Angela Mansim
Revista Passaporte
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3 min readSep 17, 2021

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Passagem de volta — pois bem, de visita — conquistada.

Depois desses anos todos, como será o sentimento de retornar para o abraço confortável do meu pai?

Como será sentir o calor e o vento sul na trilha do Beco da Lua? Como será andar mais uma vez de bike na Osni Ortiga?

Lugares tão reconhecíveis que chamei carinhosamente e por muito tempo de casa. Por muito tempo, essa foi a única realidade visível e possível.

Como será reencontrar meus livros e todas as antigas e deliciosas anotações? Provavelmente, os planos transcritos no papel vão me fazer sorrir sozinha.

Como será o gosto do caldo-de-cana do seu Alcionei? Será que o gosto incrível persiste? Será que ele ainda coloca limão?

Será que os amigos estarão iguais porém diferentes? Será que tudo vai estar diferente porém igual?

Verdade mesmo é que a maior mudança aconteceu dentro de mim. Na maneira nova que eu vou olhar as mesmas coisas bobas, antigas, cotidianas.

A realidade é apenas a minha percepção. Por isso, deixo a ansiedade de sentir para o momento em que o sentimento resolver surgir.

Aqui vai uma das histórias mais gostosas que eu já ouvi do Amyr Klink.

O tempo, meus amigos, é mera ilusão e o lugar mais perigoso para estar é no conforto da sua própria casa.

Já estava escuro e chovia, quando saí da casinha na baía de Jurumirim, naquela última noite do ano. Não era um bom dia para partidas. Eu estava tenso, com medo, aquela mistura de nervosismo e excitação que acontece quando a gente sai para uma longa viagem.

É uma ansiedade não apenas em relação ao que vai acontecer, mas ao trabalho que foi feito. E eu havia me preparado durante cinco anos, construindo o Paratii, com autonomia de quarenta meses para estadias na Antártica.

Preferia partir sem me despedir, mas fui surpreendido pelo Bio, o rapaz que cuidava da casa. Não quis dizer que estava deixando o Brasil naquela noite. Ele podia fazer uma cena, pedir para eu trazer uma lembrancinha, ou um aumento.

Não gosto de despedidas. Assim, só pedi ao Bio que no dia seguinte consertasse a janela quebrada da cozinha. Ele disse que era sexta, que iria pescar. Então no sábado, falei. Respondeu que tinha que ir para a igreja, no domingo também. Percebeu minha irritação e jurou, jurou pela mãe, que na segunda-feira a janela estaria consertada.

Retornei quase dois anos depois. Um inverno inteiro na Antártica, uma temporada completa no Ártico. Saltei no mesmo pedaço de areia de onde saíra, em frente à casinha que não tem luz elétrica nem estrada que dê na cidade.

Poderia estar voltando de uma ida ao centro de Paraty, mas desembarcava depois de 642 dias e 27 mil milhas percorridas, mais que 50 mil quilômetros.

Nada havia mudado. Andei pela fachada e encontrei a mesma janela. Quebrada. Fiquei estarrecido. Bio só podia ter morrido. Fui andando até a casa dele, sem tirar as botas de neve que usava há 72 dias.

Ele não estava em casa. Perguntei ao seu cunhado: “Reginaldo, onde é que está o Bio, ele morreu?” “Não senhor”, ele respondeu sorrindo, dizendo que o Bio tinha saído para pescar. “Mas então porque ele não consertou a janela? Eu pedi faz quase dois anos!”

Com a maior inocência, e até certo ar de ingenuidade, ele tentou me explicar: — O senhor não vai acreditar, seu Amyr, mas é que não deu tempo!

Quando ouvi Reginaldo na tarde mansa de Jurumirim, 22 meses e um mundo depois da noite da partida, ficou cristalina a certeza de que a única coisa que não podemos resgatar é o tempo, e o lugar mais perigoso onde eu já pisara era Paraty.

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Angela Mansim
Revista Passaporte

Designer de textículos. Livre & maluca, amém. Instgrm: @angelamansim.