Açores: Entre o céu e o mar na ilha de São Jorge

Patrícia Maia Noronha
Revista Passaporte
Published in
9 min readJun 20, 2019

Com mais de 70 falésias sobre o mar, uma gastronomia única, percursos pedestres quase virgens e uma oferta hoteleira cada vez mais variada, a ilha de São Jorge, nos Açores, é o destino perfeito para recarregar baterias. Amantes da natureza, está na hora de marcar a viagem!

Língua de terra esguia, com 53 quilómetros de comprimento e oito de largura. Por duas vezes visitei os Açores e das duas vezes passei pela ilha de São Jorge. Tornou-se, entre as ilhas que conheço, a minha preferida, provavelmente por culpa das mais de 70 fajãs, abruptas falésias precipitando-se no mar, que tornam esta paisagem única e inesperada. Aqui fica um possível roteiro para uma primeira visita.

Caldeira de Santo Cristo, santuário da natureza

A Caldeira de Santo Cristo, meca de surfistas e amantes da natureza, é a fãja mais famosa dos Açores e atrai cada vez mais gente à ilha de São Jorge. O sr. António, taxista que me guiou durante a primeira visita à ilha, desdenhou desta “moda da Caldeira” garantindo que “em São Jorge há coisas mais bonitas para ver”. Mesmo assim, apareceu à hora combinada na Pousada da Juventude da Calheta, o alojamento ideal para quem procura aliar preço-qualidade-simpatia. Não é por acaso que já foi considerada, pela rede Hi Hostels, a melhor pousada jovem de Portugal, até porque oferece como bónus uma vista privilegiada sobre a Ilha do Pico.

Chegada de barco a São Jorge

Durante o caminho sinuoso até à Caldeira, fomos parando nos vários miradouros com vista sobre o Oceano. “Não consigo viver longe disto”, desabafou o sr. António, numa das paragens, fazendo um gesto largo que abarcava a fajã, o céu e o mar. O sr. António esteve, durante quase 10 anos, emigrado no Canadá mas voltou, finalmente, para a sua ilha. Gaba-se de conhecer todas as fajãs — onde pratica pesca submarina — como a “palma das mãos”.

Vista para a ilha do Pico na sala de estar da Pousada da Juventude da Calheta, que já foi considerada a melhor de Portugal pela rede Hi Hostel

Alcançar a Caldeira exige algum espírito de aventura (há quem lhe chame “de sacrifício”). Não há estrada asfaltada para carros pelo que só restam duas opções: percorrer, a pé ou de motorizada, os quatro quilómetros que se desenrolam junto ao mar, a partir da Fajã dos Cubres; ou descer um percurso íngreme, vindo da Serra do Topo, a 700 metros de altitude — um dos trilhos mais procurados na ilha que inclui a passagem pela cascata de Santo Cristo.

Cascata de Santo Cristo © José Luís Ávila Silveira/Pedro Noronha e Costa (wikipedia)

Eu e a minha amiga optámos pelo caminho junto ao mar com o sr. António, desconfiado das nossas capacidades físicas, a insistir, até à última, para chamarmos uma moto 4. A caminhada foi mais exigente do que esperávamos — o percurso é cheio de desníveis e curvas — mas o verde luxuriante da floresta Laurissilva que se desdobra à nossa frente, as aves de muitas espécies, as flores silvestres, as casinhas de pedra erguidas aqui e ali e o mar, que acompanha todo o percurso, compensam o esforço.

Fajã dos Cubres vista de um dos miradouros

Passando a Fajã do Belo já é possível avistar a Caldeira de Santo Cristo. Por mais fotos que tenhamos pesquisado no Google nada se compara à experiência de ver, ao vivo, esta majestosa falésia verde, integrada na Reserva Natural dos Açores. Depois de uma hora de caminhada, mergulhar na água cristalina da lagoa de Santo Cristo (com sandálias de plástico por causa das pedras!) e dormitar nas suas margens ao som do mar (e das cagarras), aproxima-se de uma experiência transcendental. É que, por momentos, o mundo lá fora deixa de existir.

Ameijoas da Caldeira servidas no restaurante Borges

Aqui, é também incontornável a visita ao restaurante Borges, o único desta fajã, onde se podem provar as míticas ameijoas de Santo Cristo cuja existência é um mistério, já que estes moluscos não crescem em mais nenhuma ilha dos Açores. Com o objetivo de proteger estes bivalves únicos, a apanha só é permitida entre Agosto e Maio e mediante uma licença especial, mas há quem as sirva congeladas e dizem que são igualmente deliciosas. Não é o caso do Borges, que só serve ameijoas frescas. Enormes, suculentas e fresquíssimas, são servidas quase ao natural, realçando o seu sabor único a mar.

Como conta o Centro de Interpretação da Caldeira (aberto ao público aos sábados e domingos), o sismo que nos anos 80 atingiu a ilha de São Jorge foi particularmente violento na Caldeira, levando ao êxodo dos moradores. Agora, após décadas de abandono, a fajã tem atraído cada vez mais pessoas (gente a mais, sobretudo em Agosto, queixam-se alguns). Muitas casas estão a ser recuperadas e já se encontram alojamentos turísticos para todos os gostos, ainda que a aldeia continue sem acesso à rede de eletricidade, funcionando com recurso a geradores.

No regresso à Calheta, vale a pena visitar a famosa Fábrica de Santa Catarina, onde se produzem as conservas de atum mais sustentáveis do mundo. A fábrica deixou de realizar visitas guiadas mas ainda é possível comprar, a bom preço, latas destas conservas de peixe capturado exclusivamente à linha para garantir a sustentabilidade das espécies. Uma técnica que tem garantido à empresa vários prémios internacionais.

Lagoa da Fajã de Santo Cristo

Três mil toneladas de queijo e café biológico

Para o segundo dia da estadia, a proposta é visitar a Cooperativa Agrícola de Lacticínios dos Lourais onde se produz o (verdadeiro!) queijo da ilha de São Jorge, a poucos quilómetros da Calheta. Cada queijo, que ainda hoje é produzido de forma artesanal, pesa cerca de 10 quilos e é feito a partir de 110 litros de leite. A visita guiada permite ver todo o processo de fabrico e inclui uma prova de queijos com diferentes períodos de cura — três, quatro e sete meses.

Queijos da ilha em cura na Cooperativa dos Lourais

“O sabor forte e ligeiramente picante deste queijo resulta do pasto das vacas de São Jorge, que passeiam livremente nos montes”, explica a guia. Aliás, por causa do queijo, as vacas são um elemento constante na paisagem desta ilha de nove mil habitantes onde, brinca o povo, “há mais vacas do que pessoas”. Todos os anos são produzidas cerca de 3 mil toneladas deste queijo. Esta produção desempenha um papel crucial na economia da ilha, garantindo o sustento de mais de 500 produtores de leite e de cerca de 130 pessoas que trabalham nas fábricas.

Grão de café já colhidos e a secar

A fajã dos Vimes é outra paragem obrigatória, pelo menos para os fanáticos de café. Aqui, num pequeno estabelecimento, a dona Alzira e o marido servem café que é plantado, colhido e tostado na propriedade. “Isto na minha família começou há mais de 100 anos”, recorda Alzira. “A minha avó plantava o seu próprio café. Ela não me deixava beber, porque eu era muito pequena e fica excitada, mas quando ela não via, eu às vezes roubava”, recorda entre risos.

Café da família Nunes na Fajã dos Vimes

As árvores de café arábico da família Nunes são, portanto, centenárias. Mas devido à procura, a família já adquiriu mais hectares. “A nossa produção é biológica”, sublinha Alzira, explicando que, graças à riqueza da terra e ao clima, aquela plantação “não dá bicho e não tem pragas, pelo que não leva adubos nem pesticidas”. Por enquanto, a produção é demasiado pequena para comercializar a grande escala, mas já é possível comprar, no local, pequenas embalagens deste café açoriano. No andar de cima, fica o atelier onde Alzira e a irmã fazem delicadas peças de tear numa técnica conhecida como “colchas de ponto alto”, e que também estão à venda.

Um farol enigmático e piscinas vulcânicas

Ao terceiro dia, e seguindo os conselho do sr. António para um “final em grande”, o percurso passa pela fajã das Almas, talvez a fajã mais acolhedora de São Jorge. Com a Ilha do Pico no horizonte, esta fajã oferece bons acesso alcatroados e uma zona balnear pontilhada por piscinas naturais. Tem também um restaurante, o Maré Viva (fechado à hora da nossa visita), com fama de servir as melhores lapas da ilha.

Reserva de Gamos

Prosseguimos com uma passagem pelo extremo mais ocidental da Ilha, na Ponta dos Rosais, de onde é possível avistar as ilhas do Faial e do Pico e
visitar o complexo de um farol abandonado — em tempos, o mais sofisticado de Portugal — num cenário cinematográfico onde já foi filmada uma curta-metragem. Ainda na zona dos Rosais, visita obrigatória ao Parque das Sete Fontes, com extensas veredas, lagos de patos e pequenas reservas com gamos. O parque é densamente florestado com espécies endémicas da Macaronésia (e outras importadas) das quais se destacam os fetos arbóreos gigantes.

A paragem seguinte será a fajã do Ouvidor, o local mais recomendado pelo sr. António, que se revelou um cenário de outro mundo. Aqui, formaram-se várias piscinas naturais (ou “poças”) entre as escarpas de basalto negro, sendo que a mais impressionante é a Poça de Simão Dias, uma lagoa profunda, de cores impossíveis, onde se acentua o contraste entre o azul da água, as bermas ferrugentas e o negro da rocha. O frio obrigou-nos a um mergulho breve, mesmo assim capaz de nos transportar, por instantes, para outro planeta.

As poças naturais da Fajã do Ouvidor — foto de siaram.azores.gov.pt

Para um final perfeito, sugiro jantar no restaurante panorâmico Fornos de Lava, fundado por um galego radicado nos Açores há mais de 15 anos. Aqui serviram-nos uma cataplana, verdadeira iguaria recheada de pescado fresquíssimo e produtos vindos diretamente da horta. Luminoso, com uma vista espetacular, o espaço inaugurou, recentemente, uma vertente hoteleira, Os Moinhos, composta por pequenos apartamentos.

Festa durante a viagem de barco — à esquerda, músico com uma Viola da Terra, guitarra típica dos Açores e que tem, em São Jorge, na vila do Topo, um exímio fabricante: Raimundo Leonardes

Na despedida, antes de apanhar o barco para o Pico (ou o avião, para quem viaja pelo ar, mas atenção que a viagem de barco, sobretudo durante as celebrações de Julho, pode transformar-se numa autêntica festa) ainda há tempo para um passeio na vila das Velas, sede de município, com ruas luminosas que se desenham em torno do Jardim da República, onde se destaca o pitoresco coreto e o edifício Art Deco da Sociedade Filarmónica. Muito fica por visitar, por exemplo a Oficina de Violas da Terra de Raimundo Leonardes, no Topo, ou a Urzelina com a sua Torre Sineira e Centro de Exposição Rural. Já dentro do barco, à medida que São Jorge se dissolve no horizonte, é hora de começar a planear um regresso, que se deseja para breve.

Alojamento

Comer/restaurantes
Fornos de Lava
Açor (Velas)
Amílcar (Fãja do Ouvidor)
Cervejaria Germano (Velas)
Casa de Pasto Beira-Mar Largo do Cais
Restaurante Amigos (Calheta)
Café-restaurante Borges (Caldeira de Santo Cristo)

Nota: Todas as imagens são da autoria de Patrícia Maia Noronha, excepto onde indicado

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Patrícia Maia Noronha
Revista Passaporte

Formei-me em jornalismo só para poder contar estórias. Já dormi sozinha num bosque. Autora do livro O Elo Invisível. patriciamaianoronha@gmail.com