COLÔMBIA, FANTÁSTICA E REAL

Juliano Guillen Pupo
Revista Passaporte
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11 min readNov 29, 2022
Foto: Juliano Pupo

Arepa é uma comida típica colombiana, um pão redondo de farinha de milho que acompanha quase todas as refeições, ora para molhar nos caldos e sopas, ora recheado de queijo ou ovo nos carrinhos de rua. Provei arepa pela primeira vez ainda no aeroporto de Medellín, a caminho de Cartagena de Índias. Achei potencialmente boa, a depender do preparo e do recheio. Era um tanto seca, mas foi empurrada por uma cerveja Club Colombia fria, não gelada, como eles costumam tomar. Ambas, arepa e Club Colombia, me acompanhariam até o fim da viagem.

Conhecemos primeiro a costa caribenha, ao Norte, para depois voltarmos a Medellín. De fato, trata-se de duas Colômbias diferentes, contrastes não tão distintos dos que temos no Brasil. O colombiano é todo respeitoso e animado, mas o costeño me pareceu mais sincero, um acolhimento espontâneo. Não que os paisas, os nascidos em Medellín, não sejam; mas me soaram mais adaptados ao turismo, enquanto na costa é o turismo que se adapta ao costeño.

Aliás, é bonito como o Caribe constitui uma unidade, ainda que descolada e boiando pelo Atlântico — mais ou menos como todos nós. Cartagena tem o mesmo cheiro de madeira que senti em Cuba. As estreitas ruas de pedra, os muros que permeiam a cidade, o mar quebrando no malecón, a música dançante pulsando da gente de qualquer idade e a vontade insaciável de rum de manhã, de tarde e de noite. Se meus quadris permitissem, seria caribenho. Pelo menos com o rum lido melhor do que com a música.

Apesar de mais sinceros, Cartagena é sim uma cidade turística, feita para o turismo. Isso quer dizer muita gente disputando gringos pelas ruas para almoçar, conhecer a joalheria mais barata da cidade, comprar a cocaína oferecida ao pé do ouvido ou para a prostituição, espalhada pelas praças sem pudor algum — ainda que não exclusivos, todos marcadores que ajudam a compor o clima caribenho, e quem não gostar que vá para Kentucky ou Holambra.

A comida costeña também me caiu melhor, e não atribuo apenas à quantidade de camarão que comi, mas mais ao tempero desavergonhado da cozinha criolla. Mesmo onde não ia coentro ou camarão, o toque costeño fazia diferença, e numa panederia onde pensei em morar enquanto esperava a chuva passar, comi os melhores pandebonos da viagem, além de pastéis cubanos, palitos de queijo e o que mais tivesse na vitrine, tudo com a desculpa de fazer passar o tempo e a chuva que alagava Cartagena.

A chuva, aliás, conseguiu atrapalhar e limitar alguns passeios, então não posso falar das praias e ilhas da cidade. Mas entre esmeraldas, rum e coentro, Cartagena me encantou mesmo assim, principalmente por suas noites em terraços sob a brisa caribenha — vá ao Alquímico, um dos melhores bares do mundo (literalmente), e vá lá pelas 18h00 para curtir um terraço ainda vazio e poder comer e beber com mais tranquilidade, enquanto acompanha o ambiente encher e se agitar.

Como tudo o que existe sob a força do capital e de um processo colonizatório como o nosso, a Colômbia sob a chuva torrencial também expôs suas feridas de forma mais explícita do que veríamos se ofuscados pelo sol. E expôs principalmente na estrada de Cartagena a Santa Marta, também litorânea, trajeto que nos permitiu ouvir Shakira em Barranquilla, mas também reservou as vistas de favelas arrasadas pela chuva fora de época e uma pobreza alagada se estendendo por quilômetros.

Nas cinco horas de estrada me senti um espectador de relances do realismo fantástico eternizado por Gabriel Garcia Marquez (achou que tinha encontrado o primeiro texto sobre a Colômbia a não mencionar Gabo, certo?), quando alguma festa local encheu a rodovia de transformistas e mascarados que pareciam ter saído de um filme de expurgo se jogando na frente dos carros, atormentando quem parasse pelos vidros fechados e olhares assustados.

O trânsito, principalmente nas rodovias, também é digno da escola literária colombiana, já que a regra vigente parece ser subverter qualquer expectativa de quem começa a trafegar aqueles caminhos, ora numa ultrapassagem de caminhões em plena curva, ora em motos com quatro pessoas sem capacete costurando entre os carros. Mas a verdade é que foi esse caminho bem real que nos levou ao destino fantástico do parque Tayrona.

Foto: Juliano Pupo

Tayrona é um parque de 12 mil hectares, berço do povo Tairona e ainda hoje casa de outros povos indígenas que compartilham a região. Com dezenas de atividades — praias, rios, trilhas –, impressiona a capacidade do país de ter mantido uma área daquele tamanho protegida até hoje diante da sanha da especulação imobiliária e turística. E ela é de fato protegida, muitas das praias têm limite de entrada — com brechas, como pagar por fora para um morador entrar com você, podendo exceder o limite de pessoas — e a manta verde e nativa se estende sobre a Serra Nevada, a maior cadeia montanhosa costeira do mundo.

O parque nos reservou ótimos dias de praia caribenha e descanso, mas, principalmente, proporcionou umas boas horas com um guia local, Alex, e seu filho pequeno dono de um galo de rinha, enquanto descíamos o Rio Don Diego em boias. Para os moradores que acompanhavam das margens, tenho certeza de que a vista era patética, algo parecido com porções de manjar branco boiando em pequenas cumbucas de plástico, ainda mais porque o guia ia caminhando de pé ao nosso lado, já que o rio era raso e tranquilo. Mas, para mim, foi uma memória que lavarei nessa curta vida de manjar flutuante, tanto pela mata fechada que me fez sentir descendo o rio Amazonas em câmera lenta, como — e principalmente — pelas histórias de Alex, um ribeirinho que viveu ali toda sua vida.

Alex começou discreto, compartilhando pequenas curiosidades da região, indicando o que havia para indicar na flora e fauna das margens, “essa é a árvore que inspirou o filme Avatar”, “às vezes conseguimos pegar pequenos jacarés nas bordas, sem nunca os machucar, claro”. Mas a história do rio e do parque logo se misturou à sua própria, e à história da era de ouro do narcotráfico colombiano.

Criado nos anos 80 e 90 naquela região, ele viu o rio ser utilizado como rota de tráfego fluvial pelos senhores do tráfico costeño por anos a fio, fluxo que prejudicou o leito do rio Don Diego à medida que as plantações e a constante presença humana prejudicavam a flora parque acima. Mas não se lembrava com rancor, senão até com uma certa saudade de um tempo mais agitado em sua vida. Ele, tal qual a maioria da gente por ali, não estava dentro do narcotráfico, mas tampouco estava fora. Sempre havia alguma relação com o narco nos menores trabalhos, e as festas de luxo ou rinhas de galo dos Capos mobilizavam todo o povoado. Era ao mesmo tempo atraente e assustador, pelas suas próprias palavras.

Enquanto contava, seu filho ia observando e aprendendo, perguntando o nome de um macaco-aranha que aparecia numa árvore em frente, relembrando alguma de suas ainda incipientes aventuras pelo parque, ou justificando que só colocava seu galo em brigas com botas porque gostava muito dele. E foi caminhando na praia quase deserta onde termina o rio que vi os dois procurando pedras e conchas da areia para colecionar como se fossem os mais valiosos objetos; e de fato eram, pois ficariam nas mesmas prateleiras de pequenos artefatos do povo Tayrona encontrados por Alex em suas incursões, os quais ele não tinha a menor pretensão de vender. Tanto as conchas como as pequenas estátuas que disse colecionar eram parte daquele grande tesouro, parte de Alex e de seu filho, parte dos peixes que pescavam para regalar a amigos ou trocar com indígenas por outros mantimentos. Naquelas poucas horas, estivemos acompanhados do próprio parque Tayrona encarnado, até que ele se foi na garupa de uma moto, e nós, os manjares, curtimos suas praias mais alguns dias até enfim seguir para Medellín.

Medellín é uma cidade cosmopolita, e, pelo que senti, pensada para isso — não sempre, mas em sua nova fase a partir do começo dos anos 2000. A cidade, que era notícia internacional por ser berço do maior cartel da Colômbia e de disputas sangrentas na época de Escobar, hoje é um dos melhores destinos para nômades digitais (publicitários PJ que não sossegam o c* em lugar nenhum) e um dos lugares mais turísticos da Colômbia. Mas a parte mais interessante de Medellín não é necessariamente o que se enxerga hoje, mas a sinergia entre as bases sobre as quais a cidade moderna se construiu e a capacidade de transformação de sua gente num período de tempo tão curto, lutando para deixar para trás um passado de guerra e abraçar de vez a nova identidade de uma cidade global e segura.

Talvez tenha sido essa necessidade de consolidar uma nova cultura paisa que me deixou com a impressão de tratar-se de uma receptividade forçada. Não faz duas décadas que Medellín ainda era um dos epicentros da guerra colombiana entre Estado, narcotráfico, guerrilhas e paramilitares, história que a população luta para superar, mas que inteligentemente mantém viva pela memória das pessoas e das marcas espalhadas pela ciudad de la eterna primavera. E muitas dessas marcas e memórias estão na segunda principal atração turística de Medellín, a Comuna 13.

Foto: Juliano Pupo

Comuna 13 é um dos 16 distritos que constituem Medellín. Dentro da Comuna 13 estão alguns bairros, mas o mais fácil é tratar pelo nome comum. Localizado no extremo Oeste da cidade, o distrito sobe pelos morros até dar acesso a importantes rotas que permitem o fluxo de mercadorias para dentro e para fora da cidade. Num contexto de narcotráfico e guerrilhas urbanas e de selva, fica fácil imaginar qual seria o destino natural da Comuna 13. E assim foi por décadas, popularizando a região como “o bairro mais violento da América Latina”. Hoje, o bairro é pacificado e recebe turistas do mundo todo no que eu, a princípio, pensei tratar-se daquele “turismo de pobreza” que tanto julgo estrangeiros fazendo aqui no Brasil.

Nosso guia pelo tour de quatro horas pelas ladeiras e escadas rolantes que conectam o asfalto à parte mais alta da comunidade em apenas 12 minutos foi Christian, jovem de 26 anos que desde a infância mora no bairro. Foi ele o responsável por me fazer compreender por que Comuna 13 era muito mais que uma exploração da pobreza, mas sim um recorte muito claro do passado, presente e futuro de Medellín. Ali, conhecemos inúmeras galerias de arte e mesmo depois do tour terminar ficamos tomando uma cerveja vendo a tarde cair. Também ali, Christian nos conduziu pelos diversos murais de grafite que contam a história da região, que por sua vez sintetiza a história de todo o país.

Quando Christian se mudou com seus pais para lá, a Comuna 13 estava na reta final de sua relação com as diversas guerrilhas de caráter socialista que ajudaram a erguer o bairro, vindas das matas e selvas onde se alojavam. A relação com a população civil era boa, havendo inclusive assistência por parte dos grupos guerrilheiros. Apesar disso, não eram incomuns os conflitos entre diferentes grupos, e, com o tempo, o recrutamento de jovens para constituir suas fileiras. À medida que a guerra do Estado contra as guerrilhas avançou, a Comuna 13 entrou no mapa dos conflitos, e, entre 1998 e 2002 foram realizadas uma série de operações de “pacificação”. Operações tão pacíficas que deixaram um rastro de mais de 3 mil mortes durante o período.

Com o fim das operações, uma nova força militar substituiu as guerrilhas, os paramilitares. Financiados pela elite colombiana (e muito provavelmente por governos estrangeiros) para combater os guerrilheiros, os paramilitares são muito próximos do que entendemos por milícia no Brasil: grupos de assassinos contratados que circulam sem grandes problemas entre as forças de segurança oficiais. Com a presença desses grupos, começou também uma nova onda de violência, com extorsões à população e o desaparecimento de centenas de pessoas, muitas delas civis assassinados pelos paramilitares para serem entregues como “guerrilheiros” ao Exército. O próprio pai do Christian foi uma vítima dos paramilitares, tendo sido alvejado três vezes na face ao se recusar a pagar mais propina pelo direito de manter sua lojinha no bairro. Por sorte ele sobreviveu e hoje está bem, mas esse não foi o destino de muitos moradores desaparecidos, e que justamente na semana em que visitamos o lugar estavam sendo procurados nos arredores da Comuna 13, num grande aterro que provavelmente foi usado como vala comum pelos assassinos, e que fica bem ali, à vista de todas aquelas mães, tias e avós que perderam entes queridos e têm de acordar todos os dias encarando aquela mancha cinza no morro, onde provavelmente estão os restos mortais dos seus familiares.

Seguindo como espelho e reprodutor da história de todo o país, a Comuna 13 viu a situação melhorar com a investigação do envolvimento de paramilitares com as forças de segurança oficiais; ao mesmo tempo, as escadas rolantes instaladas para facilitar o acesso da população ao asfalto, também passou a atrair turistas e moradores do asfalto para o morro, dando início a uma nova fase do distrito — ou pelo menos da parte turística — de pacificação, melhoria de infraestrutura e novas oportunidades surgindo para artistas e comerciantes locais.

Eu não sei como é de fato a vida na Comuna 13, quão violentas podem ser as áreas afastadas da entrada dos turistas, ou quanto daquilo é um pedaço forçadamente mantido como chamariz turístico destoante do resto. Mas, se por um lado posso ter ficado com a impressão de que essa pode ser uma possibilidade real, também fiquei convencido de que aquilo tudo era bem verdadeiro, e que ninguém ali quer esconder coisa alguma, mas pelo contrário: os moradores e artistas da Comuna 13, assim como a gente de Medellín, incorporou o passado violento à nova narrativa que estão criando agora, à medida que vivem e contam e constroem a cidade para si e para o mundo.

Foto: Juliano Pupo

A Colômbia é o oitavo país que visito na América Latina, e em todos eles sinto que são poucos os detalhes que nos diferenciam. Talvez por isso sejam eles, os detalhes, meus maiores interesses ao conhecer os povos irmãos. É claro que há grandes marcos que ficam na memória, como a pedra El Peñol em Guatapé e seus mais de 800 degraus, ou a escultura de pássaro de Botero, no centro de Medellín, desfigurada por um atentado a bomba que vitimou 23 pessoas e que até hoje é mantida lá, com as marcas da explosão. Mas, embora se aprenda muito com os grandes marcos, a América Latina compartilha a sutileza de acontecer no dia a dia, no tipo de farinha que dá forma ao desayuno, nas frutas desconhecidas vendidas na feira, nas histórias comuns a todos nós de gente criando beleza em meio à guerra, nas contradições da nossa gente ao pôr botas no galo para que não se machuque. Tal qual Cem Anos de Solidão, o realismo fantástico não trata apenas da Colômbia, mas de toda essa terra fantástica e real.

Sobre as arepas que me acompanhariam até o final da viagem, eu menti. Minha última refeição antes de deixar Medellín de volta a São Paulo foi um sanduíche de frango no aeroporto, porque não aguentava mais o sabor da farinha de milho. Quanto à Club Colombia fria, essa sim foi o último gole antes de embarcar.

Foto: Juliano Pupo

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Juliano Guillen Pupo
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