A casa é um sentimento

Daniela Ruiz
Revista Passaporte
Published in
6 min readMar 1, 2018

Entre todos os desafios que tínhamos pela frente, confesso que o que me deixava mais ansiosa era pensar como cada um de nós reagiria à tantas mudanças de endereço. Passei a vivenciar o espaço como influenciador do cotidiano, a fotografar os registros ativos com as novas casas e a observar o quanto de lar cada um de nós trazia dentro de si.
Esse lar que habita o espaco da casa é algo inerente a todos os seres. Cada qual com sua necessidade vital de proteção, acolhimento, pertencimento e conquistas. A casa é a guardiã dos sonhos e das lembranças, é um universo em si só.
Estar em movimento nos permite aprender com o espaço que nos circunda. Estamos sempre desenhando nossos próprios mapas individuais. Você começa a dar valor aos pequenos ritmos da vida, a ser mais e ter menos.

Os personagens e suas rotinas individuais se sobressaem na estrutura da família e acabam por guiar a escolha dos bairros e casas. Para constituirmos nossas novas rotinas nós buscamos entornos instigantes e inspiradores. Em Kyoto e Tóquio, por exemplo, queríamos uma experiência verdadeiramente imersiva no cotidiano japonês, então escolhemos bairros distantes do centro e menos contaminados pelo turismo.

Na Nova Zelândia, fomos diretamente para o paraíso. Uma ilha com crianças circulando por toda a cidade sem sapatos. Uma comunidade ativa e equilibrada pelo poder da natureza pulsante.
Em Copenhague escolhemos viver na área central, pois queríamos ser absorvidos por esta cidade desenhada para pessoas, em que a mobilidade é respeitada. Queríamos apresentar à Mia e à Lara uma cidade de espaços justos e generosos, onde não se tem limites entre o brincar e viver.

A busca por um estado nômade e dinâmico faz com que as pessoas saiam de sua zona de conforto e voltem a sentir as fronteiras se dissolvendo. É um estilo de vida cativante pelo fato de se manter nesse fluxo constante, ser dono do seu próprio tempo, trabalhando e vivendo em lugares sempre sonhados: qualidade de vida versus valores materiais.
Temos um bocado de amigos aprendendo a viver dessa forma e desenhando seus próprios formatos de trabalho e vida por ai. Na pista do Sonar, festival de música eletrônica que acontece todos os anos em Barcelona, conhecemos a Carol e o Franklin, brasileiros com rodinhas nos pés, boas intenções e fluxo nas veias. A Carol começou a escrever um diário de viagem chamado #oqueaprendovivendosemcasa, que acabou se transformando em um registro antropológico onde ela divide seus aprendizados, mostrando que nem tudo são flores quando você escolhe viver sem CEP.
O nômade digital já é uma realidade, um comportamento emergente, um processo sócioeconômico que vem ganhando muitos adeptos pelo mundo. E para atender a esses adeptos, estão surgindo novos modelos de negócio. Os workstation retreats (retiros de trabalho, em tradução livre), por exemplo, disponibilizam um calendário de casas com promessa de wi-fi inabaláveis ao redor do mundo para que sua tribo possa circular com garantia de morar, trabalhar e curtir nos mais desejáveis destinos no globo.

Lugar quentinho, com comida boa na mesa e “seus discos e livros”, essa é a casa que reconhecemos. Estabelecemos uma forca tarefa para trazer esse sentimento nas primeiras 24 horas em cada novo lugar. Uns cuidam de caçar, outros de arrumar. Quem sai para caçar é responsável por fazer o reconhecimento do entorno e trazer comida para a mesa. Já quem cuida do arrumar é responsável por decodificar os espaços da casa, mover alguns móveis para deixar o espaço com a nossa cara, desfazer as malas e tomar os armários e gavetas necessários para que tudo encontre seu lugar.
Tão fundamentais como nossas escovas de dentes e, com lugar cativo em nossas malas, estão os brinquedos das meninas, pequenas lembranças dos lugares que passamos, fotos de família e presentes de amigos. Arranjos de flores e desenhos recentes colados nas paredes também são estratégias poderosas: são ganchos da intimidade.

Algumas casas nós desvendamos dia após dia, outras tem um impacto logo que abrimos a porta. Foi o que aconteceu quando entramos pela primeira vez em nossa morada em Copenhague. As crianças correram diretamente para um dos quartos com caminhas baixas e baús repletos de brinquedos. A casa estava iluminada delicadamente, o chão era de madeira gasta e o corredor repleto de quadros e gravuras. As cores eram calmas e acolhedoras, o beiral das janelas era decorado com objetos de recordação, plantas por todos os lados: estávamos em uma casa no melhor estilo hygge.

Em uma das estantes da casa estava o livro O Livro do Hygge, de Meik Wiking, ceo do Happiness Reasearch Institute. Nesse livro ele descreve essa filosofia de viver bem que está no DNA dos dinamarqueses. Hygge não tem tradução, é uma mistura de conceito e sentimento, assim como a palavra saudade para os brasileiros.
Esse sentimento nasce dentro da casa e está relacionado com os cinco sentidos: no silencio você pode escutar a chuva lá fora e o barulho da chaleira prestes a anunciar uma xícara de chá adoçado com mel. O bolo feito em casa com calda de frutas vermelhas espera na mesa de madeira com uma toalhinha bordada feita à mão. Na sala de estar a manta quente de lã te espera ao lado do sofá. Os aromas da infância, a atmosfera familiar, os candelabros com velas, as meias quentinhas… tudo isso é hygge.
Para permitir-se ser hygge, os dinamarqueses criaram um modelo de sociedade que cuida do bem estar coletivo reduzindo os riscos e as incertezas, cultivando assim uma felicidade comum. Como disse Gaston Bachelard, no livro A poética do espaço. “Quando o homem consegue imaginar não só a sua casa, mas o mundo como um ninho, eles nunca se acabam.”

Na hora de dormir, a história preferida por aqui se chama “histórias de quando vocês eram pequenos”, e quando as minhas filhas pedem para eu contar qual era a minha brincadeira preferida na infância, a primeira que me vem à cabeça é “brincar de casinha”, ou melhor, brincar de construir casinhas. O lugar mágico entre lençóis, almofadas, cadeiras e tudo mais que pudesse me ajudar a ter um cantinho só para mim, com a escala para meus pouco mais de “dez palmos do chão”.
Éramos três irmãos e tínhamos a ajuda de uma mãe arquiteta para transformar uma sala de TV em um superacampamento com direto a pernoitarmos todos ali. Alguns muitos anos mais tarde, no quarto ano da faculdade de arquitetura, somos convidados a escolher um tema para estudar, buscar um formato e apresentar a uma banca examinadora. Resolvi estudar sobre os comportamentos emergentes, ou seja, a mudança dos núcleos familiares, a era digital e a virtualidade, e como tudo isso afetava a forma de viver e habitar uma metrópole.
Com o diploma na gaveta e treze anos arquitetando, hoje, escrevo para vocês do Sri Lanka, na nossa sexagésima terceira casa, em um trabalho diário de registro de como todas essas casas vão pertencer para sempre em nosso imaginário e vão constituir nossa história. E continuo curiosa por saber o que vem pela frente.

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