Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
Published in
7 min readOct 29, 2019

--

Em relatos de viagens pela Noruega, vejo as atenções voltadas sobretudo para Bergen, os fiordes e outras belezas naturais. Oslo aparece como lugar de escala rápida. A capital norueguesa, porém, é bonita e agradável, merecendo visitas mais detidas. Passamos nela dois dias e meio, e prazerosamente poderíamos ter prolongado o tempo.

Cena da orla.

Dá para entender os que encurtam a viagem. No país, o tempo está sujeito a pancadas de chuva, e os preços são salgados; deve ser a hora de sol mais cara do mundo. Ocorre que o padrão de vida por lá é alto, sob a influência das descobertas de petróleo no Mar do Norte. Em pesquisa recente nas duzentas cidades mais ricas do mundo, Oslo figurou em segundo lugar, com renda média anual superior a US$ 74 mil.

Mas o site Visitoslo, que recomendo para quem quiser saber da cidade, traz informações de programas baratos e até gratuitos. Foi nele que descobrimos um restaurante acessível funcionando bem perto do hotel.

Em três horas de ótima estrada, o ônibus nos trouxera de Gotemburgo, no litoral sueco. No terminal rodoferroviário de Oslo, minha mulher descobriu uma linha de ônibus que servia para chegarmos ao hotel. Ao embarcarmos, consultamos o motorista sobre a tarifa a ser paga. Perguntou-nos ele onde desceríamos, e ao saber que era só dois pontos adiante, não quis cobrar. Para recém-chegados que vinham de olho no bolso, a carona era um bom começo.

Designada “capital verde” da Europa em 2019, Oslo tem ótimos parques, e perambulamos por alguns deles, como também o faríamos no calçadão estendido à margem do fiorde que banha a cidade. Os fiordes são braços de mar que entram pelos vales, onde recebem quantidades colossais de águas formadas por neves que degelaram nas montanhas. Bem no centro de Oslo, o parque em torno do palácio real é aberto ao público e atrai muita gente; mocinhas faziam selfies com jovens soldados que marchavam para cá e para lá.

O soldado mantém a posição de sentido.

Na encosta de uma colina, com vista panorâmica para o centro, a área do Parque Ekeberg é valorizada por dezenas de esculturas e instalações. Há obras de artistas consagrados, como Rodin, Renoir e Salvador Dalí (que compareceu com sua Vênus de Milo Com Gavetas). Os frequentadores que encontramos ˗ alguns, trazendo filhos pequenos ˗ pouco se importavam com a intermitente garoa; deviam ser moradores locais.

Vênus de Milo Com Gavetas.
Instalação no Parque Ekeberg.

Em outra área da cidade, o Parque Vigeland, incluído em outro parque maior e muito aprazível, o Frogner, também tem esculturas expostas. Seu autor foi Gustav Vigeland, famoso artista plástico do país.

Infelizmente, perdemos a oportunidade de conhecer o museu dedicado à obra de Edvar Munch, personagem maior da arte norueguesa. Não nos lembráramos de fazer reservas pelo site e encontramos uma longa fila debaixo de chuva; mesmo que a enfrentássemos, só entraríamos quando já estivesse na hora do fechamento.

Visitamos dois museus dedicados às aventuras de exploradores noruegueses, ambos bem documentados e didáticos. Primeiro, o Museu Fram, que relembra as expedições de Roald Amundsen e companheiros; em 1903, eles foram pioneiros na travessia do Oceano Ártico, navegando pelas águas ao norte do Canadá. Depois, em 1911, Amundsen e sua equipe seriam os primeiros a atingir o Polo Sul. Dos barcos então utilizados, dois estão expostos em salões do museu.

O Fram, navio polar de Amundsen.

Vizinho ao Fram, está o Museu Kon-tiki, com ênfase nas explorações de Thor Heyerdahl, etnógrafo norueguês que em 1947, com cinco companheiros, cruzou o Pacífico numa jangada. O que o animou à façanha foi ter observado, em viagens que fizera, várias semelhanças culturais entre as sociedades andinas e as da Polinésia; daí, a hipótese de que as ilhas do Pacífico poderiam ter sido povoadas a partir da América do Sul. A expedição não chegou a provar que isso realmente ocorreu, mas mostrou que viagens oceânicas estavam ao alcance daquelas populações da Antiguidade. Mais tarde, Heyerdahl se lançaria a outras explorações ousadas, algumas delas também abordadas no museu; seus livros foram traduzidos no Brasil.

Jangada da Expedição Kon-tiki.

Ao anoitecer, demos uma pausa nos programas culturais e fomos tomar um chopinho no Blå, concorrida cervejaria instalada num antigo bairro operário, em prédio onde no passado funcionou uma tecelagem. Situada na margem do Akerselva, límpido riacho que atravessa Oslo, não é atração turística, mas ponto de encontro para shows musicais, expressões artísticas alternativas, eventos políticos.

Junto do Blå, as águas do Akerselva,
Cena no Blå.

Havia mais atrativos na cidade, mas soou a hora de tomarmos o trem e rumarmos para a costa oeste. Anos atrás, uma minissérie da televisão norueguesa reproduziu o trajeto inteiro de Oslo a Bergen, filmado com uma câmera instalada na frente de um trem. Com duração total de sete horas, o programa alcançou enorme sucesso de público. Não sei se me animaria a vê-lo inteiro, mas registro que as janelas do trem mostravam paisagens bonitas, e o melhor ainda estava por vir.

Em quatro horas, chegamos a Myrdal, onde nos baldeamos para um trenzinho turístico que desce a montanha. Construída no início do século XX, a estrada, com seus túneis e precipícios, foi um feito admirável. Tem a reputação de ser o trecho ferroviário mais íngreme do mundo: em 20 km, baixamos de 860 m de altitude até o nível do mar. A curtição maior ficou por conta dos panoramas, e é pena que o tempo chuvoso não tenha favorecido fotos.

No vale, cenário típico da região.
No verão norueguês, “selfie” a 9 graus, com chuva.

Pernoitamos em Flåm, cidadezinha charmosa, à beira de um fiorde, o Nærøyfjord. No dia seguinte, navegaríamos nele, com vistas esplêndidas em ambos os lados. Um informe da companhia de navegação esclarecia que o barco foi projetado para funcionar com eficiência energética e sem provocar poluição.

Recanto em Flåm.
Paisagem à beira do Nærøyfjord.

Desembarcamos em Gudvangen, onde tomamos um ônibus que nos levou a Voss. É uma estrada que vai ziguezagueando para subir e descer a montanha, mais uma vez com cenários deslumbrantes.

Vale na estrada de Gudvangen para Voss.

Em Voss, pegamos um confortável trenzinho pinga-pinga que nos levou até Bergen. Em todo esse entra-e-sai de conduções, nossa movimentação foi facilitada por levarmos apenas uma pequena mochila com a muda de roupa para o pernoite em Flåm. As malas seguiram diretamente de Oslo para Bergen, transportadas pela empresa onde compramos o pacote desse trecho da viagem.

Também situada à margem de um fiorde, Bergen é famosa como polo turístico, mas sua importância tem alcance maior. Segunda cidade da Noruega, destacou-se já na Idade Média como o principal porto da região, e assim se manteria por vários séculos. Com arquitetura peculiar em suas casas de madeira, algumas delas em cores vivas, o centro histórico recebe um contínuo fluxo de visitantes.

Cenário de Bryggen, antigo porto que por volta do ano 1.000 deu origem a Bergen.
Casas de madeira em Bergen.

Saindo da “muvuca” turística, constata-se que a cidade tem vida própria: universidade, museus, parques e demais equipamentos urbanos. Inclusive uma orquestra filarmônica que deve estar entre as mais antigas do mundo, pois foi criada em 1765. Ao entardecer do dia que passamos lá, ela se apresentou num parque, executando músicas de Grieg, celebrado compositor norueguês.

Em um dos parques de Bergen.

Ficamos também conhecendo o Museu da Lepra, instalado no lugar do antigo leprosário, fundado do século XVIII. Foi em Bergen que em 1873 o médico Armauer Hansen descobriu a bactéria da lepra, mostrando que se trata de doença contagiosa ˗ e não hereditária, como até então se pensava.

Foi nosso último dia na Noruega, de onde levaríamos ótimas recordações, pelas belezas naturais, qualidade de vida, serviços públicos eficientes e padrões altos de civilidade. Aliás, o país ocupa há vários anos a primeira posição no IDH ˗ Índice de Desenvolvimento Humano. Na comparação internacional, a Noruega também tem lugar destacado na igualdade de gêneros, e é o país europeu com menor número de prisioneiros em relação ao de habitantes.

Em 2011, porém, a sociedade norueguesa foi abalada por uma tragédia, quando um terrorista, inconformado com as políticas de acolhimento a imigrantes, matou dezenas de jovens que se reuniam em evento do Partido Social Democrata. No manifesto que divulgou, o assassino acusava os imigrantes pelo suposto aumento da criminalidade ˗ mas foi justamente o seu crime que dobrou, naquele ano, a taxa nacional de homicídios. Lavando as mãos, a extrema-direita norueguesa alegou que se tratava de um desequilibrado; é verdade, mas seria isso o que diriam se o assassino fosse um imigrante? E antes de se saber que ele era um terrorista branco, houve quem agredisse muçulmanos como se lhes coubesse a culpa.

Na ocasião, foi exemplar a atitude do Primeiro Ministro. Ao condenar a atrocidade, Jens Stoltemberg se recusou a usar a emoção coletiva como pretexto para medidas de repressão, como teriam feito muitos governantes. Em vez disso, reafirmou a importância de maior liberdade e democracia e do reforço dos laços de solidariedade.

--

--

Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.