma doença — é a primeira expressão desses termos operativos. Mas há alguns companheiros que veem tal luta como incorreta e redutiva da análise da opressão do indivíduo de parte da sociedade capitalista e tendem a reconduzir, por isso, esse objetivo àquele mais vasto da liberação complexa do indivíduo em uma sociedade socialista.

Por essa ótica, consideram o slogan feminista como um slogan permeado de uma concepção individualista: a sociedade socialista seria de fato considerada, em sua finalidade, como uma entidade superior também na propriedade do próprio corpo. Há, nesta posição, o equívoco de fundo de confundir o individualismo burguês com a concepção, esta sim herdade da ideologia das sociedades burguesas, que o “estado é uma entidade acima das partes” e que essa colocação abstrata funciona também, e ainda mais, para uma “sociedade” socialista.

Nenhuma sociedade pode pretender o controle do corpo de todos os indivíduos para seus próprios fins; mas muitos estados, e o nosso, controlam o corpo da mulher e nos tutelam pela função reprodutiva, e o fato de quererem gerir a maternidade acima dos indivíduos mulheres não significa outra coisa que coagir uma parte da sociedade a uma função física que elas não querem desempenhar. Significa impor com a força a própria divisão do mundo, e não a impor ao inimigo de classe (porque isso seria revolucionário), mas aos indivíduos em situação de inferioridade social (e isso é repressão).

Isso deveria ser ainda mais claro para quem entende a sociedade socialista no sentido marxista: uma sociedade na qual a produção está a serviço do homem e não o contrário. Este é um objetivo fundamental do comunismo, e é à luz desse objetivo que podemos criticar (mesmo que com todas as atenuantes históricas) algumas sociedades socialistas. Sempre que se propõe às mulheres de fazer mais filhos para realizar o plano de produção, nasce em nós a suspeita de que esse plano não seja resultado de uma escolha coletiva, de uma real socialização dos meios de produção, mas seja produto de uma “parte” da sociedade. E ainda há uma especificidade. Se no que toca ao uso livro e ao controle do próprio corpo podemos encontrar muitos pontos em comum, o ponto contrário é dizer que o útero não é só um elemento do corpo da mulher, mas também do conceito de maternidade, e, deste modo, diz respeito também a um outro ser humano.

Esclarece-se que não é mais possível, hoje, aceitar um discurso sobre a “ideologia da maternidade” sem redefinir os termos históricos e sem eliminar aqueles componentes que descendem da condição histórica de inferioridade da mulher (não há nada de misterioso e o obscuro que advenha do interior da mulher na sua relação com o feto que se desenvolva, como sustentam Natalia Ginzburg e, com ela, Umberto Eco. Obscuro e misterioso é só aquilo que não se quer iluminar; é certo que a mulher tem infinitos motivos para não querer ter filhos, por exemplo, mas isso não exclui que tais motivos possam ser pontualmente explicados, e que um deles pode ser simplesmente o fato de não ter vontade de ser mãe e quere fazer outras atividades).

A mulher, de fato, não é mantida em condição de inferioridade por UMA ideologia reacionária, mas tudo que diz respeito a ela é facilmente influenciado por uma ideologia reacionária que se encontra em condições de inferioridade. Na base de uma redefinição da maternidade (Esse milagre da natureza! Esse instinto primordial! Esse “sentimento gigantesco”…!) está, antes de tudo, a necessidade de reconduzi-la aos seus componentes materiais e sociais. As condições materiais são: a possibilidade física que a fêmea tem, em todos os mamíferos, de dar vida a um outro ser a partir do próprio corpo; o processo material está, então, no funcionamento fisiológico dos órgãos genitais femininos, no encontro destes com os órgãos genitais masculinos, no desenvolvimento saudável das condições de gestação, na superação da difícil e arriscada fase do parto. Ao fim desse processo se produz, do ponto de vista material, um novo ser humano (no caso da mulher), que, porém, do ponto de vista social, não é ainda um filho. Para se tornar um filho, esse ser deve ser reconhecido e criado pela mãe e pelo pai, não ser abandonado, se não se tornará o centro de relações afetivas, da educação, do encontro entre gerações, faltarão todas as condições necessário para transformar um evento estritamente individual e material (a gestação) em um projeto social (a relação materna). Nessa distinção está a explicação da diferença basilar de mentalidade nos confrontos da maternidade que a mulher pode ter em uma nova condição de liberdade.

Quando de fato as feministas falam de “propriedade do útero”, falam do próprio corpo e das suas funções, e não de maternidade (entendendo a maternidade como explicamos acima).

De fato, não é definível em termos de relação social, nem mais simplesmente de relações humanas, uma parte do corpo que por causas físicas, não desejadas, acidentais ou inconscientes, se desenvolve fora e contra a vontade da mulher; assim como não pertence a nós seres humanas uma situação física acidental ou devida a doenças ou incidentes, mas nos pertence, sim, a escolha de nos proteger. Por isso, uma gravidez não desejada e que não é outra coisa que um mecanismo que se coloca em movimento autonomamente no corpo da mulher — como a digestão depois de comer — quando não é possível de ser prevenida, pode ser corrigida. Essa situação pode ser definida, provocativamente, na atual situação histórica, como “doença do útero” (a menos que não se pense em termos religiosos, que consideram a gravidez como a punição que segue ao pecado sexual) e não é nem maternidade nem paternidade. Isso, pelo contrário, é só quando, depois de uma tomada de consciência social, o feto, simples entidade física, tenha adquirido a conotação social do filho.

.O útero é meu e faço com ele o que eu quiser

Michi Staderini

Maio de 1975

O problema do aborto deu lugar a uma série de incompreensões, senão mistificações, sobretudo no que diz respeito às posições feministas. Gostaria de responder a algumas posições publicadas no Espresso no artigo de Adriana Zarri de 23 de fevereiro de 1975 (“E il cattolico disubbidisce ancora”) e no artigo de Daniela Pasti publicado no Mondo em 6 de março de 1975 (“L’utero è mio ma non so più cosa farne”). O slogan feminista sobre o qual a crítica católica, a crítica da burguesia iluminada e a crítica das companheiras de esquerda se concentraram foi “O corpo (o útero) é meu e faço com ele o que eu quiser”.

Essas críticas têm duas origens: uma série de diversos preconceitos, ou, mais gravemente, a recusa de querer aprofundar o sentido intrínseco e articulado deste slogan. No artigo de Zarri, a crítica ao slogan vem de uma posição católica que, apesar de justificar a possibilidade de abortar, afirma a predominância da socialidade sobre a gestão do indivíduo e ao que se refere aos seus bens e ao seu corpo: “Se também eu afirmasse que meu ventre pertence a mim, me sentiria o patrão que diz que meus funcionários e minha fábrica me pertencem”. Aqui fica evidente uma precisa matriz ideológica que, partindo de uma concepção dualista da pessoa (corpo + alma) — dá só à alma o direito-dever de uma completa “liberdade de consciência” — isto é, de uma gestão livre por parte da alma — enquanto a nega ao corpo, cujo governo é dado ao mundo, ao “social”. Se a posição católica possui uma coerência rígida, é mais grave que a posição dualista do indivíduo seja a posição de base de muitos ditos laicos, que explícita ou implicitamente substituem o conceito de alma pelo de “razão” e contrapõem esta última, como realidade metafísica, ao corpo.

Mas além dessas críticas de clara derivação ideológica, o slogan feminista é citato com desprezo por muito companheiros e começa a ser pronunciado com temor por algumas feministas.

É vulgar, dizem — (como a arte que foi publicado no Mondo), mas essa vulgaridade não é explicada, quase como se fosse evidente. Gostaria de tentar interpretar os motivos não ditos dessa acusação. Uma primeira hipótese é que a acusação de vulgaridade diz respeito não tanto ao slogan como instrumento político e de tomada de consciência, mas à palavra “útero” que faz parte dele; palavra que, para muitos dos companheiros, deveria ser usada só cientificamente porque está ligada estritamente ao momento do parto, momento que não faz parte, na educação tradicional, da noção complexa de maternidade, mas evoco somente contrações, dores, sague: dá nojo, em suma; ao contrário de “buceta”, “caralho” etc., que são almente vulgares, mas que o uso cotidiano e sua associação ao prazer sexual, na opinião corrente, acabam por resgatá-las da vulgaridade.

Essa associação entre órgãos femininos e tabus sociais, que neste ponto age como um condicionamento inconsciente demonstra, mais uma vez, que a condição de inferioridade da mulher não é só uma manifestação funcional (ou ainda “organizativa do sistema social”), mas espelha também sua passividade histórica em relação à definição dos modelos culturais, dos quais os tabus são uma manifestação.

Mas não é só esse tipo de preconceito que determina a acusação de vulgaridade, tanto que é verdade que a mesma acusação se volta para versões linguisticamente mais aceitáveis, como “a barriga é minha e eu faço o que quiser” (e no artigo do Espresso o tabu linguístico fez com que usassem a palavra “ventre” usada no Ave-Maria e não pelas feminista). Por trás disso há também um juízo sumário sobre a parcialidade e incorreção política do slogan.

Quem se opõe não quer contestar o princípio que o indivíduo deve ter direito à propriedade do próprio corpo. A afirmação de tal princípio foi, de fato, um objetivo central da luta da burguesia contra o feudalismo e da luta contra a escravidão. Ninguém implicaria com um homem que dissesse “o pênis e meu e faço com ele o que quiser”. Mas enquanto para o homem tal liberdade é reconhecida, ao menos como princípio, mesmo se realizada somente no nível burguês e perdendo força em outros contextos, nos momentos de emergência, como guerras, serviço militar, ou em regimes institucionalmente repressivos, tal liberdade não é dada à mulher, nem nos fatos nem no princípio. A não propriedade do próprio corpo é para a mulher uma realidade cotidiana que a atinge desde o nascimento. Ou na exposição contínua a todos os níveis de seu corpo como objeto sexual; ou todas as voltas em que corre o risco de engravidar sem querer ou sem ter consciência.

A luta contra essas formas de expropriação institucional do corpo da mulher é, deste modo, um “objetivo político” em pleno exercício, e a liberação do aborto como único remédio a uma maternidade não desejada — que para o corpo da mulher equivale a uma lesão física sofrida e acidental, exatamente como seria uma doença — é a primeira expressão desses termos operativos. Mas há alguns companheiros que veem tal luta como incorreta e redutiva da análise da opressão do indivíduo de parte da sociedade capitalista e tendem a reconduzir, por isso, esse objetivo àquele mais vasto da liberação complexa do indivíduo em uma sociedade socialista.

Por essa ótica, consideram o slogan feminista como um slogan permeado de uma concepção individualista: a sociedade socialista seria de fato considerada, em sua finalidade, como uma entidade superior também na propriedade do próprio corpo. Há, nesta posição, o equívoco de fundo de confundir o individualismo burguês com a concepção, esta sim herdade da ideologia das sociedades burguesas, que o “estado é uma entidade acima das partes” e que essa colocação abstrata funciona também, e ainda mais, para uma “sociedade” socialista.

Nenhuma sociedade pode pretender o controle do corpo de todos os indivíduos para seus próprios fins; mas muitos estados, e o nosso, controlam o corpo da mulher e nos tutelam pela função reprodutiva, e o fato de quererem gerir a maternidade acima dos indivíduos mulheres não significa outra coisa que coagir uma parte da sociedade a uma função física que elas não querem desempenhar. Significa impor com a força a própria divisão do mundo, e não a impor ao inimigo de classe (porque isso seria revolucionário), mas aos indivíduos em situação de inferioridade social (e isso é repressão).

Isso deveria ser ainda mais claro para quem entende a sociedade socialista no sentido marxista: uma sociedade na qual a produção está a serviço do homem e não o contrário. Este é um objetivo fundamental do comunismo, e é à luz desse objetivo que podemos criticar (mesmo que com todas as atenuantes históricas) algumas sociedades socialistas. Sempre que se propõe às mulheres de fazer mais filhos para realizar o plano de produção, nasce em nós a suspeita de que esse plano não seja resultado de uma escolha coletiva, de uma real socialização dos meios de produção, mas seja produto de uma “parte” da sociedade. E ainda há uma especificidade. Se no que toca ao uso livro e ao controle do próprio corpo podemos encontrar muitos pontos em comum, o ponto contrário é dizer que o útero não é só um elemento do corpo da mulher, mas também do conceito de maternidade, e, deste modo, diz respeito também a um outro ser humano.

Esclarece-se que não é mais possível, hoje, aceitar um discurso sobre a “ideologia da maternidade” sem redefinir os termos históricos e sem eliminar aqueles componentes que descendem da condição histórica de inferioridade da mulher (não há nada de misterioso e o obscuro que advenha do interior da mulher na sua relação com o feto que se desenvolva, como sustentam Natalia Ginzburg e, com ela, Umberto Eco. Obscuro e misterioso é só aquilo que não se quer iluminar; é certo que a mulher tem infinitos motivos para não querer ter filhos, por exemplo, mas isso não exclui que tais motivos possam ser pontualmente explicados, e que um deles pode ser simplesmente o fato de não ter vontade de ser mãe e quere fazer outras atividades).

A mulher, de fato, não é mantida em condição de inferioridade por UMA ideologia reacionária, mas tudo que diz respeito a ela é facilmente influenciado por uma ideologia reacionária que se encontra em condições de inferioridade. Na base de uma redefinição da maternidade (Esse milagre da natureza! Esse instinto primordial! Esse “sentimento gigantesco”…!) está, antes de tudo, a necessidade de reconduzi-la aos seus componentes materiais e sociais. As condições materiais são: a possibilidade física que a fêmea tem, em todos os mamíferos, de dar vida a um outro ser a partir do próprio corpo; o processo material está, então, no funcionamento fisiológico dos órgãos genitais femininos, no encontro destes com os órgãos genitais masculinos, no desenvolvimento saudável das condições de gestação, na superação da difícil e arriscada fase do parto. Ao fim desse processo se produz, do ponto de vista material, um novo ser humano (no caso da mulher), que, porém, do ponto de vista social, não é ainda um filho. Para se tornar um filho, esse ser deve ser reconhecido e criado pela mãe e pelo pai, não ser abandonado, se não se tornará o centro de relações afetivas, da educação, do encontro entre gerações, faltarão todas as condições necessário para transformar um evento estritamente individual e material (a gestação) em um projeto social (a relação materna). Nessa distinção está a explicação da diferença basilar de mentalidade nos confrontos da maternidade que a mulher pode ter em uma nova condição de liberdade.

Quando de fato as feministas falam de “propriedade do útero”, falam do próprio corpo e das suas funções, e não de maternidade (entendendo a maternidade como explicamos acima).

De fato, não é definível em termos de relação social, nem mais simplesmente de relações humanas, uma parte do corpo que por causas físicas, não desejadas, acidentais ou inconscientes, se desenvolve fora e contra a vontade da mulher; assim como não pertence a nós seres humanas uma situação física acidental ou devida a doenças ou incidentes, mas nos pertence, sim, a escolha de nos proteger. Por isso, uma gravidez não desejada e que não é outra coisa que um mecanismo que se coloca em movimento autonomamente no corpo da mulher — como a digestão depois de comer — quando não é possível de ser prevenida, pode ser corrigida. Essa situação pode ser definida, provocativamente, na atual situação histórica, como “doença do útero” (a menos que não se pense em termos religiosos, que consideram a gravidez como a punição que segue ao pecado sexual) e não é nem maternidade nem paternidade. Isso, pelo contrário, é só quando, depois de uma tomada de consciência social, o feto, simples entidade física, tenha adquirido a conotação social do filho.

Traduzido do italiano: http://efferivistafemminista.it/2015/01/lutero-e-mio-e-lo-gestisco-io/

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes