As chaves! Eu não me livrei das chaves!

Júlia Palhardi
Revista Passaporte
Published in
3 min readJan 11, 2021

Um susto de pensamento quando, com o chaveiro em mãos, percebi um peso desnecessário. Esbugalhei os olhos, deixei que as chaves caíssem ao chão e, sentada, dei vasão ao imperceptível.

Já havia se passado quase um ano após minha mudança daquela cidade. E eu ainda guardava as chaves do portão, da primeira porta do apartamento e do meu antigo quarto. Estavam todas unidas às novas chaves. Por que? Por que não me livrei das chaves?!

Viviam comigo, na abertura menor da minha bolsa. Me acompanhavam em todas as minhas vivências além das paredes do meu novo lar. E ali estavam, esperançosas. Como se em algum momento eu fosse descer, milagrosamente, a rua do meu bairro anterior, pegar as chaves e entrar no apartamento em que eu ainda morava — em pensamento.

Quando termino um relacionamento, daqueles que rendem ligações longas e cartas de amor, o meu ritual de desapego é reunir todas as lembranças materiais e sentimentais que construímos ao longo da relação e acomodá-las em uma caixa. Escondo-a no fundo do armário, longe dos olhos, e me proíbo de abri-la por uns bons meses. Além de, é claro, não visitar as redes sociais da pessoa e dos amigos da pessoa; sentir a dor se alastrar pelo corpo; chorar…

Esse é o meu ponto final. E funciona.

Então percebi que com a cidade que morei e vivi intensamente durante quatro anos, o ritual de desapego também seria necessário. Porque apesar dos tantos meses que já haviam corrido desde a minha partida, eu ainda carregava uma cidade inteira no peito.

Receita para o Ritual de Desapego para moradias — e pessoas (e o que mais sua imaginação permitir):

Arquivo Pessoal

Pegue todos os pertences que você ainda carrega e que te lembram a antiga casa, ou cidade. No meu caso foram basicamente as chaves, fotografias, revistas, passagens de ônibus, bilhetes, cartões de identificação de conferências, canecas de atlética, um pano de prato que eu guardava para um momento especial e nunca usei, porta-retrato com a foto das amigas de quarto, as frases motivacionais que ficavam atrás de minha porta, panfletos do movimento estudantil, recortes de jornal, embalagem de chá e uma pedra. Sim, eu sou muito acumuladora de coisas com valor sentimental, ou seja: tudo.

Saia às compras e encontre uma caixa que mais represente o local. Ou escolha uma caixa que tenha em casa mesmo. Identifique-a com o nome da cidade. Guarde todas as lembranças desordenadamente. Agradeça. Arrume um cantinho para ela. Pronto!

Abra a caixa todas as vezes em que a saudade transbordar. Coloque as músicas da época, faça uma visita ao passado teletransportando seu pensamento. Fique em silêncio e feche os olhos. Lembre-se que aquele não é mais o seu lugar no mundo, mas ele te pertencerá para sempre. Está dentro de você, é só acessar.

Depois, feche a caixa. Volte a respirar o ar da nova atmosfera. A vida acontece aqui e agora, onde você está.

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Júlia Palhardi
Revista Passaporte

Fascinada pela arte de ouvir pessoas e transformar as sutilezas do cotidiano, em poesia. Jornalista, escritora, atriz.