Como 40 dias na Índia e 15 crianças mulçumanas me ensinaram a amar

Amanda
Revista Passaporte
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5 min readApr 17, 2018

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No dia 6 de Dezembro de 2017 embarquei para Mumbai, Índia, cidade de 19 milhões de habitantes e centro financeiro do país. A viagem foi feita por intermédio de uma organização de liderança jovem denominada AIESEC cuja proposta maior é proporcionar a realização de intercâmbios de universitários do mundo inteiro que desejem atuar em trabalho voluntário. Meu destino foi a Adarsh Foundation, organização sem fins lucrativos, situada na Comunidade Muçulmana de Kurla Leste, na qual eu deveria passar trinta e cinco dias ensinando inglês para crianças de quatro a doze anos de idade.

Meu primeiro dia na Comunidade Muçulmana de Kurla Leste me colocou em tamanha situação de choque de realidade que eu pensei em desistir e voltar para o conforto da minha casa no Brasil. A senhora Sujata, presidente da Adarsh Foundation, fez questão que eu conhecesse e me inteirasse da vida de todos os meus alunos, me levando para visitar as casas e famílias de cada um deles. Casas, neste contexto, são totalmente diferentes daquelas nas quais já vivi. Meus alunos moravam com, no mínimo, mais três pessoas em um cômodo que continha uma cama, uma televisão, uma pia de cozinha, um fogão e utensílios domésticos. O banheiro era um espaço, do mesmo cômodo, separado por um cortina, no qual se via uma vala no chão e um tambor com água para o banho. O interior extremamente limpo das casas era o oposto da sociedade lá fora, onde podia-se ver seres humanos, animais e lixo convivendo juntos, dividindo os mesmo espaços, como se fossem a mesma coisa.

Nesse dia voltei para o hostel chorando. Vi duas crianças, de no máximo quatro anos, andando sem proteção alguma em meio a sujeira jogada nos trilhos do trem. Lembrei-me das crianças da minha família, de como elas estavam seguras em casa. Fui dormir em choque, pensando em como é possível que se deixe o ser humano, que se deixem nossas crianças, chegarem em tal situação.

O intercâmbio voluntário da AIESEC tem a proposta de nos tirar de nossa zona de conforto para que reflitamos sobre a sociedade ao nosso redor e voltemos ao nosso país dispostos a mudar aqui, o que só nos demos conta da existência lá fora. Parece estúpida a ideia de que as pessoas não conseguem enxergar aquilo que ocorre ao seu redor, que só o fazem quando vão para o campo de influência de outra pessoa. É realmente estúpido e foi exatamente como eu comecei a me sentir lá pela segunda semana de trabalho.

Os primeiros sete dias passaram voando. As crianças estavam animadas pelo rosto novo e extremamente diferente do que elas estavam acostumadas. Faziam todos os exercícios corretamente, prestavam atenção às aulas e se comportavam muito bem. A segunda semana espantou a novidade e trouxe de volta a verdade do dia a dia. Meus alunos falam Hindu, e pouquíssimas palavras de inglês, eu falo Português, e Hindu para mim era uma língua “tão fácil” que demorei trinta dias para decorar uma mísera frase.

Apesar de seus esforços, muitas vezes eles não me entendiam, frustravam-se e desistiam de prestar atenção. Essa foi minha primeira experiência como professora e minha primeira experiência com crianças. Aliás, eu nunca soube como lidar com elas e, de repente, eu me vi sozinha em uma sala com quinze crianças de uma cultura, um país e um mundo totalmente diferentes do meu, sem experiência alguma, tendo que separar brigas e incentivá-los a aprender uma língua com a qual eu mesma inúmeras vezes me confundia.

Na segunda semana veio o choque do que eu estava fazendo. Passei minhas manhãs pesquisando métodos de ensino para crianças e tentando entender qual inglês seria mais útil que eu ensinasse para elas. Como ensinar objetos de banheiro para crianças que não tem um ? Como falar sobre sonhos para pessoas cuja maior preocupação é saber se terão o que comer na próxima refeição? Como falar sobre minhas liberdades, minha faculdade e minha vida para garotas de dez anos que estavam já prometidas em casamento, dentro de uma religião conhecida pela opressão às mulheres? O êxtase de estar em um país tão diferente do meu e de trocar as férias por um trabalho voluntário foi substituído por uma realidade que me atingiu como um golpe. Que direito tinha eu de “brincar” de mudar a vida de pessoas que realmente precisavam de ajuda? Não estou tirando o mérito do trabalho voluntário, nem quero que as pessoas deixem de viver essa experiência pela qual eu passei, pelo contrário, gostaria que mais pessoas o fizessem e chegassem à conclusão dos absurdos que fazemos, da bolha social absurda na qual vivemos.

Eu fui para Mumbai achando que mudaria a vida de alguém, mas no meio do caminho percebi que em quarenta dias eu não conseguiria fazê-lo. Na terceira semana saía do trabalho todos os dias frustrada. Quebrava a cabeça pensando no que eu poderia fazer para ajudar mais. Me peguei presa no ciclo histórico do ocidental que quer mudar um mundo do qual ele não faz parte, enquanto o seu próprio mundo grita por ajuda.

Não teve um único dia, dos quarenta que passei em Mumbai, no qual alguma coisa não me chocou. Desde o trânsito caótico a princípio, mas que faz completo sentido para os motoristas, até as ruas entupidas de lixo e a valorização indiana da cor de pele branca. Conheci moradores da cidade, visitei suas casas, comi de suas comidas, andei em seus transportes públicos e tentei entender aquele gigante de 1,5 bilhões de pessoas do ponto de vista delas. Nunca antes, nestes meus três anos de faculdade, aprendi tanto sobre relações internacionais, sobre sociologia e filosofia. Todos os textos e autores que fui obrigada a ler neste período passaram a fazer sentido, se conectaram, finalmente, à realidade de fora das salas de aula.

Meu intercâmbio não foi acadêmico e nem promovido por uma entidade de dentro da nossa instituição de ensino superior, mas eu vivi e cresci, em pouco mais de um mês, todo o conhecimento que eu buscava quando prestei o vestibular alguns anos atrás. Voltei para o Brasil no dia 16 de janeiro de 2018, ainda sem acreditar em todo aquele último mês. Deixei para trás uma família, a Adarsh Foundation que me acolheu e me cuidou no meio de todo aquele caos de cultura e pessoas que é Mumbai.

*Infelizmente a página no facebook da Adarsh está em Hindi, mas caso você queira saber mais sobre o trabalho da ONG e tiver interesse em ajudá-los é só me chamar que eu passo os contatos que eu tenho. https://www.facebook.com/ADARSHFOUDATION

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Amanda
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Redatora, tradutora e professora de inglês. Aqui: @fale-com-elas-e-sobre-elas e @revistahelenas , IG @clubedochorolivre -rtorres.amanda@gmail.com para serviços