Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
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5 min readNov 26, 2019

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Relatos de viagem costumam transbordar de momentos festivos, selfies com cenários de cartão postal, e por aí se vai. Raras são as queixas: de volta para casa, quem vai perder tempo com elas? Ficam as lembranças boas… e as contas a pagar.

Mas contratempos fazem parte de toda viagem. Não falo de acidentes, doenças e outras adversidades graves, felizmente mais raras, mas dos percalços que volta e meia aparecem para desafiar o humor e o jogo de cintura. Eles também são importantes: sua lembrança ajuda a manter a objetividade, sem enfeitar as histórias; no mínimo, rende casos para contar.

Como qualquer mortal, já topei com pedras no caminho. Claro que nem de longe se comparam com as peripécias de outros viajantes, como o imperturbável Phileas Fogg de A Volta ao Mundo em Oitenta Dias. O que importa mesmo é que sempre deu para seguir adiante.

Voos cancelados, houve alguns, e o mais complicado foi o que minha mulher e eu devíamos tomar em Nova York num fatídico 11 de setembro. Já em Ecaterimburgo, o que perdemos foi o trem, e o problema teve que ser resolvido com atendentes que só falavam o russo.

A carteira, me bateram mais de uma vez. Dizem que é pela teimosia de guardá-la no bolso traseiro da calça. Em Palermo, foi ao tomarmos um ônibus; ágil, minha mulher subiu logo (la donna è mobile), e quando fui segui-la, dois gordotes me atalharam a frente e se puseram a falar com o motorista, bloqueando a passagem. Afobado na busca de uma brecha, não percebi que me afanavam. Quando atinei, os trombadões já estavam longe, e só me restava imitar o personagem do Rigoletto, bradando: “Ella me fu rapita!”. Do trauma, resultou-me certa gordofobia, e passei a evitar sujeitos atarracados que se postassem nos pontos de ônibus. Tanta atenção prestei neles que não liguei para a senhorinha magricela e desdentada que criava tumulto na entrada de um ônibus em Bogotá. Minutos depois, ao comentar que me sumira a carteira, escutei a voz grave do passageiro ao lado: “Bienvenido a Colombia!”.

Na Grécia, os banhos de mar foram excelentes, e os de chuveiro, uma amolação: bastava uma breve ducha para provocar completa inundação do banheiro. A cada mudança de cidade ˗ e, portanto, de hotel ˗, a enchente se repetia. Ficávamos nos perguntando como é possível que lá mesmo, onde se construíram as maravilhas da Acrópole, não haja competência para uma boa vedação do box. Talvez porque a Guerra do Peloponeso tenha recrutado todos os pedreiros e encanadores da época; nenhum teria sobrevivido, e o know-how se foi para sempre.

E também houve mal-entendidos e bate-bocas, dores de cabeça e de barriga, tropeços e tombos ˗ no pior deles, escorreguei feio na lama de uma trilha vietnamita, fui tentando me reequilibrar com desesperados movimentos circenses e acabei aterrissando no lodaçal.

Há pouco tempo, acrescentei mais um tópico no repertório de apuros. Acabáramos de chegar a Berlim e nos aprontávamos para sair à rua, quando tive o choque: cadê o porta-cartões?

Remexi as roupas, a bolsa de mão (na mala, é que não estaria), os mais improváveis cantos do quarto do hotel... Nada! Sumira, mesmo. Mas onde? No avião, junto do assento? No aeroporto? Como ir atrás da pista?

Sem saber por onde começar, me prostrei catatônico. Se fosse personagem de Nelson Rodrigues, iria sentar-me na beira da calçada e chorar lágrimas de esguicho.

Minha mulher, porém, manteve cabeça fria. Tomando-me o celular, acionou os bloqueios de cartões e enviou emails para a companhia aérea e o aeroporto, na seção de achados e perdidos, indagando se teriam encontrado o acessório.

Embora mais sereno, eu não via como darmos conta das despesas. Sentia como se a viagem tivesse acabado quando mal começava.

– Cancelamos tudo e voltamos para casa! ˗ exclamei.

– Não dá ˗ lembrou ela ˗. Nossas reservas não permitem cancelamento; saía mais barato assim, e foi como escolhemos.

– Ai, minha Santa Edviges, como é que fui entrar nessa?!?

– Mas os hotéis já foram pagos ˗ ponderou ˗, e com café da manhã. As viagens de uma cidade para outra, também. O que falta são refeições, passeios extras, ingressos, uma ou outra compra… Para isso, é só usarmos meus próprios cartões, além do dinheiro vivo.

Fazia sentido. Começando finalmente a sossegar, lembrei-me da passagem bíblica:

“A mulher forte, quem a encontrará? É mais preciosa que as pérolas que vêm das extremidades do mundo. O coração do seu marido põe nela inteira confiança e não terá necessidade de riquezas estranhas” (Provérbios, 31:10–12).

Prosseguindo, ela me perguntou:

– Você se lembra da última vez em que usou um cartão?

– Foi em São Paulo, pagando o almoço.

– Será que não ficou esquecido em casa?

Por via das dúvidas, mandou um whatsapp para a empregada pedindo-lhe uma busca na manhã seguinte, quando fosse arrumar o apartamento.

“Muito improvável”, pensei. É que sou previdente nas viagens: de véspera, faço relações detalhadas do que irá na mala, na bagagem de mão, nos bolsos… E à medida que arrumo o que vou levar, assinalo na lista. Como esqueceria os cartões, logo eles?

Restava aguardar. Demos um giro, jantamos, voltamos para o hotel. Noite inquieta: não me lembro direito, mas talvez tenha sonhado que cantava nas estações do metrô para conseguir uns trocados.

No café da manhã, procurei comer bem ˗ precisava garantir-me para os tempos de vacas magras que raiavam no horizonte.

Saímos para um primeiro passeio na cidade. Google Maps em punho, tomamos o ônibus 200, amarelo-vivo, como os demais em Berlim. Não demoramos a perceber que pegáramos o ônibus certo, mas na direção oposta. Descemos, atravessamos a rua e recomeçamos.

Pouco antes da Postdammer Platz, o celular de minha mulher recebeu um whatsapp: a empregada achara o porta-cartões. Ilustrando a mensagem, uma foto que me enterneceu ˗ era ele próprio!

Vinte dias depois, ao voltarmos para casa, consultaria minha lista, e lá estava a marquinha registrando que eu teria posto o porta-cartões num bolso da roupa que ia usar na viagem…

Agora, tratava-se de seguir em frente. Dois dias depois, embarcávamos para Hamburgo, e ao descermos do táxi na estação de trem, olhei para a calçada e achei uma moedinha de dois euros. Não restavam dúvidas, o jogo estava começando a virar.

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Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.