Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
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8 min readJan 26, 2022

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Depois de longo tempo na toca, minha mulher e eu resolvemos viajar ao exterior. Não para muito longe: o Chile é logo ali, quatro horas de voo desde Guarulhos.

Nas medidas sanitárias, os chilenos são cuidadosos, e fomos logo nos inteirando dos atuais requisitos para entrar lá. Antes do embarque, há alguns passos:

1. Cadastrar na internet os comprovantes de vacinação para obter o Pase de Movilidad Chileno. Naqueles dias o site do SUS estava travado; mas o Chile aceitou o documento de São Paulo.

2. Preencher, em site específico, uma declaração informando as próprias condições de saúde e nosso endereço de alojamento em Santiago.

3. Seguro médico de viagem incluindo eventuais gastos com Covid-19, no valor mínimo de US$ 30.000.

4. Nas 72 horas anteriores ao embarque, teste de PCR, com resultado negativo.

Munidos dos comprovantes, embarcamos. No avião, todos de máscaras, conforme o figurino.

Não satisfeitos, os chilenos estipulam novo PCR no desembarque lá. Faz sentido: há risco de contágio nas 72 horas antes da viagem (ou no voo). Assim, logo após passarmos na imigração, mas antes de pegarmos as malas, fomos encaminhados à testagem, que é gratuita. Fila grande, mas rápida ˗ trabalhava ali uma legião de jovens, e tudo fluía organizadamente.

Ao entregarem o protocolo, prescreveram-nos quarentena até o resultado dos testes. O mesmo escutaríamos no check-in do hotel: permanecermos provisoriamente no quarto. Comida? Bebida? Que pedíssemos por interfone.

Os resultados não demoraram. Ao recebê-los, fomos mostrá-los na recepção do hotel para que eles fotografassem e pudessem, por sua vez, mostrá-los quando fiscalizados.

Diariamente, preenchíamos um questionário digital indagando possíveis sintomas. Se demorássemos a enviá-lo, um email nos alertava durante o dia. E sempre levávamos conosco o Pase de Mobilidad: restaurantes e outros estabelecimentos costumavam exigi-lo.

Era Ano Novo, e muitos lugares estavam fechados. Saímos então caminhando pela cidade, que é plana e boa de andar. Começamos pelas bem cuidadas ruas de Providencia, arborizado bairro onde se localizava o hotel. O calor seco nos dava sede, mas tivemos fôlego para chegar ao centro e fomos flanar no sombreado Parque Florestal.

Como outras capitais, Santiago tem na área central prédios imponentes, no estilo das edificações públicas de finais do século XIX e inícios do XX. Entre eles, o Museu de Belas Artes, que posteriormente visitaríamos para admirar as linhas de seu interior, típicas da arquitetura da época. O prédio é mencionado no romance De Amor e de Sombras, de Isabel Allende: inconformado com o golpe de Pinochet, um personagem sobe ao terraço e lá de cima atira panfletos críticos que em certa passagem mencionam o anarquista russo Mikhail Bakunin (1814–1876). No dia seguinte, um comunicado militar intima o Sr. Bakunin a se apresentar às autoridades…

Museo de Bellas Artes.

Além da desarrumação também presente em outros centros metropolitanos, o de Santiago tem marcas dos recentes conflitos de rua. Por toda parte, paredes pichadas, e muitos prédios públicos e lojas continuam protegendo suas fachadas com tapumes. Inaugurado em 2015, o museu dedicado à cantora e compositora Violeta Parra foi atingido por três sucessivos incêndios, sem que se tenham apurado as responsabilidades.

Naquela semana, conhecemos o Museu de Arte Pré-colombiana ˗ no gênero, um dos melhores que já vi. Embora não muito grande, tem valioso material das culturas nativas da região. Entre os povos de lá, destacaram-se os mapuches, que resistiram valentemente aos conquistadores europeus, como haviam feito com os incas, quando estes procuraram estender seu império para aqueles lados. Após sucessivas derrotas, os espanhóis preferiram permanecer fora do território mapuche, que levaria séculos até incorporar-se ao país.

Também percorremos o Museu da Memória e Direitos Humanos, aberto em 2010, aos vinte anos da redemocratização. Bem documentado e comunicativo, focaliza as atrocidades da ditadura chilena. Segundo o relatório da Comissão Valech (2011), aquele regime provocou cerca de 3.225 assassinatos, 27.000 prisões políticas e 250 mil partidas para o exílio. O retrato mostrado no museu é doloroso, mas recomendo a visita.

A região central tem pelo menos dois amplos e interessantes centros culturais. Um deles, Gabriela Mistral, tem seu nome homenageando a poetisa chilena premiada com o Nobel de Literatura. Com a virada do ano, havia pouca coisa programada, mas admiramos algumas obras de arte, como o enorme peixe de vime pendurado no teto.

Na Alameda O’Higgins, principal artéria de Santiago, o Centro Cultural Gabriela Mistral.
Pátio de entrada do Centro Gabriela Mistral.

O outro, inaugurado há poucos anos, é o Centro Cultural La Moneda, em espaço subterrâneo sob o Palácio Presidencial. Quando o visitamos, havia exposições de fotografia, serigrafia e artesanatos variados.

Serigrafia exposta no Centro La Moneda.

Fizemos dois passeios nas redondezas de Santiago. O primeiro ao Cajón de Maipo, na encosta dos Andes. Subimos o vale do rio Maipo, e depois o do rio Yeso, seu afluente, que tem águas brancas devido às minas de gesso ali existentes. Em meio a montanhas majestosas, encontramos um reservatório de água que abastece Santiago. Vendo aquele azul, sentimos mais confiança para beber água da torneira.

Vista do Cajón de Maipo.

No caminho, paramos para atravessar a pé um túnel ferroviário desativado. Na escuridão total, fomos avançando até a luz aparecer.

Entrada do túnel.
Lá dentro…

Em outro bate-volta, pegamos um ônibus na rodoviária e tomamos o sentido oposto, para o litoral, até Isla Negra, onde o poeta Pablo Neruda tinha casa à beira-mar. Não é praia, mas um deslumbrante panorama de mar e rochas. Ali ele escreveu várias obras, na inspiradora presença de Matilde, companheira do terceiro casamento.

Casa de Neruda em Isla Negra.
O mar, visto da casa de Neruda.

Adquirida em 1938, a casa foi reformada por Neruda, que andou acrescentando “puxadinhos”. Colecionador incansável, ele guardava ali a enorme variedade de objetos exóticos, até divertidos, que ia reunindo nas andanças pelo mundo ˗ borboletas dispostas em quadros, máscaras indígenas, miniaturas de navios dentro de garrafas, um cavalo de madeira de tamanho quase natural…

No restaurante, pedi o caldillo de congrio, prato predileto de Neruda ˗ que chegou a lhe dedicar uma ode. Não é iguaria de rico, mas receita tradicional chilena: cozinha-se o peixe num caldo que leva alho, cebola, tomate, camarões, azeite... Estava realmente delicioso, e a mesma sensação teve Odete ao saboreá-lo em outro restaurante.

“Que en el caldillo / se calienten / las esencias de Chile, / y a la mesa / lleguen recién casados / los sabores / del mar y de la tierra / para que en ese plato / tú conozcas el cielo.”

Em Santiago, visitaríamos sua outra casa, “La Chascona”, o refúgio onde encontrava Matilde, enquanto a ligação entre eles permanecia sob relativo segredo. Chascona significa “descabelada”, apelido da exuberante Matilde.

No romance La Desesperanza, José Donoso sugere que Neruda escolheu aquela casa por ser vizinha do Zoológico, particularmente do leão Carlitos, querido da garotada. Trazido de um circo do norte, era manso e desdentado ˗ “uma droga de leão, mas não tínhamos outro”. Donoso imagina Neruda e Matilde acordando de madrugada ao som dos rugidos. É que Carlitos só rugia de noite ˗ diziam que por medo do escuro…

O poeta morreria em 1973, logo após o golpe, e nesse meio tempo, seguidores da ditadura depredaram a casa. Briosa, Matilde fez questão de realizar o velório ali mesmo, no espaço vandalizado: assim, diplomatas e jornalistas estrangeiros teriam uma amostra do que acontecia no Chile.

Depois de uma semana, fomos para Puerto Natales ˗ três horas de voo para o sul. Com 20 mil habitantes, a cidade é capital da província de Última Esperanza ˗ nome indicativo das dificuldades enfrentadas pelos conquistadores; também existem o porto Hambre (fome), a ilha Desolación, o porto Misericordia…

Banhado por um braço de mar onde nadam cisnes, Puerto Natales serve de base para os passeios ao Parque de Torres del Paine e outras belezas. Com as incertezas do tempo, porém, sempre há riscos de cancelamento, e por isso convém pagar em dinheiro, de recuperação menos trabalhosa que o cartão de crédito.

Calçadão de Puerto Natales
Desfilando nas águas geladas…

O Parque de Torres del Paine fica a 50 km; e lá dentro, há boas distâncias a percorrer. Em nosso tour, volta e meia descíamos da van para um pequeno giro, contemplando as paisagens e fotografando ˗ com temperaturas de 6 a 8 graus, do verão patagônico, e ventos bem fortes. Quem viajar no inverno terá frio mais rigoroso, mas sem ventanias.

As vistas são fantásticas, e as fotos, mais eloquentes que qualquer descrição.

Para guardar de recordação. Excetuada esta, as demais fotos são de Odete Polesi.
Primos-irmãos das lhamas, guanacos circulam no parque.

No dia seguinte, conheceríamos outro belo recanto, a Laguna Sofía, mais próxima da cidade.

Laguna Sofía.
Na Laguna Sofía, uma família de gansos-de-Magalhães (“cauquenes”), encontrados em várias partes do Cone Sul.

O regresso ao Brasil teve menos trâmites. Para o embarque, requereram novo teste ˗ em poucos dias, o terceiro cotonetão cutucando nossas narinas ˗ e que preenchêssemos um extenso formulário. Na chegada a Guarulhos, bastou mostrarmos os comprovantes de vacinação e do teste. Melhor que nada, mas os chilenos são mais previdentes. Exemplo disso é o motorista que ao nos levar ao aeroporto comentou seu alívio por ter o filho de 5 anos já vacinado contra a covid.

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Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.