365 formas de sentir saudade

(ou a história do ano em que voltei pra casa)

Sandy Quintans
Revista Passaporte
4 min readMar 20, 2020

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Devo começar esse texto já pedindo desculpas, porque essa é uma história que é sobre morte e sobre vida ao mesmo tempo, o que pode ser muito confuso. E também é sobre saudade.

Eu disse que era confuso.

Há um tempo li uma matéria que falava de intercâmbio, nas maneiras como a nossa vida passa a existir depois de uma experiência como essa. Nem sei quem compartilhou aquilo ou quem escreveu ou em que lugar foi publicado. Só lembro da frase que dizia que ir pra um intercâmbio podia ser comparado com morrer. Eu mesma já tinha me encarregado dessa analogia dizendo que enterrei a Sandy do passado no momento em que embarquei naquele avião.

Não era bem sobre isso que o texto falava, mas sobre como as relações com nossos amigos e familiares ficam quando tomamos uma decisão dessas. É que a gente fica ouvindo sobre como a vida de ninguém vai ser mais a mesma quando partirmos, só que por mais difícil que a ruptura seja, uma hora tudo segue. Voltar pra casa depois de um tempo ausente é entender como é refazer relações com vidas que seguiram e sabem como é existir sem você. Ainda bem que esse é o ciclo natural da existência desde que o mundo é mundo, já que ninguém quer carregar o fardo que é a expectativa dos outros.

Houve um momento em que uma pessoa me disse pra não me preocupar com a volta, pois eu estaria mais forte do que qualquer outro momento da minha vida. Que eu deveria olhar pra trás e enxergar tudo aquilo que havia superado nos últimos anos. Eu fiquei mais forte, ainda que tenha esquecido por alguns momentos. É que, como já disse em outros tempos por aqui, a decisão de voltar é muito mais complicada do que a de ir, afinal estamos enterrando um sonho.

Eu sei, parece um início de texto muito pessimista, mas eu prometo que não foi pra isso que veio até aqui ler. O que eu preciso que você entenda, caro amigo leitor, é que quando entrei no voo TP87 no dia 19 de março de 2019, saindo de Lisboa com destino a Guarulhos, embarquei abraçada a ideia de que viveria o meu pior nos próximos meses. Mesmo que eu estivesse desesperada pelo reencontro com as pessoas que são a definição de lar no meu universo. Não foi isso que aconteceu, ainda que eu tenha encontrado minha mente vagueando em lugares tão escuros quanto o céu em noite de lua minguante. Só que a vida foi generosa comigo, afinal este é um relato de gratidão e de enxergar luz onde não existia.

Despedidas são pesadas demais, quase impossíveis de serem carregadas. Mentes como a minha sempre acham que estão preparadas pra viver as coisas, mas não adianta antecipar o sofrimento. No final, só entendemos o que estamos sentindo quando acontece. E o que eu senti foi um turbilhão de sentimentos que parecia sem fim, mas só parecia. E daí pra frente eu só consegui sentir saudades de coisas que nem se quer lembrava que existiam.

Saudade é essa palavra que só existe em português e que é quase como uma profecia que diz que se você entende o que significa, está fadado a sentir pra sempre. Eu senti antes, durante e continuo sentindo depois da Irlanda, de maneiras diferentes mudando de tempos em tempos. O que se tornou a comprovação de que não vivi um delírio, mas uma história de verdade.

Houve um momento da minha vida em que voltar pra casa era apenas uma decisão muito difícil que precisava tomar, até se tornar uma coisa essencial. Como um dispositivo eletrônico que passou tempo demais sem recarregar, longe da energia elétrica que o alimenta. E foi nessa hora que consegui entender que não poderia escrever essa história de maneira diferente. Pois há na despedida um lado bom de existir, visto que é a decisão de despedida é sempre pautada na esperança.

O momento que a gente decide que dar adeus é a melhor opção, é também quando percebemos que seguir é o caminho certo. E que pra um capítulo novo ser escrito, é necessário terminar o anterior. A Irlanda vai ser sempre uma parte decisiva no livro da minha vida e eu diria até que é responsável pelo curso final dessa história. Voltar foi o começo de outro fragmento do livro.

Foi assim que eu vivi um ano que fez com que eu confrontasse aquela Sandy que eu deixei aqui. Não dá pra voltar pra um vida sem reviver sentimentos, relações, por mais que a vontade fosse enterrar. Foi muito difícil confrontar todas as versões do arquivo que sou eu, mas aceitei ser um rascunho e não o trabalho final. Eu não quero carregar o peso de ser um arquivo final, porque faz significar que não tem mais nada pra ser escrito.

E eu ainda tenho muito pra escrever, os últimos 365 dias me disseram isso.

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Sandy Quintans
Revista Passaporte

Jornalista, que viveu em Dublin por dois anos e que encontrou na internet um espaço pra ser ela mesma. Reside no planeta terra since 1990.