Chegadas e Despedidas

Dizer adeus é um ato de coragem.

Flay Alves
Revista Passaporte
6 min readApr 30, 2018

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Coisa que gosto é poder partir sem ter planos. Melhor ainda é poder voltar quando quero.

Chegadas e partidas. “Todos os dias é um vai e vem. A vida se repete na estação”. A vida se repete. E repete. E repete. Como um disco arranhado que não consigo parar de ouvir e sentir. Mas como diria a música, esse vai e vem “são só dois lados da mesma viagem”.

Há despedidas que são leves, há outras que são sofridas. Há despedidas que são como pássaros alçando voos. Há outras que são como um vaso de cristal se quebrando. Há aquelas que são como pedra dura em água mole. Nos batem, nos machucam, porque somos volúveis, totalmente solúveis a vida (rima proposital).

O motor ronca, esquenta e vai levando embora certa italiana que tanto estimo. Minha mão acena para seus olhos brilhantes e sei que este partir é apenas um até logo. Em breve estaremos novamente sentadas na mesa de um pub em qualquer parte do mundo, comendo nachos ou batatas bravas e falando de amores, sonhos e aventuras.

Meus passos de volta para casa estão pensativos. A cidade está deserta. O silêncio ecoa lá fora. O barulho reina aqui dentro. Estou imersa em lembranças. Penso agora nas tantas vezes que tive que partir e dizer adeus a pessoas, lugares, sensações e sabores. Quantas e quantas vezes eu me acovardei e fui embora sem me despedir?

Sim, eu já quis sair pelos fundos. Eu já saí pelos fundos tantas vezes. Cabisbaixa, me esgueirando pelos cantos, renegando as vivências profundas, fugindo das emoções intensas. Mas hoje, no auge dos 25 anos, já não há mais tempo e isso não é necessariamente sobre idade, mas sobre estado de alma.

Lembro agora das grandes partidas da minha vida.

Eu ainda era criança quando optei por estudar em um internato. Foram três anos e meio longe da minha família.

Era novembro de 2011 quando fui embora do Maranhão para Goiânia cursar jornalismo e iniciar a caminhada rumo ao meu sonho.

Fevereiro de 2016. Era madrugada e lá estava eu e minhas malas outra vez, rumo a Portugal e depois para a Inglaterra.

Essas foram as três grandes partidas da minha vida que, inevitavelmente, mudaram o meu destino. Lembro cada uma delas como se fosse hoje. Em todas elas posso ouvir o barulho, aquele barulho que rasga o peito.

Sabe quando você está dentro do carro, indo embora de algum lugar, deixando memórias marcantes para trás, e o arranque do motor se funde ao som do seu coração? Ao ranger de dentes da sua alma. Nesse momento a curva que o carro faz se torna muito parecida com as curvas da sua vida, com caminhos que depois de escolhidos nos tiram a vista de quem um dia fomos.

Você quer chorar, mas não pode. A dor quer jorrar, mas você tem de segurá-la na mão, você precisa ser forte, você precisa mais do que isso, você precisa aparentar ser forte. Todos precisam saber. Você é forte, você é capaz de partir. Dizer adeus é um ato de coragem. A parte mais difícil é: essas partidas são escolhas. Não são imposições, são decisões e você necessita pagar o preço por elas. Nesse instante a sua alma é como um passarinho sendo esmagado nas mãos da vida. Sempre que me encontro nesses momentos posso ouvir ao longe a voz de Maria Rita me dizendo: “O trem que chega é o mesmo trem da partida. São só dois lados da mesma viagem”.

[…]

O grande dia chegou. A hora da partida e do regresso, pois como me disse certa vez um amigo de cabelos encaracolados e caminhos improváveis, uma das coisas mais magníficas em viajar é ter um lugar pra voltar. É ter pessoas a quem possamos chamar de lar.

It’s a rainning day. Hoje é domingo, sim, hoje está um dia chuvoso. Quando eu acordei olhei através da janela e vi um ipê amarelo. Vi também outras cores, muitas outras cores. As cores da vida, mesmo em dias cinzentos como esse.

Este será meu último café da manhã em Londres. Talvez — e só talvez — virão outros, mas só daqui a um longo tempo. No próximo domingo eu provavelmente estarei comendo pão de queijo na padaria da esquina de casa.

O ônibus acaba de chegar. Olho para o mundo ao meu redor. Os arranha-céus, os prédios residenciais, a torre da igreja e fotografo cada detalhe com a minha alma.

O motor ronca e eu já sei o que esse barulho significa. A cidade está indo embora, fugindo dos meus olhos, escapando por entre os meus dedos. Ela se esvai, se dissipa e se mistura ao ar, essa vida que flui em nossos pulmões. Ela se esvai e de repente já não há mais cidade, apenas estrada.

Essa sensação também me é familiar. É outra coisa magnífica nessa arte de viajar: sentir-se na estrada, literalmente. A caminho do aeroporto que vai me levar de volta pra casa vejo beleza e grandiosidade por entre a relva. É tão incrível a visão da qual desfruto agora. Fecho os olhos e posso ver os astros em comunhão. Sol, lua, estrelas. Posso ver o eclipse dos fenômenos. Nascer e pôr do sol se sobrepõem, como se não vivessem em tempos opostos. De alguma maneira eles encontraram uma era comum. Sinto o vento, ouço o mar. O cheiro que sobe até as minhas narinas é doce e o sabor é fresco. Vejo o zumbido das estrelas e ouço luzes. Ouço luzes e vejo tantas outras coisas que como diria Drummond, eu não ouso compreender. Mas isto só é possível quando acolhemos a transitoriedade da vida, esse instante na eternidade.

“Coisa que gosto, gosto mesmo, é poder partir sem ter planos. Melhor ainda é poder voltar quando quero”. Esse meu vagar por um pedacinho do mundo me fez perceber que aquela linha do horizonte a qual eu tanto observava quando criança, e que fazia eu me perguntar o que haveria depois dela, é muito maior, muito mais além, mas também muito mais generosa.

Me chama a atenção o nome da música. Encontros e despedidas. As chegadas são, aos olhos da autora, momentos de encontros, mas ao falar das despedidas não quer chamá-las de partidas, tampouco de desencontros. São despedidas, esse ato bonito de dar um cheiro no pescoço e um beijo gostoso em tudo aquilo que floriu nossos dias, nossa passagem por determinado lugar. Não importa se nunca mais verei essas pessoas ou esses lugares, o importante é poder botar pra fora o contentamento, a gratidão em ter vivido. Como diria um amigo meu, é melhor morrer com memórias do que com sonhos. Que essas memórias, quanto mais intensas sejam, não se convertam em dias melancólicos, que essas vivências marcantes tenham despertado em nós um olhar de fome e sede diante da vida. Que as experiências malucas e improváveis tenham nos ajudado a exercitar a capacidade de ser feliz. Que estes intercâmbios não tenham sido apenas sobre conhecer novos lugares no mundo, mas sobre conhecer novos lugares e emoções dentro de mim.

[…]

No I won’t be afraid. No I won’t be afraid.

Olho para trás e vejo os pássaros em revoada. Todos juntos realizam uma bela exibição. Bem E. King soa como uma orquestra para esse voo conjunto. Stand by me é a melodia perfeita para essa cena. De repente, na curva do voo, eles se dispersam e um instante depois já não estão mais juntos. Dali a alguns segundos tudo o que vejo são andorinhas em voos solitários. Metáfora ideal para essa jornada da vida. Não que o nosso fim seja a solidão, não é isso. Essa cena é sobre o nosso destino, estar em movimento. Mesmo que optemos por morar na mesma cidade a vida inteira, ao nosso redor o mundo ruge. Mesmo que os dias pareçam tal como certo pacato vilarejo, poema da minha infância de Hebe Coimbra, “pelo qual passava um rio e vivia-se o dia-a-dia na maior sensaboria”. Esse pacato vilarejo onde não havia “nenhum fato singular, nenhum feito notável, nada de espetacular”. Esse tão pacato vilarejo onde via-se “tudo, tudo, sempre igual ou, senão, bem parecido”. Ainda assim, o rio está correndo, e por mais banal e costumeiro que pareça, aí há movimento. Rubem Alves define essa magia da vida muito melhor do que eu. “Aprendo que tudo passa menos o movimento. É nele que podemos pousar nosso descanso e nossa fé, porque ele é eterno.”

Sou Flaviana Alves, escritora que percorre o mundo fazendo voluntariado e expedições literárias e compartilha vivências e reflexões sob a ótica de uma viajante mulher, negra e nordestina. Acompanhe meus relatos diários no IG.

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Flay Alves
Revista Passaporte

Escritora e jornalista antirracista, feminista e itinerante. Autora de Donas de Si. Escrevo sobre a potência da vida e o encanto de ser gente. Insta flay.alvess