Retrato de Giulia Beccaria, Maria Cosway, 1802. Essa obra se encontra na Biblioteca Nacional Braidense de Milão.

Vida e amores de Giulia Beccaria, mulher antiga e muito moderna

Mariana Almeida
Passaparola
4 min readMar 8, 2018

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“Sempre me interessei pelo papel das mulheres na História, pelas pessoas ‘verdadeiras’ que ficam na obscuridade”, conta Marta Boneschi, tradutora jornalista, historiadora milanesa. Entre suas obras: Poveri, ma belli e La grande illusione, sobre a Itália do pós-guerra e do boom econômico, Santa Pacienza, vidas de heroínas obscuras do século XVIII, Senso e Voci di casa, sobre a evolução dos costumes sexuais e da família no último século.

Seu novo trabalho, Quel che il cuore sapeva (Mondadori), é uma biografia de uma grande milanesa: Giulia Beccaria (1762–1841), filha de Cesare Beccaria e mãe de Alessandro Manzoni. Como tropeçou em Giulia?

“Estava ocupada com Metilde Viscontini Dembowski, o amor mais importante de Stendhal e sua musa inspiradora, ativista na sociedade secreta feminina das Jardineiras, afiliada à Carboneria. Mulheres incríveis, que diferentemente de seus companheiros de luta homens não falam quando a polícia austríaca as interroga, escondem cartas, recusam as buscas e perseguições, fazem frente aos interrogadores. Alargando as leitura sobre a época da Restauração, caíram em minhas mãos três cartas de Giulia Beccaria, e não as larguei mais”.

Qual foi a centelha dessa paixão?

“Gosto de estudar os aspectos da História nos quais se vê uma mudança. Giulia cresça na Milão das luzes e envelhece na Milão burocrática e estagnada da repressão austríaca. De menina respira a turbina criativa dos Beccaria e dos Verri, da Accademia dei Pugli e da revista Il caffè. Quando começa a evoluir intelectualmente, seu pai já está famoso por ter escrito “Dos delitos e das penas” contra a pena de morte em uma cidade que condenava atrozmente uma pessoa por semana. Pietro Verri, homem sábio e amigo da casa, se torna para ela um afetuoso tio. É o momento dinâmico de Maria Teresa da Áustria, que pavimenta e ilumina as estrada, investe na música e nas artes, constrói palácios e a biblioteca Braidense, institui o primeiro serviço de bombeiros. Giulia, jovem, capta o novo, simpatiza com a Revolução Francesa, chora de emoção na praça quando Milão celebra o nascimento da República Cisalpina.

Sua vida privada é controversa.

“Depois de pelo menos cem anos depois de sua morte os estudiosos a consideraram uma mulher ‘de costumes liberais’ e ‘mãe desnaturada’. A verdade é que era uma mulher do século XVIII que nasceu no XVI. Escolhe um amante, Giovanni Verri, irmão mais novo de Pietro. Se separa do velho marido, Pietro Manzoni, ao qual tinha sido imposta vinte anos antes. Encontra um companheiro verdadeiro no gentil e riquíssimo Carlo Imbonati. Enfim, vive os últimos 36 anos de sua vida com o filho Alessandro, a nora Enrichetta Blondel e seus oito filhos, pilar de uma família renovada, unida pelos afetos e não pela conveniência. No fundo, é a ela que devemos I promessi sposi [Os noivos].

Em que sentido?

Nasceu quando Giulia ainda era casada com Manzoni mas estava com Giovanni Verri, foi deixado em um colégio quando tinha cinco anos. Com 18, sai e vai viver com o velho Manzoni, um pouco provinciano: aposta em jogos de azar, se esconde atrás dos garçons e experimenta um pouco de poesia neoclássica. Seu ídolo é o poeta Vincenzo Monti, que fugiu em 1799 para Paris seguindo a invasão dos austro-russos contra os franceses. Uma invocação à qual se adiciona o convite de Imbonati, já doente: quatro meses depois de sua morte, Alessandro se reencontra com sua mãe na cidade em que pode respirar as ideias liberais, o grande Romantismo e a literatura europeia.

Como se comporta, nesse momento, Giulia?

Como todas as suas contemporâneas milanesas de boa família não estudou, mas é sensível e receptiva, sente que a cultura pode mudar o mundo, percebe no filho de vinte anos o estofo dos grandes escritores e o apoia, destinando o imenso patrimônio deixado por Imbonati à sua felicidade criativa. Investe em cultura, diríamos hoje. Voltam a Milão, na casa da rua Morone, onde um grupo de amigos elabora as ideias do Romantismo, surgido, um pouco atrasado, também aqui, e onde as meninas Manzoni estudam, em vez de irem para o convento aos 12 anos, como deveria ter feito a avó Giulia.

Quando os preconceitos sobre a história de Giulia caíram por terra?

Foi Pietro Citati que trinta anos atrás percebeu seu anticonformismo, mesmo que não dispusesse dos documentos achados em seguida, o primeiro de todos a carta escrita por Giuseppe Gorani a Giovanni Verri, que confirma a verdadeira paternidade de Alessandro. Uma carta que viajou, depois da morte de Giulia, do palácio milanês Casati Stampa à vila de Arcore, à Biblioteca Ambrosiana, onde poucos anos antes foi encontrada por Piero Campolunghi depois de pesquisas persistentes: estava entre as cartas Beccaria, mas escondida em um envelope com um nome diferente por alguém que não teve a coragem de destruí-la.

Mistério fascinante de arquivo…

Para escrever a biografia de Giulia consultei o arquivo Pietro Verri, que pertence à Fundação Mattioli, as cartas Beccaria na Ambrosiana, a Sala Manzoni na Braidense, a casa dos Manzoni… minas de escritos inéditos, de segredos e descobertas, mas também de retratos e paisagens com os quais se poderia preparar uma mostra sobre Giulia Beccaria e sua Milão, como aquelas dedicadas a Parini, a Cattaneo… espero que consigamos patrocínio.

Entrevista traduzida do La Repubblica: http://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/2004/12/02/vita-amori-di-giulia-beccaria-donna-antica.html?refresh_ce

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes