Paul B. Preciado: “O sujeito do feminismo é o projeto de transformação radical da sociedade em seu conjunto”

Paul B. Preciado é uma das referências da teoria queer e dos estudos de gênero: “A estratégia absoluta é a abolição da diferença sexual”

Mariana Almeida
Passaparola
Published in
9 min readOct 14, 2019

--

“O que fizemos foi estruturar os movimentos com políticas de identidade e acabamos nos tornando mais mulheres, mais lésbicas, mais gays — não no sentido quantitativo –, mas não somos mais livres”, diz

“Não há necessidade de assinalar um gênero no momento do nascimento. Poderíamos simplesmente dizer ‘um corpo humano nasceu no mundo’ da mesma maneira que ninguém pensa muito quando dizem que há um corpo cristão”, argumenta

Marta Borraz / Ana Requena Aguilar

11/10/2019–22:09h

Meia hora antes de que Paul B. Preciado (Burgos, 1970) se apresente na livraria La Central de Madrid Un Apartamento en Urano (Anagrama), a sala já está cheia. Paul — antes Beatriz –, um dos filósofos mais influentes do mundo, embaixador da arte e referência da teoria queer e dos estudos de gênero, desenvolve no livro um conjunto de crônicas publicadas no periódico francês Libération que revelam a parte mais pessoal desse autodenominado “dissidente do sistema de sexo-gênero”.

Se Virginia Woolf reivindicou seu próprio quarto em 1929, Preciado faz o mesmo declarando-se “uranista” e imaginando a vida em um planeta alienígena às imposições sexuais, de gênero e de raça.

Você diz em Um Apartamento em Urano: “Não sou homem, não sou mulher, não sou heterossexual nem bissexual”. É um gênero utópico, como afirma Virginie Despentes no prólogo?

Sim, mas isso é real. Faz referência às inscrições jurídicas e médicas, que no fundo são abstrações, ou seja, não existem. São categorias que foram naturalizadas pela estrutura epistemológica dos séculos XIX e XX sobretudo, mas não têm conteúdo empírico. O oxigênio tem, por exemplo, a homossexualidade não. Existe a cultura gay, mas não a homossexualidade. Da mesma maneira que não existe raça, mas o racismo, sim.

Creio que a tarefa do filósofo, do ativista e do artista é desvelar esses processos de construção política que levaram à cristalização de certas noções que hoje entendemos como naturais. Por exemplo, o gênero ou a homossexualidade. Se fossem naturais, não poderíamos nos opor a elas, da mesma maneira que não podemos nos opor à gravidade. Isso é colocar em questão não só os discursos religiosos que foram fundantes para muitas das tecnologias do corpo e da sexualidade, mas também colocar em questão o discurso científico.

O corpo trans, você escreveu, “põe em xeque noções como a nação, os tribunais, a família, os centros de internação ou a psiquiatria”. De que maneira o trans é um ato político?

O trans sempre é um ato político. Em uma sociedade em que existe uma epistemologia binária e na qual nem o discurso médico nem o jurídico contemplam outro tipo de gênero que não seja masculino ou feminino, afirmar-se trans é situar-se no lugar da patologia e submeter-se a uma terapia de gênero que permita atravessar essa fronteira e ir a outro lugar. Se você se opõe a esse diagnóstico médico patologizante, se trata sempre e em todo caso de uma posição política. É tão político como o herético que, no século XV, se opunha à existência de deus. Essa epistemologia binária é a epistemologia da diferença sexual que, de todas as formas, está morrendo e nos últimos 50 anos em uma crise extraordinária.

Em que sentido?

A partir dos anos 40 o próprio discurso médico começa a se dar conta de que há uma multiplicidade de corpos que não podem ser reduzidos ao binário. Então, para dar conta da multiplicidade, inventam a noção de intersexualidade e decidem não mudar a epistemologia sexual, somente intervir fisicamente nos corpos e modificá-los, levando a cabo operações que são basicamente uma castração genital. Se fala sempre da mutilação genital nos países árabes sem ser preciso. A mutilação se produz constantemente nos hospitais do Ocidente em benefício da manutenção de um sistema abstrato e político que é o da diferença sexual.

No que consiste essa multiplicidade?

A realidade é que existe uma multiplicidade de seres e não de sexos. Há uma multiplicidade irredutível, cromossômica, hormonal, morfológica ou genética, que, de nenhuma maneira, pode ser reduzida ao binário. A classe médica sabe disso e, por isso, inventa a noção de gênero. O sexo era algo fixo, mas frente a isso começam a tentar implantar nele uma noção maleável.

A partir daí, plantam uma bomba em seu próprio aparato epistemológico. Agora, há uma crítica muito profundo vinda dos movimentos sociais e da própria classe médica. Os cientistas mais moderados apostam em três, quatro ou cinco sexos. Outros dizem que não há necessidade de assinalar um gênero no momento do nascimento. Poderíamos simplesmente dizer ‘um corpo humano nasceu no mundo’ da mesma maneira que ninguém pensa muito quando dizem que há um corpo cristão. No século XV, sim. A epistemologia é histórica, cultural, construída e, ademais, produz violência e legitima um sistema de opressão. Aqui é onde, não é que me oponha às feministas, mas, sim, creio que não se pode seguir com uma estratégia da política da diferença.

E qual deveria ser então a estratégia?

A estratégia absoluta e real é simplesmente a abolição da epistemologia da diferença sexual. E depois podemos começar a conversar. Da mesma maneira que a estratégia dos movimentos gays e lésbicos não pode ser o matrimônio homossexual ou a adoção. A estratégia é a abolição do matrimônio e da filiação única. É aí que reside a estratégia radical.

Há autoridade do feminismo na Espanha que descreditam a teoria queer ou que não a consideram feminista e, inclusive, apontam no que e como interfere na luta feminista. O que você acha disso?

Penso que nos últimos 50 anos o feminismo foi feito por lésbicas que deram sua vida pela luta — eu ia dizer demos, no sentido de que fui lésbica por muitos anos. Sigo considerando-se mulher, lésbica, heterossexual, homossexual… Tudo e nada ao mesmo tempo. Os coletivos lésbicos lutaram, por exemplo, pelo direito reprodutivo das mulheres heterossexuais. Não vejo de que maneira o movimento feminista de agora poderia ter explodido sem os anos de luta contra a AIDS, sem o feminismo negro, o feminismo das políticas transsexuais ou o feminismo das trabalhadoras sexuais.

O problema é que ocorre sempre o mesmo. As lutas se fazem desde a base e logo chegam às camadas mais altas. Agora é igual e de repente vemos um feminismo branco, heterossexual, que quer outra vez nos doutrinar com uma ideia de mulher naturalizada. No entanto, estamos lutando precisamente contra este estereótipo.

Quais são as consequências?

Este é um estereótipo que produz violência e que legitima a opressão. Não tenho problema nenhuma com garotas ultrafemininas ou ultra-héteros, mas definidas com radicalidade. Uma garota que exige o direito a poder casar-se, ter filhos, seguir em casa e ter um pouco mais de liberdade, para mim, representa um feminismo liberal de direita que não me interessa. Da mesma maneira não vou fazer um pacto com o Partido Popular para definir o que é a luta feminista.

No fim, o que fizemos foi estruturas os movimentos com políticas de identidade e acabamos sendo mais mulheres, mais lésbicas, mais gays — não no sentido quantitativo –, mas não somos mais livres. A questão é voltar a introduzir práticas de invenção da liberdade dentro dos coletivos. O resto não importa. As feministas se enfadam com a teoria queer? Não vejo que problema podem ter. Eu, o que peço ao feminismo simplesmente é radicalidade em suas propostas: abolição da atribuição da diferença sexual no nascimento e despatriarcalização radical de todas as instituições e de todas as administrações. Veremos, se começarmos com isso, o que fica da estrutura patriarcal social que conhecemos.

Qual é o sujeito do feminismo?

Não há sujeito do feminismo. O sujeito do feminismo é um projeto de transformação radial da sociedade em seu conjunto. Esse é o verdadeiro sujeito: o projeto de despatriarcalização, de descolonização e radicalmente ecológico. Quando esse sujeito se cristaliza e se converte na mulher, temos um problema. Porque além disso se converte em um sujeito exclusivo e excludente.

Então não temos que identificar o feminismo com um movimento e uma luta essencialmente de mulheres?

Não. Apesar de ser muito importante dar visibilidade aos coletivos de mulheres menos visibilizados e que são objetos de maiores técnicas de opressão. Mas isso é outra coisa, não me dá a impressão que seja o que está acontecendo com outras partes do feminismo. Eu, evidentemente, não posso nem quero afirmar que não poderemos dizer nunca mais “mulher”, em absoluto. A questão é qual é o sujeito mulher que essa luta está dando visibilidade. Se é o sujeito mais oprimido ou a aliança dos sujeitos oprimidos para além da identidade.

É dizer, para mim um homem gay não pode ser sujeito do feminismo. E o é, precisamente pelo altíssimo índice de feminização, no sentido em que há técnicas de opressão que são aplicadas ao corpo gay. Não me interessa um feminismo que passa 90% do tempo pensando em qual é esse sujeito. Essa não é a pergunta, a pergunta é quais são as práticas de liberdade e como podemos nos opor criticamente às tecnologias da violência que nos oprimem.

Senão, entramos, de alguma maneira, em uma nova taxonomia dentro do feminismo e em uma espécie de polícia interna. Isso não ocorre só no feminismo, mas também no movimento trans, com o bom e o mau transexual. Ao fim, terminamos em uma obsessão identitária. O que proponho é sair dessa identidade e começar a estabelecer alianças críticas.

Desde que você habita o mundo dos homens “como se fosse homem”, você comprovou que a classe masculina e heterossexual “não abandonará seus privilégios porque enviamos a eles tweets ou demos alguns gritos”. O que encontrou deste outro lado?

É pior do que eu pensava. Vivi minha vida toda em um ambiente totalmente feminista e queer, e transformar-me em homem — entre aspas — ou ter a aparência que tenho agora e sair no espaço público para mim é um choque.

Por exemplo?

Por exemplo, o alto grau de misoginia. Os homens — me refiro majoritariamente aos homens hétero — muitas vezes falam das mulheres como se estivessem falando de uma subespécie, uma coisa muito estranha que representa duas modalidades fantasmáticas em seu pensamento: a mãe e a puta. Continua olhando a mulher, ou o que o homem imagina que é a mulher, como um espaço de reprodução ou como objeto do seu próprio desejo sexual. Em algumas conversas, tenho que dizer “faz anos, eu fui esse personagem do qual você fala que supostamente é um ser estranho”. E não. Esse ser é exatamente igual a vocês, não tem nenhuma diferença exceto que é objeto de todo um processo de opressão histórica de séculos.

Há um processo mobilizador em torno do feminismo que estourou com força nos últimos dois anos na Espanha, mas também em outros lugares do mundo. Como você o vê?

Para quem vem trabalhando no feminismo por toda a vida, começamos quando dizer “feminista” era um insulto, e ver agora como estão as ruas e o que ocorre no 8M é o máximo. É uma agitação incrível. Creio que estamos vivendo uma revolução. Quando falo dos tweets, me refiro ao fato de sermos conscientes e que tenhamos uma estratégia coletiva de luta porque isso é muito profundo. É preciso transformar todas as instituições, desde a escola, o espaço doméstico, os espaços de reprodução. É um projeto de transformação cultural e política, provavelmente mais amplo e profundo que se pode imaginar junto com o desmantelamento das taxonomias raciais que seguem estruturando todas as políticas de migração.

Qual seria seu cartaz no 8M?

Por exemplo, uma que vi em Paris, que levava uma adolescente de 12 anos e achei muito alegre: “Salvemos o clitóris do planeta!”. Me pareceu muito interessante começar a pensar de outra maneira a luta ecológica e que supõe colocar esses vetores em relação, o ecológico e o feminista. Fiz há pouca outra sobre promover o sexo anal e o dildo como estratégia para salvar o planeta. E é: Paremos com a reprodução. É importante fazer uma crítica da produção e da reprodução. Por isso me oponho também a essas políticas reprodutivas que tentam culminar em um processo de normalização de toda gay e lésbica. Por aí iriam meus cartazes.

Traduzido do espanhol e disponível em: https://www.eldiario.es/sociedad/Entrevista-Paul-Preciado_0_951555075.html. Acesso em 10 out., 2019.

--

--

Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes