Boipeba: chegar é difícil. Sair é muito mais

Annamaria Marchesini
Revista Passaporte
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10 min readOct 22, 2018

Um lugar delicado, onde matas e praias ainda resistem ao assédio do turismo, os moradores transbordam gentileza e onde beleza é sinônimo de paz e simplicidade

Boca da Barra, onde o rio do Inferno e o mar se encontram

O sol nascia em São Paulo quando deixei minha casa em direção ao aeroporto de Congonhas e descia por trás da mata quando cheguei ao rio do Inferno, na ilha de Boipeba, no arquipélago de Cairu, Bahia. De um ponto ao outro foram 2h30 de voo até Salvador, 2h30 de lancha de lá até Morro de São Paulo — onde tive que esperar algumas horas até conseguir um meio de transporte que me levasse, ainda naquele dia, para meu destino final. Finalmente consegui um quadriciclo pilotado por Patrick, filho de Doutor, um dos muitos guias que fazem passeios pela região com jipes 4x4 e motos de 4 rodas. Em pouco mais de 1 hora, depois de voar e sacolejar por estradas, trilhas de areia e praias, cheguei. Ah! E no meio do caminho Patrick ainda trocou de lugar com o pai, que assumiu o quadriciclo enquanto o filho pulou para a direção do jipe que voltava de um passeio.

Há anos eu queria ir a Boipeba. Sei que é difícil chegar e isto me animava ainda mais. Quanto maior a dificuldade, menos chances de encontrar danos causados pela exploração turística maciça. Maiores as possibilidades de encontrar um lugar ainda autêntico, de cultura preservada, sossego e segurança. Não me decepcionei, apesar de ter percebido em conversas e passeios que a paz e o meio ambiente da região estão ameaçados. Quando cruzei o rio num barco, auxiliada pelo Erick, guia de 21 anos que nasceu em Boipeba e sabe tudo do lugar, dei de cara com uma estranha construção, no formato de ginásio de esportes ladeado por lojinhas (muuuitas vazias) e coberto por plantas (talvez para dar um ar mais ecológico). É um shopping construído por um italiano que possui latifúndios na região há mais de 30 anos (disseram alguns moradores), planta cocos e fabrica derivados de leite para vender numa lojinha da cidade. Depois descobri que o tal empresário desmatou uma área enorme de sua propriedade para plantar apenas coqueiros — que explora fabricando óleo de coco vendido apenas na Itália — e tentou fazer um resort ou um condomínio na margem oposta, mas ainda não conseguiu. A população, contaram os moradores, é contra. Esta é a história que corre na cidade.

Um pedacinho de Boipeba

Passado o choque do shopping, subimos uma ladeira com casinhas e pequeno comércio até chegarmos à praça de Boipeba, um gramadão com areia onde barraquinhas de bambu e madeira vendem comidas e bebidas regionais à noite e as crianças brincam e jogam futebol até tarde. Não há carros em Boipeba. O transporte é feito em carrocinhas de um só cavalo ou jumento, bicicletas e carrinhos de mão. Para onde você olha há mata. Todo mundo se cumprimenta. Há cordialidade e educação. Pousadas, restaurantes e casas dos moradores se misturam ainda equilibradamente. Professores levam as crianças da creche para tomar banho de mar. Os cachorros são mansos, vivem soltos e tendo ou não donos, são bem tratados pelos habitantes e visitantes. Barcos saem para a pesca e passeios. Na areia das praias o lixo ainda é composto por folhas das árvores que avançam em direção ao mar. Boipeba ainda tem perfume de mato quando o vento sopra, à noite.

Escolhi uma pousada simples, na praça, a Hospedaria Casa de Mariana. É de um casal simpático, que deixou Salvador para viver em Boipeba e não se arrependeu. No primeiro dia, como cheguei tarde, só deu tempo de circular pela praça, pelas ruazinhas, ir até o cais de onde saem os barcos e que fica seco parte da noite por conta da maré baixa. Aliás, quem vai para Boipeba tem de se alinhar com as marés para saber quando os passeios saem, quando as praias terão areia, quando alguns pontos legais — como as piscinas naturais de Moreré — estarão acessíveis. Eu, por exemplo, fui na maré alta e as piscinas eram apenas um trecho de mar raso, porque os corais que formam as lagoas estavam submersos.

Trecho de praia em Tassimirim, na trilha em direção a Cueira e Moreré

No dia seguinte conheci as praias. Sem pressa, passeando, dá para ir até Moreré. Caminha-se por trilhas seguras e pela beira do mar. Há sombra de sobra e nenhum perigo. A primeira praia é a da vila de Boipeba, Boca da Barra, onde as águas do mar se misturam com as do rio do Inferno. Caminha-se até Tassimirim e, em seguida, praia da Cueira. Fiquei por ali mesmo, aproveitando o mar de águas cálidas e poucas ondas. Quando bateu a fome, saboreei a moqueca de camarão de Nadimar e Paúca. Eu poderia ter ido até Moreré e, com um esforço a mais, praia do Bainema. Mas temi que a maré subisse e me impedisse de cruzar o rio Oritibe de volta. Teria que buscar uma condução na vila de Moreré. Preguiça. A praia da Cueira é uma lindeza.

Mas ali também o equilíbrio parece estar ameaçado. Comerciantes das barracas formaram uma associação para impedir que os empregados do tal italiano os tirassem de lá, como exigiram há um tempo. O que corre na cidade é que apenas um comerciante teria licença para ficar. Mas a associação está vencendo a luta e as barracas permanecem na Cueira com suas delícias para quem quiser experimentar.

Praia da Cueira

No dia seguinte embarquei na lancha do Jota para fazer a volta à ilha de Boipeba com duas soteropolitanas, uma gaúcha que vive em Brasília e um casal — ele inglês e ela francesa — que mora em Nice e está conhecendo o Brasil. Aliás, eles estavam em Salvador quando houve a primeira manifestação coordenada pelas mulheres contra Bolsonaro e nos perguntaram, curiosos, “como as pessoas podem querer votar neste homem? Ele é um Trump! É um retrocesso como o Brexit!”. O casal estava maravilhado com a beleza da Bahia, mas realmente surpreso com a possibilidade de Jair Messias vencer. “Pobre Brasil”, lamentou a dupla.

Demos a volta na ilha saindo da Boca da Barra. Passamos por Tassimirim, Cueira, pelo que seriam as piscinas naturais caso a maré estivesse baixa, paramos na praia do Moreré para dar uma volta, fomos até a praia de Bainema, na Ponta dos Castelhanos tomamos o famoso cacau com biribiri (uma caipirinha com cacau e o biribiri, fruta regional azeda como limão) e almoçamos na Cova da Onça, um lugarzinho mínimo numa enseada da ilha, em frente à Coroa Grande. Jota nos levou ao Mangue do Catú, uma maravilha da natureza, e percorreu toda a volta da ilha nos mostrando pequenas vilas, curiosidades e contando histórias engraçadas. Antes de voltarmos à vila paramos num barco onde são servidas ostras maaaravilhosas. Ele fica próximo a um cultivo de ostras, a alguns metros da beira do mar. Chegamos em Boipeba ao entardecer e ainda deu tempo de subir até a pousada O Céu de Boipeba, no alto de um morro, para assistir ao pôr do sol lá de cima. O esforço da subida valeu, viu?

Cova da Onça

A alguns dias do primeiro turno das eleições, o assunto também corria por Boipeba. Naquela noite fui jantar na Casinha Latina, do jornalista Gilvan, que serve bruschettas deliciosas. Na frente do restaurante uma placa indicou que ali eu estaria em casa: num quadro negro, em letras grandes e coloridas, destacava-se um belo #ELENÃO. Gilvan tem uma boa história: é do interior da Bahia, fez jornalismo em Salvador e mestrado em Buenos Aires, onde morou por 6 anos. Quando decidiu voltar ao Brasil, escolheu Boipeba. É outro que não se arrependeu. Voltou a Salvador para votar. Ali em seu restaurante, conversando com outros clientes, ouvi que a Rede Globo queria ter gravado cenas da novela “O Segundo Sol” em Boipeba, o que não aconteceu. Deram-me 2 motivos que teriam levado a emissora a desistir: 1) a população havia sido contra e 2) o prefeito havia cobrado um imposto alto para que a emissora usasse a cidadezinha como locação. Não fui atrás da história, mas seja qual for a versão verdadeira e se realmente a Globo quis isso, fiquei feliz por não ter conseguido ou teria sido mais uma ameaça à frágil Boipeba. Mas me pergunto por que o autor deu o nome de Boiporã à vila natal da heroína da ficção. Lembra Boipeba, não é?

Foi difícil dormir naquela noite sabendo que deixaria Boipeba no dia seguinte. Tinha que votar em São Paulo, mas queria ficar, me embrenhar mais pelas trilhas da ilha, mergulhar mais em seu mar, conversar com seus moradores sempre cheios de assuntos “pra mais de metro”. Gente que tem um amor arretado por aquela terrinha bonita. Ah, eu me esconderia em Boipeba por um bom tempo. “Aqui tem casa boa, barata e com internet”, provocou Gilvan.

Charretes na praça de Boipeba

Na sexta zarpei com as meninas de Salvador para Morro de São Paulo. Fretamos a lancha do Jota para irmos direto. A outra opção seria um barco que faria um passeio pela ilha e chegaria em Morro no fim do dia. Com Jota fomos tranquilas, paramos só em Garapuá para almoçar e nos deliciar com a prainha deliciosa e linda e fomos direto para nosso destino. Depois de 3 dias de sossego, praias tranquilas e vazias e natureza exuberante, com uma paz inacreditável, chegar à agitação de Morro de São Paulo me tirou do eixo. Fiquei irritada com o amontoado de lojas e hotéis das rampas cheias de turistas. “Aqui 90% dos moradores são argentinos”, alertou-me uma moça. Lembrei de Boipeba sossegada e me deu vontade voltar correndo. Lá Erick havia me dito que uma das diferenças entre uma e outra era de que ”em Morro os turistas haviam virado donos e os nativos são empregados. Em Boipeba os baianos eram donos e os turistas eram…turistas”.

No sábado de manhã, para fugir da muvuca e da fila interminável de bares e restaurantes da orla, fui até a Quarta Praia e aproveitei as piscininhas da maré baixa para me divertir e observar, na areia, as idas e vindas das charretinhas puxadas por cavalos que fazem o transporte das pessoas que moram mais longe (também há pequenos ônibus que circulam por dentro da ilha de Tinharé, onde fica Morro). Às 15 horas embarquei no catamarã que me levou para Salvador. No dia seguinte voltei para São Paulo e votei, com esperança na vitória da Democracia.

Parte da orla de Morro de São Paulo, à noite

Planejamento, paciência e grana

Há duas maneiras mais conhecidas de se chegar a Boipeba. Uma foi a que eu fiz, pegando a lancha ou catamarã em Salvador e enfrentando 2h30 de ondas até Morro de São Paulo. Achei bem seguro. O marinheiro explicou: “Não é o barco que balança, é o mar”. Faz sentido. Mas cometi um erro: para ir de Morro até Boipeba o melhor e mais barato é chegar de manhã e aproveitar os carros e barcos que saem em passeios turísticos e vão até lá. Carros não entram. Param na margem oposta do rio do Inferno que é cruzado em barcos. Os jipões só podem ir até lá enquanto a maré está baixa. À tardezinha ela começa a encher e a faixa de areia diminui. Dá para deixar tudo meio reservado. Há agências de turismo que fazem isso.

Sem Doutor, eu teria que fretar um jipão e, como estava sozinha, isto me custaria ao menos 400 reais, foi o que me disseram. Ou dormir em Morro de São Paulo e pegar um passeio na manhã seguinte. Não quis. Negociei um preço bom com ele e conseguimos chegar a Boipeba antes da maré encher e o impedir de retornar. Valeu bem a pena.

A outra maneira é ir do terminal de São Joaquim, em Salvador, com o ferry-boat para Bom Despacho, na Ilha de Itaparica, numa travessia de 1 hora, mais ou menos, e seguir pela estrada BA-001 até Valença. São 2 horas de viagem. De lá lanchas ou catamarãs vão para Boipeba. Conforme o transporte, são mais 2 a 4 horas de viagem. Dá para fazer o trecho de Itaparica a Valença de carro ou de ônibus. Há sites, como o da Bahia Terra (http://www.boipebatur.com.br/ilha-de-boipeba), que explicam como chegar lá partindo de diversos pontos. Há inclusive aviões pequenos que fazem o percurso, mas nem me passou pela cabeça optar por eles.

Quando estava saindo de Boipeba vi uma placa informando que há lanchas que fazem o percurso entre Salvador e Boipeba, direto. “É só falar com as agências”, foi o que Jota me disse. “É tranquilo”, garantiu. Para quem não enjoa e não tem medo de sacudir no mar, tudo bem. Eu sou deste tipo, mas em alguns momentos, quando estava na lancha de Salvador em direção ao Morro, dei graças a Deus por dar minhas braçadas na piscina do SESC todas as semanas. Saber nadar me deu uma certa tranquilidade.

Eu, que não tenho dinheiro sobrando, achei a alimentação em Boipeba cara, mas há opções de PFs gostosos e mais baratos. Uma comerciante me explicou que no preço de alguns pratos e de objetos estão embutidos os custos do transporte, já que Boipeba é uma ilha e tudo chega de barco. Os passeios também não são baratos porque, segundo alguns barqueiros, o combustível lá é bem caro.

Boca da Barra, em Boipeba
O preparo do cacau com biribiri
Praia em Boipeba
Boipeba
Cova da Onça
Paisagem vista da pousada O Céu de Boipeba

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Annamaria Marchesini
Revista Passaporte

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