Nota: este artigo é sobre a freguesia de Caxias, no distrito de Lisboa (Portugal) e não sobre Caxias do estado do Maranhão (Brasil)

Caxias: Memórias do passado banhadas pelo mar

Patrícia Maia Noronha
Revista Passaporte
Published in
8 min readJun 25, 2018

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Em apenas três quilómetros quadrados, Caxias concentra inúmeros tesouros: memórias de tempos palacianos, ordens religiosas e a história quase secreta de um padre que mudou para sempre a vida de jovens marginais. Há ainda uma praia e três fortes, entre a Ponte 25 de Abril e o Atlântico. Tudo isto a 30 minutos de comboio, se viermos de Lisboa.

Chovia a cântaros. Foi com esforço que me fiz “à estrada” (de autocarro!) até ao Cais do Sodré. Há uns bons anos que não apanhava o comboio da Linha de Cascais — excetuando aquela vez em que fui ao festival Alive!, em Algés, e me sujeitei a carruagens mais cheias do que latas de sardinha, mas isso não conta até porque me senti mais “dead” do que Alive!.

Quando cheguei ao Largo do Cais do Sodré continuava a chover a potes. Não esmoreci. Dentro da estação, hesitei entre as bilheteiras com pessoas e as bilheteiras automáticas. Havendo fila nas primeiras, optei pelas últimas. O problema é que são muito diferentes das máquinas do metro pelo que fiquei algum tempo a tentar perceber o menu.

Um jovem muito magro de olhar esgazeado viu na minha hesitação a sua oportunidade. Aproximou-se, solícito. Depois de me ajudar com o menu — ajudou tanto que nem percebi como saiu o bilhete — pediu-me uma moeda para viajar até Tomar.

Imagem da Ponte 25 de Abril captada a partir do comboio

“As pessoas pensam que é para a droga mas não é”. Dei-lhe uma moeda. Ao meu lado, uns turistas luso-franceses que tinham recusado a ajuda do jovem “desterrado” ainda estavam de volta do menu (acabaram mesmo por desistir e dirigiram-se à bilheteira com pessoas), pelo que não me arrependi de ter gasto 50 cêntimos naquela ajuda personalizada. “O comboio sai daqui a 15 minutos”, disse o jovem, visivelmente feliz com a pequena recompensa. Indicou-me a linha — era a linha 3. Ainda deu para beber um café na estação antes de “embarcar”.

O comboio arrancou à hora certa. Arranjei um lugar sentada — e à janela! Para quem vive em Lisboa, andar de comboio é sempre uma pequena aventura. Sobretudo neste, que acompanha tão de perto o nosso Tejo e depois a Marginal, até Cascais. Colada ao vidro, vi passar diante dos meus olhos as curvas supersónicas do MAAT, os tijolos vermelhos da Fábrica da Eletricidade, o Padrão dos Descobrimentos, as linhas retas do CCB, a Torre de Belém e, finalmente, a torre inclinada de Algés que controla o tráfego marítimo.

Jardim de princesas

O percurso até Caxias demorou apenas 30 minutos, o suficiente para a chuva abrandar (obrigada, São Pedro). Dirigi-me imediatamente ao meu primeiro destino: o Jardim da Cascata, na Quinta Real, a escassos metros da estação.

Foi no século XVIII que começou a edificação desta Quinta mas foi já no século XIX que o espaço, sobretudo os seus jardins inspirados no estilo francês de Versalhes, conquistaram a nobreza portuguesa. A rainha D. Maria I e o seu rei consorte e o rei D. João V elegeram a Quinta Real como o local predileto de veraneio, desfilando regularmente com a sua corte naquele jardim de arbustos desenhados a regra e esquadro, lagos e fontes. Foi também aqui que viveu o rei D. Luís, depois do terramoto e antes de se mudar para o Palácio da Ajuda. Palmeiras e araucárias, importadas do Brasil, conferem a este jardim tão europeu uma aura exótica que remete para as “conquistas” além mar.

O ponto alto do Jardim seria a cascata, artificial, que se ergue junto ao muro mais elevado da propriedade terminando naquilo que parece ser um altar. Contudo, a cascata está desativada e perde o seu efeito. Vale a pena, mesmo assim, subir as escadas que ladeiam a construção e observar daí o jardim. Uma vista magnífica que se estende até ao oceano.

Apesar de estar aberto todos os dias e de a entrada ser gratuita, o Jardim da Cascata parece ter caído no esquecimento das pessoas — eu era a única visitante — e das entidades que o gerem. É notório algum abandono na manutenção do espaço verde e dos edifícios. O que, contudo, reforça o seu lado misterioso. É que, durante um passeio solitário por este espaço bucólico é fácil imaginar reis, rainhas, príncipes e princesas a caminharem ao nosso lado. Falta saber qual será o destino deste património único que a autarquia quer por à venda.

O jardim possui ainda dois magníficos pavilhões octogonais. As traseiras do pavilhão identificado, no mapa, como “sala de leitura”, dá acesso a uma área verde muito selvagem (esta, sim, votada ao mais profundo abandono) que por sua vez conduz a uma zona bem tratada com relva e banquinhos (onde me cruzei com uma senhora e o seu cão).

O padre que acabou com as cadeias juvenis

Esta saída secundária do jardim deixou-me muito perto do meu segundo destino: a Igreja da Cartuxa. Tinha grandes expetativas em relação a esta igreja — erguida no séc. XVIII com uma imponente fachada em granito — e ao respetivo convento (que, a par com o de Évora, é um dos dois únicos conventos cartuxos portugueses). Deparei-me com dois enormes portões trancados a cadeado. Parece que a igreja só abre para a missa de domingo (era sábado), entre as 12h e as 13h. E também para concertos ocasionais de música — o guitarrista Pedro Jóia atuou por lá recentemente.

Mas foi graças a esta visita frustrada que descobri a história mais fascinante desta minha “viagem” a Caxias — e que irei desvendar daqui a nada. Feita a fotografia entre as grades do portão, continuei a descer a Rua da Cartuxa em direção ao mar. Pelo caminho fica a Casa de Massarelos, antigo Paço Real e atual sede da Fundação Casa de Bragança que esconde no interior inúmeros tesouros. Não consta que a casa esteja aberta ao público mas dá para espreitar, entre o portão, este edifício construído em 1845, em terreno que, na época, ainda estava afeto à Quinta Real. Talvez não seja difícil, por exemplo a pretexto de mera curiosidade, conseguir uma visita.

Segui caminho e parei na estação para mais um café (na realidade, um bolo). “A menina não é de cá, pois não?”, perguntou o dono. “É que isto é uma aldeia e eu conheço toda a gente”. Nunca pensei que alguém se referisse a Caxias como “uma aldeia”. Foi com espanto que confirmei, na página da autarquia, que a freguesia tem apenas 3,4 km quadrados. Tanta coisa preciosa concentrada num espaço tão minúsculo.

Confessei-me forasteira lamentando o facto de não ter conseguido visitar a igreja. Foi o mote para o senhor me contar a história da Casa de Caxias, uma instituição desenhada de raiz pelo padre António de Oliveira (1867–1923), considerado por muitos o maior educador de Portugal. Este homem, atualmente votado ao mais profundo esquecimento (mesmo na internet, depósito de todo o tipo de informação útil e inútil, é escassa a informação sobre o seu percurso), criou, no Convento da Cartuxa, uma casa alternativa à Casa de Correção das Mónicas — espaço que dirigiu durante alguns anos e que comparou a “estrebarias de gado humano”.

Padre António de Oliveira

Em Caxias, o padre António de Oliveira pôde concretizar o ambicioso plano de oferecer àqueles jovens mais educação e menos correção. Ali havia trabalhos manuais, canto coral e música (com um orfeão e uma banda), ginástica sueca, jardins escolares, uma caixa económica escolar, um museu pedagógico, e um currículo completo de instrução primária, “em cujos exames os internados obtinham grande percentagem de distinções”, lê-se num artigo da revista Interações, especializada em assuntos sociais.

Foi também o padre António de Oliveira que exigiu, a nível institucional, a substituição do termo Casa de Correção para Centro Educativo. Confirma o senhor do café, orgulhoso pelo facto do seu tio-avô ter sido um dos diretores da escola, que os alunos eram “extremamente talentosos” e que a população da zona, quando precisava de certos serviços ou reparações, recorria muitas vezes a estes jovens. “Muita gente famosa, vereadores e artistas de renome, passaram por ali”, garante o dono do café. Seria preciso um novo artigo para descrever todo o trabalho do padre António de Oliveira que, apesar da sua morte precoce, deixou dezenas de livros e manuais publicados. Pouco antes da sua morte, António de Oliveira recusou o Grau de Grande Oficial da Ordem de Cristo. Segui viagem, inspirada pela obra notável deste homem.

Entre o rio e oceano

Praia de Caxias com o forte de São Bruno à esquerda e o Forte da Giribita à direita

É inaceitável, inadmissível, um verdadeiro pecado (acho que já passei a ideia), andar por Caxias sem atravessar para o outro lado da Marginal. É ali que está o monumento caxiense mais histórico (direi mesmo, primordial) de todos: o oceano Atlântico.

Três fortes delimitam esta praia que, de um lado, nos oferece vista sobre a ponte 25 de Abril e, do lado oposto, o mar infinito. Quem pensa que a praia de Caxias é feia e suja engana-se. A zona tem vindo a ser requalificada. A praia está limpa (ainda que não faça parte da rede balnear), tem duches e um enorme café rodeado de relva onde dá muita vontade de ficar a preguiçar até ao por do sol.

Forte de São Bruno com a ponte 25 de Abril ao fundo

Antes da despedida, valeu a visita ao forte de São Bruno, sede da Associação dos Amigos dos Castelos, e ao forte da Giribita (também conhecido como Forte de Nossa Senhora de Porto Salvo). Lá ao fundo, apesar do tempo cinzento, via-se claramente o forte de São Lourenço do Bugio, no seu montinho de areia erguido a meio do mar.

Na hora de regressar, percorri o largo passeio que foi construído recentemente entre as praias de Caxias e da Cruz Quebrada. Aí apanhei o comboio. Dentro da carruagem, e apesar da hora ainda não ser muito adiantada, encontrei vários jovens de cerveja na mão. Comecei, então, outra viagem, a viagem pela memória da minha adolescência, quando vivia em Algés e entrava a bordo daquele comboio, com destino ao Cais do Sodré para depois subir, a pé, a Rua do Alecrim até ao incontornável Bairro Alto.

Todas as imagens são da autoria de Patrícia Maia Noronha, à excepção da fotografia do padre António de Oliveira retirada deste livro (ver link).

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Patrícia Maia Noronha
Revista Passaporte

Formei-me em jornalismo só para poder contar estórias. Já dormi sozinha num bosque. Autora do livro O Elo Invisível. patriciamaianoronha@gmail.com