“Você não sabe de nada.” E outros conselhos de escrita de Toni Morrison

Não quero saber do seu amor verdadeiro e da sua mãe e do seu pai e dos seus amigos.

Mariana Almeida
Passaparola

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Por Emily Temple, 06/08/2019

Não consigo pensar em outro escritor que seja tão unanimemente amado quanto Toni Morrison. Sua obra é magnífica, seu legado é incontestável, e ela revela seu brilhantismo em todas as oportunidades. Ela também deu aula durante ano em Princeton e acho que é tranquilo dizer que ela sabe uma coisa ou duas sobre estimular mentes jovens. Então, usando o frágil argumento do aniversário dela — faz 88 na segunda, que também é o Dia do Presidente (isso é um sinal?) — eu vasculhei em suas entrevistas e discursos o que ela pensa sobre a escrita. Destaquei suas palavras de sabedoria abaixo.

Escreva algo que você quer ler.

Escrevi meu primeiro livro porque queria lê-lo. Eu achava que aquele tipo de livro, com aquele assunto — garotas negras que não são levadas a sério, as mais vulneráveis, as mais indescritíveis — nunca tinham existido e sido tratadas seriamente na literatura. Ninguém nunca escreveu sobre elas a não ser como acessórios. Como não consegui achar um livro que fazia isso, eu pensei, “Bom, vou escrevê-lo e depois lê-lo.” Foi a leitura que me impulsionar a escrever aquelas coisas.

– de uma entrevista para a NEA Arts Magazine em 2014

Descubra como seu trabalho funciona melhor.

Digo aos meus alunos que uma das coisas mais importantes que eles têm de saber é quando eles estão em seu auge, criativamente falando. Eles precisam se perguntar “Qual é o espaço ideal para isso? Há música? Há silêncio? Há caos ou tranquilidade lá for a? O que preciso para liberar minha imaginação?”

– de uma entrevista para Elissa Schappell no The Paris Review em 1993

Use o mundo ao seu redor.

Tudo o que eu vejo e faço, o clima e a água, os edifícios… tudo é uma vantagem quando escrevo. É como um menu, ou uma Caixa de ferramentas gigante, e eu posso tirar de lá de dentro o que eu quero. Quando não estou escrevendo, ou melhor, quando não tenho nenhuma ideia para um livro, então eu vejo caos, confusão, desordem.

– de uma entrevista para Pam Houston de O Magazine em 2009

Deixe as personagens falarem por si mesmas.

Tento muito, mesmo se for uma personagem menor, ouvir suas falas memoráveis. Elas realmente flutuam sobre nossas cabeças quando as estamos escrevendo, como fantasmas ou pessoas que existem. Não as descrevo muito, só desenho linhas gerais. Você não sabe exatamente o quanto são altas, porque não quero forçar o leitor a ver o que eu vejo. É como ouvir o rádio quando se é criança. Eu tinha que fazer um esforço, como ouvinte, e inserir todos os detalhes sobre o que ouvia. Diziam “azul”, e eu tinha que descobrir de que tom. Ou se dissessem especificamente de que tom era, eu tinha que tentar ver. É uma experiência de participação.

– de uma entrevista para a NEA Arts Magazine em 2014

Esteja aberto.

Estar aberto — e não forçar isso, cavar isso, não construir artificialmente, mas estar aberto à situação e confiar que aquilo que você não sabe vai estar disponível para você. Isso é maior do que sua consciência explícita ou sua inteligência ou seus dons; está lá fora, em algum lugar, e você tem que deixar isso entrar.

– de uma entrevista para Pam Houston de O Magazine em 2009

Não leia seu trabalho em voz alta até que esteja terminado.

Não confia na performance. Poderia ter uma performance que me fizesse achar que eu consegui quando não era tudo isso. A dificuldade para mim, na escrita — entre outras dificuldades — é escrever em uma linguagem que funcione tranquilamente em uma página para um leitor que não ouve nada. Para isso, é necessário trabalhar cuidadosamente no que está entre as palavras, nas entrelinhas. O que não está dito. Que é a medida, que é o ritmo e por aí adiante. Então, é o que você não escreve que muitas vezes dá poder à sua escrita.

– de uma entrevista para Elissa Schappell no The Paris Review em 1993

Não reclame.

Acho que alguns aspectos da escrita podem ser ensinados. Obviamente você não pode esperar ensinar visão ou talento. Mas você pode ajudar confortando… [Confiança] Não posso fazer muito a respeito disso. Sou até cruel em relação a isso. Só digo a eles: Você tem de fazer, não quero ouvir lamentos sobre como está sendo difícil. Eu não não tolero nada disso porque a maioria das pessoas que escreve ou escreveu estava passando por situações duríssimas, eu mesma sou uma delas. Então ficar se lamentando e se perguntando como eles conseguiram é ridículo. O que eu posso fazer bem é o que costumo fazer, que é editar. Posso seguir suas linhas de pensamento, ver aonde a linguagem deles está indo, sugerir outros caminhos. Posso fazer isso e posso fazer muito bem. Gosto de entrar no manuscrito.

– de uma entrevista para Zia Jaffrey no Salon em 1998

Não escreva sobre o que você sabe.

Posso estar errada sobre isso, mas parece que muito da ficção, particularmente aquela de pessoas mais jovens, é muito sobre elas mesmas. Amor e morte, mas meu amor, minha morte, meu isso, meu aquilo. Todo o resto é personagem débil nessa peça.

Quando eu dava aula de escrita criativa em Princeton, disseram aos meus alunos a vida inteira que era para escreverem sobre o que sabiam. Eu sempre comecei o curso dizendo “Não preste atenção nisso.” Primeiro, porque vocês não sabem nada, e segundo, porque não quero ouvir sobre seu amor verdadeiro e sua mãe e seu pai e seus amigos. Pense em alguém que você não conhece. E que tal se for sobre uma garçonete mexicana em Rio Grande que mal fala inglês? Ou sobre uma grande madame de Paris? Coisa muito fora das suas zonas de conforto. Imagine, crie. Não registre e edite muito um evento que você já viveu. Eu sempre me maravilhei com a eficácia disso. Os alunos sempre abriram suas mentes quando se tratava de se permitir imaginar algo totalmente fora de suas existências. Acho que era uma boa prática para eles. Mesmo que eles acabassem escrevendo uma autobiografia, eles conseguiam ver a si mesmos e se identificar como estranhos.

– de uma entrevista para a NEA Arts Magazine em 2014

Cuidado com o excesso de trabalho.

Aqueles parágrafos que precisam ser reescritos, trabalho neles o tanto que posso. Reviso seis vezes, sete vezes, trinta vezes. Há uma linha entre a revisão e o atrito em que você sabe que vai trabalhar até a morte. É importante saber quando você passou da conta; é quando você começa a se irritar é que não funciona, que precisa ser descartado.

– de uma entrevista para Elissa Schappell no The Paris Review em 1993

Aceite o fracasso.

Como escritora, o fracasso é só informação. É algo que fiz errado quando escrevi, ou não é exato ou não é claro. Eu reconheço o fracasso — o que é importante; algumas pessoas não — e tentam consertar porque é dado, é informação, conhecimento do que não vai funcionar. É reescrita e edição.

Com erros físicos como fígados, rins, coração, há algo a ser feito, algo que pode ser reparado e que não está nas mãos de uma só pessoa. Mas se está em duas mãos, então você precisa prestar muita atenção, em vez de ficar deprimido ou desanimado, ou se sentir envergonhado. Nada disso é útil. É como se você estivesse em um laboratório trabalhando em um experimento com produtos químicos ou ratos, e não funcionasse. Não combina. Você não lava suas mãos e sai correndo do laboratório. Você identifica o procedimento e o que deu errado e corrige. Se você pensa na escrita como mera informação, você pode ter mais sucesso.

– de uma entrevista para a NEA Arts Magazine em 2014

Aprenda como ler — e criticar — seu próprio trabalho.

As pessoas dizem “Eu escrevo para mim”, e isso soa tão horrível e narcisista, mas em certo sentido se você sabe como ler seu próprio trabalho — isto é, com a distância crítica necessária — isso faz de você um melhor escritor e editor. Quando dou aula de escrita criativa, sempre falo sobre como temos de aprender a ler nosso trabalho; não falo de gostar porque foi você que escreveu. Isto é, se distancie, e leia como se fosse a primeira vez que estivesse vendo aquilo. Critique dessa distância. Não se envolva em suas frases emocionantes e tudo o mais…

– de uma entrevista para Elissa Schappell no The Paris Review em 1993

Busque santificação.

O que vou dizer vai soar pomposo, mas eu acho que, como artista, ou seja um pintor, seja um escritor, seu trabalho é quase sagrado. Há algo na visão, na sabedoria. Você pode ser um nada, mas nesse sentido, é santo, é divino. Está acima da vida normal e da percepção de todos nós. Você deu um passo avante. E enquanto estiver lá, mesmo que for uma pessoa terrível — e especialmente se for uma pessoa terrível — você vê coisas que se mesclam e mexem com você ou te movem, ou esclarecem coisas para você que fora da sua obra de arte você não notaria. É uma visão acima, ou além.

– de uma entrevista para o Granta em 2017

Faça o melhor com o que você tem.

Tenho uma rotina ideal de escrita que nunca experimentei, que são, digamos, nove dias ininterruptos em que eu não sairia de casa ou atenderia o telefone. E ter um espaço — um espaço com mesas imensas. Eu acabei tendo esse espaço [ela indica um canto de sua mesa] onde quer que eu esteja, e não consigo sair dessa. Fico lembrando da pequena mesa na qual Emily Dickinson escrevia e dou risada quando penso nisso, “meu deus, e lá estava ela”. Mas isto é tudo o que temos: este espaço pequeno que não importa qual seja o sistema de arquivamento ou o quanto você o limpa — vida, documentos, cartas, requerimentos, convites, notas fiscais, eles vão reaparecer ali de qualquer modo. Não consigo escrever regularmente. Nunca fui capaz de fazer isso — muitas das vexes porque eu sempre tive um emprego em horário comercial. Eu tinha que escrever ou nas brechas entre essas horas, apressadamente, ou deixar para os fins de semana ou madrugadas…

Eu tive que superar não ter espaços organizados e minha obsessão por disciplina para que quando algo urgente surgisse, urgentemente aparecesse ou a metáfora tivesse poder o bastante, eu conseguisse improvisar e escrever por longos períodos.

– de uma entrevista para Elissa Schappell no The Paris Review em 1993

Uma língua opressiva é uma língua morta.

O roubo sistemático de uma língua pode ser reconhecido pela tendência de seus falantes de esquecer suas nuances, complexidade, suas propriedades de dar à luz a ameaça e subjugo. Línguas opressivas fazem mais do que só representar a violência; elas são violência. Fazem mais do que representar os limites do conhecimento; elas são conhecimento. Seja a língua obscura do estado ou a falsa língua da mídia acéfala, ou a orgulhosa e calcificada linguagem acadêmica ou a mercadoria da linguagem científica, ou a maligna linguagem lei-sem-ética, ou a linguagem designada para afastar minorias, escondendo a pilhagem racista em sua face literária — deve ser rejeitada, alterada e exposta. É a língua que bebeu sangue, que mostrou as vulnerabilidades, vestiu e escondeu suas botas fascistas sob suas vestes largas de respeito e patriotismo enquanto se movia implacavelmente para a linha de fundo e para o conservadorismo. Língua sexista, racista, teísta — todas típicas do policiamento da linguagem, e que não podem, não permitem, novos conhecimentos ou encorajar o intercâmbio de ideias…

A língua nunca vai poder esconder a escravidão, o genocídio, a guerra. Nem pensar arrogantemente que pode fazer isso. Sua força, seu júbilo, está no alcance do inefável.

Seja grande ou pequena, entocada, explodindo, ou recusando a santificação; rindo alto ou chorando sem um alfabeto, a palavra escolhida, o silêncio escolhido, a língua intocada vai em direção ao conhecimento, não à sua destruição. Mas quem não conhece literatura banida porque questiona; descartada por ser crítica; apagada por ser alternativa? E quantos ficam indignados com a existência de uma língua devastada?

– palestra de Toni Morrison na ocasião do prêmio Nobel de 1993

Original em inglês: https://lithub.com/you-dont-know-anything-and-other-writing-advice-from-toni-morrison/

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Mariana Almeida
Passaparola

Editora de textos, estudante de literatura & outras artes