BERLIM NO VERÃO

Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
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10 min readOct 2, 2019

O astral de Berlim pode surpreender quem recorda os traumas da cidade no século XX ˗ atrocidades do nazismo, bombardeios, tensões da Guerra Fria, o execrado Muro… Mas desde a reunificação, a cidade renasceu: novamente capital, recobrou o antigo charme, em especial para os jovens, e se transformou em polo de criatividade. Para isso, contribuíram os preços comparativamente baratos atraindo artistas, intelectuais, empreendedores de start-ups e adeptos de culturas alternativas. “Poor but sexy”, nas palavras do ex-prefeito Klaus Wowereit.

A vida noturna é movimentada, assim como a agenda cultural. Aos que viajam para lá, recomendo consultar a programação no site Visit Berlin. Outra publicação útil é o Exeberliner.

O rigoroso inverno tem fama de deprimir o humor berlinense. Mas nossa estadia caiu no ameno verão, de dias quentes e noites frescas; o que raramente encontramos foi ar condicionado. Com o clima seco, sentíamos muita sede e não víamos bebedouros públicos. A água das torneiras é perfeitamente potável, mas a curtição dos alemães é tomá-la com gás. Mesmo a água comum às vezes vem com um pequeno teor gasoso.

Um dos prazeres a serem desfrutados na cidade é flanar pelo espaço urbano: calçadas espaçosas e bem cuidadas, trânsito civilizado, eficiência no transporte público… Que se tome, porém, cuidado com os ciclistas: o espaço das ciclovias não tem cores chamativas, embora esteja demarcado com clareza, e deve ser rigorosamente respeitado.

Localizado na área oriental, nosso hotel dava de frente para o mais antigo parque de Berlim, o Volkspark Friedrichschain, existente desde meados do século XIX. Muita gente passeava nele. A cultura alemã enfatiza o amor à natureza, e não é de estranhar que a cidade tenha numerosas e vastas áreas verdes.

Não chegamos a ver (e juro que não experimentamos!… ), mas dizem que ninguém liga para quem se puser peladão a tomar sol nos parques alemães. Para apagar marquinhas no bronzeado, é só ficar à vontade.

Como outras cidades europeias, e contrastando com as brasileiras, Berlim é relativamente silenciosa. E são sagrados os momentos de sossego: fazer barulho fora de hora ˗ por exemplo, no domingo ˗ é arriscar-se a broncas; talvez em alemão, com verbo no fim da frase.

Estivéramos lá quinze anos atrás e conhecíamos algumas atrações, como o deslumbrante Pergamon Museum, com seu acervo da Antiguidade Clássica. Ou as lojas sofisticadas da Ku’damm, principal artéria da antiga Berlim Ocidental. Desejávamos rever a belíssima avenida Unter den Linden (Sob as Tilias), mas o canteiro central, tomado por tapumes de obras, atrapalhava a vista e não permitia boas fotos. Ficou apenas o registro do Portão de Brandemburgo, no seu final.

Portão de Brandemburgo.

Na outra viagem, topáramos com muitas obras públicas, e agora foi o mesmo; espero que Berlim um dia fique pronta. Mas notamos diferenças: comércio mais movimentado, maior diversidade de tipos humanos, maior trânsito de bicicletas (além de patinetes e similares). E, ao contrário de antes, a fluência no inglês parece agora generalizada.

Em nossas andanças, muitas vezes encontramos o rio Spree, que com águas limpas atravessa Berlim, embelezando a paisagem. É o caso dos recantos charmosos do Neuköln, bairro em processo de renovação.

O Spree.
Em Neuköln.

Na Alexander Platz ˗ a “Alex” dos berlinenses ˗, fazíamos frequentes baldeações de ônibus. Lugar de tradição comercial, a praça inspirou o romance Berlim Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, relançado há pouco no Brasil. Destaca-se a torre de televisão, com 368 m de altura, visível de qualquer ponto da região central ˗ “como o ferrão de uma vespa”, ironizou um escritor. Foi inaugurada em 1969 pelo governo da Alemanha Oriental, que pretendia tê-la com símbolo de sua afirmação. No topo, abaixo apenas da antena, uma plataforma giratória de observação inclui bar e restaurante.

Com as obras da torre, demoliu-se parte do centro histórico. Menos mal que se preservou a igreja de Santa Maria, erguida no século XIII; inicialmente gótica, ela recebeu posteriores acréscimos de outros estilos.

Tendo ao fundo a torre da Alexanderplatz, encontra-se a Marienkirche.

Mais bonita que a Alex é a Postdammer Platz, que nas primeiras décadas do século XX foi um dos centros vibrantes de Berlim. Era ali que funcionava o primeiro semáforo de trânsito instalado na Europa. Bombardeada na Guerra, a praça sofreu depois certo abandono, até mesmo porque o Muro de Berlim passava justamente no meio. Com a reunificação, a Potsdammer ressurgiu como lugar cheio de vida. Reúne hoje prédios modernos, como o maravilhoso Museu do Cinema.

Postdammer Platz.
Outro ângulo da Postdammer Platz.

A pequena distância da Postdammer Platz, ficava a Anhalter Bahnhof, estação de trem destruída na Segunda Guerra. Foi onde em 1926 o jovem Joseph Goebbels desembarcou ambicionando conquistar a cidade para Hitler. Anos depois, com os nazistas no poder, seria aquele o ponto de embarque de muitos judeus enviados a campos de extermínio. Depois da Guerra, a estação não foi reconstruída, e junto do que restou, uma placa lembra a infâmia cometida.

Nas imediações da Ostbahnhof, uma das estações de trem da cidade, estende-se a Galeria Livre do Leste, onde uma sobra do mal-afamado Muro de Berlim contém grafites exaltando a liberdade. Até 1961, quando se implantou o muro, era permitido circular nos dois lados da cidade. Mas os soviéticos, inconformados com aquele enclave no meio da Alemanha Oriental, se irritavam com o incessante êxodo para o Ocidente, tendo Berlim como escala ˗ 2,5 milhões de migrantes, desde 1949. De surpresa, em certa madrugada de 1961, os alemães orientais fecharam a comunicação com o lado ocidental e iniciaram a construção do Muro, com 5 m de altura e 166 km de extensão. A derrubada se daria em 1989, em eloquente expressão da queda do regime. Durante aqueles 28 anos, 191 pessoas morreram ao tentarem cruzar o muro; uma ou outra, por acidente, mas a grande maioria, abatida a tiro pelos guardas da Alemanha Oriental.

Hoje, as lojas de suvenirs vendem pedrinhas alegadamente retiradas do Muro. Somando esses fragmentos, mais os já vendidos, talvez dê para construir o equivalente à Muralha da China.

Galeria Livre do Oeste.
“Política é a continuação da guerra com outros meios”.
Outro grafite da Galeria Livre do Leste.

Na Guerra Fria, o rio Havel, correndo entre Berlim Ocidental e Potsdam, na Alemanha Oriental, era uma das fronteiras entre os blocos adversários. A ponte Glienecke, que o cruza, algumas vezes serviu para troca de prisioneiros.

Ao visitar aquele belo cenário, lembramo-nos do filme A Ponte dos Espiōes (2015), de Steve Spielberg. O enredo se baseia numa história real: a troca do piloto americano Gary Powers (preso ao descer de paraquedas na Rússia, quando os soviéticos abateram seu avião) pelo espião russo Rudolf Abel, apanhado pelos americanos.

A Ponte Glienecke.

Em outra incursão nas memórias da Guerra Fria, fizemos uma visita guiada ao Museu da Stasi, a temida polícia política da Alemanha Oriental. Era um enorme dispositivo, com 90 mil funcionários (7 mil na sede central) e uma extensa rede de informantes espalhados no país. Influenciadas pela KGB soviética, suas práticas evocavam também a Gestapo nazista.

Fomos conhecer a Casa Lemke, pequeno museu situado em residência projetada em 1932/33 por Ludwig Mies van der Rohe. Esse arquiteto teve papel destacado na Bauhaus, escola de arte vanguardista que floresceu nos anos 20 (em Berlim, há um museu específico). Situada junto de um parque com lago, com área construída não muito grande, a Casa Lemke tem traçado leve e elegante.

Foi o último projeto de Rohe na Alemanha. Além de detestarem as expressões da arte de vanguarda, os nazistas imaginavam que a Bauhaus fosse reduto de comunistas. Com a ascensão de Hitler, ela se tornou alvo de restrições e perseguições, acabando por fechar as portas, e Rohe emigrou para os Estados Unidos. Naqueles anos, um expressivo êxodo de intelectuais, artistas e profissionais de diferentes áreas do conhecimento deixou a Alemanha. Seus países de destino foram recompensados com um enriquecimento da vida cultural.

Casa Lemke.
Outro ângulo da Casa Lemke.

Mas Hitler e os nazistas tinham seus próprios projetos arquitetônicos e tencionavam reconstruir Berlim radicalmente, com o nome de “Germânia”; seria a capital ariana do Terceiro Reich, antevisto para durar um milênio. “Em dez anos, ninguém reconhecerá a cidade”, vangloriava-se Hitler. Trágica ironia: em 1945, ao final da Guerra, ruínas cobriam 70% da cidade.

Entre os bairros arrasados nos bombardeios, esteve o Hansaviertel, próximo da área central. No final dos anos 50, o governo de Berlim Ocidental, onde ele ficava, resolveu reconstruí-lo como bairro residencial. Para o desenho dos prédios, foram convidados arquitetos de renome internacional. Entre eles, Oscar Niemeyer, com seus inconfundíveis pilotis.

Prédio de Niemeyer no Hansaviertel.

Situados na antiga Berlim Oriental, os Hackeschen Höfe (Pátios Hackeschen) constituem um simpático centro comercial restaurado. Construídos no início do século XX, são nove pátios internos de prédios que se interligam; ali funcionam bares, restaurantes, lojas… Pela graça e beleza, destaca-se a decoração do primeiro pátio, com azulejos em padrões geométricos.

Hackeschen Höfe.

Ao pé das estátuas de Marx e Engels, observamos a incessante afluência de pessoas a fotografá-las. Na reunificação, mantiveram-se os nomes de logradouros e os monumentos de cada um dos lados. Na Berlim Oriental, vários ícones históricos da esquerda continuam sendo celebrados; no ocidental, o mesmo acontece com lideranças conservadoras. Mas em lugar algum se homenageiam figuras do nazismo.

Anos atrás, alguém pichou no pedestal: “A culpa não foi nossa”.

A 500 metros do monumento aos dois pensadores, está a imponente Praça Bebel, com a Universidade Humboldt, a Ópera de Berlim e a catedral católica. Em 1933, esse belo cenário foi palco da vergonhosa queima de 20 mil livros, promovida pelos nazistas; é chocante que seus executores tenham sido estudantes da Universidade. No chão, uma inscrição assinala o local da fogueira e reproduz uma frase do poeta Heine (1820): “Onde se queimam livros, pessoas acabarão sendo queimadas”.

Na Bebelplatz, fachada da Universidade Humboldt.
O local da fogueira de livros.

Em 45 minutos de trem, fizemos um “bate e volta” a Potsdam, a “Versalhes alemã”. Na saída de Berlim e de outras cidades, por vezes avistávamos minúsculos lotes de terra cultivados. São os Kleingärten (pequenos jardins), utilizados por moradores urbanos para cultivos em pequena escala, prática difundida no século XIX por iniciativa do médico Moritz Schreber. Querendo promover hábitos saudáveis e obcecado em combater a masturbação (escreveu um livro contra ela), Schreber entendia que o cultivo da terra era adequado para os jovens ocuparem o tempo e as mãos. Os jardins fizeram sucesso; quanto ao resto, não sei.

Na monarquia prussiana, era em Potsdam que ficava a corte, especialmente no verão. Não visitamos o interior dos majestosos palácios ˗ a maioria do século XVIII, com algumas construções do XIX. Preferimos contemplá-los de fora e esticar uma gostosa caminhada à sombra das árvores do imenso parque; a cada ano, mais de 2 milhões de visitantes passeiam nele.

Um dos palácios de Potsdam.
Nos jardins dos palácios de Potsdam.
Outro ângulo do parque de Potsdam.

Demos também uma volta pela área urbana de Potsdam, que é realmente bonita, em particular no pedaço que margeia o rio Havel.

Potsdam: centro da cidade.
Em Potsdam, o rio Havel.

Chegamos a saborear a currywurst, salsicha típica berlinense. Mas não com a voracidade dos alemães: em média, cada um dá cabo de 30 kg de salsichas por ano. Felizmente, Berlim tem uma populosa colônia turca, com restaurantes de culinária mais leve e apropriada para dias quentes. Várias vezes almoçamos neles, sobretudo no bairro de Kreuzberg, e foi boa a relação entre qualidade e preço.

Nas refeições alemãs, sempre aparecem batatas, invariavelmente saborosas. O curioso é que elas só foram introduzidas no século XVIII, por iniciativa do rei prussiano Frederico II; como os alemães da época não as apreciavam, ele teve que usar ardis para vencer resistências. Hoje, porém, em piquenique alemão que se preza, não pode faltar a salada de batatas.

Berlim é terra natal do sonho de padaria. Em inglês, chama-se “Berliner”, assim como em alemão, mas em Berlim é “pfannkuchen”. Quando discursou na cidade em 1963, John Kennedy, solidário com a população local, declarou em alemão: “Eu sou um berlinense” (“Ich bin ein Berliner”). Para alguns, ele quis dizer: “Sou um sonho de padaria”.

Aproveitando o verão, andamos provando cervejinhas alemãs; sempre deliciosas. Mas não deu para chegarmos ao fim da lista: o país produz 5.000 diferentes tipos. Ao erguer o copo e exclamar “Prost!”, recomenda-se fitar os olhos da pessoa em frente. Quem não o fizer, diz a crença, será castigado com sete anos de sexo desagradável. Estou avisando!…

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Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.