O trabalho que você faz, a pessoa que você é

O prazer de agradar aos meus pais foi profundo. Eu não era como as crianças dos contos de fadas: tínhamos bocas para alimentar.

Mariana Almeida
Passaparola
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4 min readAug 6, 2019

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Por Tony Morrison

29 de maio de 2017

Tudo o que eu tinha que fazer por dois dólares era limpar a casa Dela por algumas horas depois da escola. Era uma bela casa, também, com o sofá e cadeiras cobertos de plástico, carpete azul e branco, fogão branco esmaltado, uma máquina de lavar e secar — coisas comuns no bairro Dela, e que faltavam no meu. No meio da guerra, Ela tinha manteiga, açúcar, bifes, meias-finas.

Eu sabia como esfregar o chão de joelhos e como lavar roupas no tanque, mas eu nunca tinha visto uma enceradeira Hoover ou um ferro de passar roupas que não fosse aquecido com brasas.

Parte do meu orgulho em trabalhar para Ela era ganhar dinheiro que eu podia gastar: no cinema, com doces, raquetes de tênis, jogos, sorvete. Mas grande parte do meu orgulho estava baseado em dar parte dos meus ganhos à minha mãe, o que significava que parte deles eram usados para coisas de verdade — pagar uma apólice de seguro ou a dívida do leiteiro e do sorveteiro. O prazer de agradar aos meus pais era profundo. Eu não era como as crianças dos contos de fadas: tínhamos bocas para alimentar, comportamentos a serem corrigidos, problemas tão severos que tiveram que ser abandonados na floresta. Eu tinha um status que só fazer os trabalhos domésticos em minha casa não forneciam — eu ganhei um sorriso calmo, um assentimento de um adulto. Confirmações de que eu já era adulta, não mais criança.

Naquela época, nos anos 1940, crianças não eram apenas amadas ou queridas; elas eram necessárias. Podiam ganhar dinheiro; podiam cuidar de crianças menores, de babá; podiam trabalhar no campo, cuidar do gado, ser mensageiras, e muito mais. Suspeito que crianças hoje em dia não são necessárias como eram antes. São amadas, cuidadas, protegidas, ajudadas. Tudo bem, mas ainda…

Aos poucos, fui ficando melhor em limpar a casa Dela — boa o bastante para acumular mais tarefas, muitas mais. Me mandaram carregar estantes de livros escada acima e, uma vez, mover um piano de um quarto ao outro. Eu caí carregando as estantes. E depois de empurrar o piano meus braços e pernas doíam demais. Eu quis recusar, ou ao menos reclamar, mas tinha medo de que Ela me demitiria, e eu perderia a liberdade que o dinheiro me dava, bem como status que tinha conquistado em casa — mesmo que as duas coisas estivessem lentamente enfraquecendo. Ela começou a me oferecer suas roupas, por um preço. Impressionada por essas coisas usadas, que pareciam, aos olhos de uma garotinha que só tinha dois vestidos para ir à escola, simplesmente belíssimas, acabei comprando algumas coisas. Até que minha mãe me perguntou se eu realmente queria trabalhar para comprar coisas rejeitadas. Então aprendi a dizer “Não, obrigada” para o suéter desbotado oferecido por um quarto do pagamento da semana.

Ainda, tive problema em invocar coragem para discutir ou objetar diante das crescentes demandas que Ela fazia. E sabia que se contasse à minha mãe o quanto estava infeliz ela me diria para sair. Então, um dia, sozinha na cozinha com meu pai, deixei escapar algumas reclamações sobre o trabalho. Dei detalhes, exemplos do que me angustiava, e ele me ouviu atentamente, e não vi simpatia em seus olhos. Nada de “Oh, pobrezinha”. Talvez o que ele tenha entendido era que eu queria alguma solução para o trabalho, não uma escapatória. Em todo caso, ele pousou a xícara de café na mesa e disse “Ouça. Você não mora lá. Você mora aqui. Com os seus. Vá ao trabalho. Ganhe seu dinheiro. E volte para casa.”

Isso foi o que ele disse. Isto foi o que eu ouvi:

1. Seja o que for seu trabalho, faça-o bem — não para o chefe, mas para si mesmo.

2. Você faz o trabalho; ele não faz você.

3. Sua vida real é conosco, sua família.

4. Você não é o trabalho que faz; você é a pessoa que é.

Trabalhei para todo tipo de pessoa desde então, gênios e idiotas, perspicazes e entediantes, de bom coração ou limitados. Tive vários tipos de trabalho, mas desde essa conversa com meu pai nunca considerei que meu nível no trabalho fosse a minha medida, e nunca coloquei a segurança de um trabalho acima dos valores que aprendi em casa.

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes