de barco #1

Café das sete
Revista Passaporte
Published in
8 min readJun 2, 2019
Foto de dentro do avião

Fiz um diário de viagem, agora vou posta-ló por aqui em capítulos! Numa mistura de tempos presente, passado e futuro; fui escrevendo e reeditando, vivendo e registrando. Lendo e revivendo; e claro, editando.

antes de tudo

Hoje é dia 04 de Dezembro de 2018 e eu decidi. Vou comprar um PC e viajar para Belém. Decidi registrar esse momento. Pra isso preciso de um PC. Vou comprar. Vou viajar. Vou escrever. Ainda não sei o que está por vir nessa aventura. Mas, algumas coisas me inspiraram a escrever. Uma delas é um livro que eu que eu estava lendo, uma indicação da minha psicóloga, “Presente do mar”, da Anne Morrow Lindbergh. O livro fala sobre a solidão feminina, sobre autoconhecimento, sobre se ausentar do cotidiano e entrar dentro de si, sobre apreciar a solitude e se permitir vivê-la. Essa é uma das propostas. Também me inspirei na trilogia de filmes de Richard Linklater, Antes do amanhecer (1995); Antes do pôr do sol (2004) e Antes da Meia-noite (2013). Assisti recentemente todos os três e eles me inspiram a viajar de trem. A me abrir para o acaso dos encontros e a caminhar sem destino certo. Também me inspirei em Caio, um amigo querido, que decidiu escrever a vida por um ano em forma de autobiografia e gentilmente me deixou ler. Essa leitura me despertou uma vontade de narrar minha relação com os outros.

Decidi escrever nessa viagem me aventurando a ser personagem no mundo e deixar de registrar só o que eu sinto e escrever sobre meus encontros. (Ainda que seja sobre o que eu sinto com eles). Quero narrar outras histórias. Esse ano (2018) foi um ano bem diferente, eu vivi muitas coisas e queria me deslocar um pouco do cotidiano, da minha forma de viver, pra ver se isso me ajuda a enxergar minha vida com outros olhos.

No fim, eu não fui de trem, nem fui para o mar, nem para Belém, nem comprei um PC. Peguei todas essas inspirações para desaguar nos rios do Amazonas e do Pará. Desde que apertei o enter no site da companhia aérea eu criei esse documento, seu nome sempre foi “de barco”, sendo assim prossigo com o título e citando Caio, “essa ligeira introdução está sendo escrita antes de tudo que virá, por conseguinte, nessas páginas. É início de 2017 (no meu caso 2019), tentarei descrever minhas percepções dos próximos doze meses que virão (no meu caso 12 dias). Talvez não tenha fim, nem começo, talvez eu erre em minhas considerações, talvez eu mude de rumo, contexto, talvez eu nem o termine, talvez eu me desconheça. Mas um homem (e uma mulher) precisa(m) de cordas para andar sobre o abismo da existência e este lápis (teclado) é a única corda que percebo me acolher por agora, então mergulharei de costas!!”

Águas que não se misturam: Rio Amazonas e Negro

07/01/2019

buscando outro horizonte

Já tem um tempo que tenho tido encontros com a água. Eu eu sinto como se eles me devolvessem as forças para eu viver na cidade que tanto amo. Decidi fazer dessa viagem uma busca pelo rio. Pela água e o significado que ela tem para mim. Coloquei como rota central uma viagem de barco. Manaus e Santarém cidades que tem ao lado Rio Amazonas e o Rio Negro, entre vários outros rios e correntezas diversas. Eu queria muito correr com esses dois rios. Fiz um doc simples que guardava links e sugestões, pela primeira vez, desde que as viagens são um plano fixo, eu não tinha lá muitos planos. Ao lado doc que guardava os links dessa viagem estava: “SP da comilança”, que guardava os links da viagem que faria com a Priscila e com a Jéssica quando chegasse dessa.

Comecei minha jornada na segunda, dia 07/01. Aniversário do meu irmão mais velho. Há 39 anos ele nascia sem saber que águas o levariam aos 39. E eu, aos 27 anos, começo hoje minha aventura pelo desconhecido Brasil, na esperança de renascer em seus rios. De encontrar no meu povo um pouco de mim mesma. Dessa vez decidi fazer uma viagem menos programada, no meu contexto, isso quer dizer que eu não pesquisei muito bem sobre o destino, o que já é um hábito meu, no fim da viagem veremos as consequências disso. Eu tenho um caderno de roteiros, no qual anoto mil e uma, talvez literalmente, informações: número de reservas, voo, horário que abre lugar X e como chegar ao lugar Y; dessa vez eu estava mais aberta ao desconhecido e com isso acabei fazendo meia dúzia de notas e poucas pesquisas.

Logo cedo já vivi meu primeiro perrengue. Acordei as 7h porque ainda ia tomar a vacina da febre amarela e passar no banco. Meu voo saia às 11h55min de BH. No caminho decidi procurar sobre vacinas obrigatórias. Eu tinha feito isso antes. Mas, quis dar uma última olhada. Resultado que achei um blog que dizia ser obrigatória a vacina e o comprovante para viagens à Amazônia. E ainda por cima, que eu precisava tomar ela 10 dias antes da viagem. Comecei a ter aquela sensação de que deveria ter me programado melhor. Fiquei meio grilada, um frio na barriga, comecei a imaginar que uma simples pesquisa não feita ia arruinar minha viagem.

Fui no posto do meu bairro, geladeira quebrada, sem vacinas. Fui no do bairro ao lado, só as 8:30. Decidi ir no banco enquanto tinha tempo. Fui no banco. Tudo certo. Saindo de lá, liberei meu cartão e comprei meu seguro viagem. Fui no posto do bairro São João Batistas, só às 9h. Fiquei tão neurada com a tal dúvida da vacina, liguei para vários números, nenhum atendia. Liguei para Ana, uma amiga que a mãe trabalha no posto, mas ela estava de férias. Quando consegui falar com a Latam a atendente não sabia me informar. Tomei a vacina ainda sim, por precaução, eu já tinha tomado há muito tempo, porém estava sem lote. Pensei: numa tenho o lote na outra tenho a data, talvez sirva. Cheguei em casa às 9:40 tomei um banho correndo, enquanto me trocava a Pri já buzinava, ela ia me deixar no aeroporto.

Nesse exato momento estou no meu segundo voo do dia, conexão SP para Manaus, deu certo. Não era mesmo obrigatória a vacina. Tive que despachar minha mala, 110 a mais, que misteriosamente não foram cobrados. Fiquei um pouco preocupada com a grana, mas tô com uma grana na poupança, caso necessário eu fico sem PC mais alguns meses. Até Manaus são quatro horas de voo. Acho que esse é o voo mais longo da minha vida, para Argentina são duas horas se não me engano. Estou feliz. No avião para SP vim do lado de duas senhoras que conversam sobre suas viagens. Duas senhoras mais velhas e claramente mais ricas que eu. Uma morava no Sion, a outra não ouvi, mas algo como Lourdes. Os dois estão entre os bairros mais caros de Belo Horizonte. Ela ia para Bonito.

Fiquei me indagando sobre o ambiente dos aeroportos. Que sou privilegiada por poder viver isso. E ainda sim, me sinto certamente diferente. Pão de queijo a 10 reais. Misto quente a 20 paus. Fico pensando como dinheiro separa bem os mundos que você pode pisar ou não pisar. As oportunidades. A nossa capacidade de ver o mundo do outro. É como se ele fizesse uma máscara fixa na gente. Se é rico demais parece incapaz de enxergar quem não tem grana e se não tem grana é quase incapaz de enxergar qualquer coisa, propositalmente. Quando você está no limbo dos mundo você enxerga os dois lados. Ou não. E os ambientes de aeroportos são perfeitos para delinear bem esses mundos. Me sinto mal, em alguns casos, me sinto irada.

Do concreto para as nuvens, visão de privilégio. Literalmente de cima. Estou com fome! E pensando nos lanches caros que vou ter que comprar. Nessa de viajar sem muita programação, me esqueci de comprar coisas para comer na viagem. Só que tô morrendo de fome, são quatro horas por aqui, não vai dar pra esperar. Grátis é só água mesmo, provavelmente porque eles devem ser obrigados. Uma ruffles (pequena) e um cappuccino, 16 reais. “Tripulação preparando para pouso”.

Eu olho a pequena janela e dou de cara com uma imensidão que ultrapassa os limites daquele campo de visão pequeno, é o Rio Amazonas, com suas águas vermelhas barrentas por entre as neblinas. Me sinto pequena. Alguns segundos depois e as águas turvas invadem a janela. É o Rio Negro. Um sorriso invade meu rosto. Nesse momento eu penso: se nada der certo essa visão já vale a viagem, mesmo de cima, por detrás daquela visão pequena e oval da janela do avião. Tudo isso me lembra as duas senhoras do outro voo. Talvez uma metáfora sobre como o outro vê um outro trabalhar. Tudo é imenso, me esqueço das fronteiras sociais, financeiras e culturais, toda aquela água parece não diferenciar ninguém, somos todos iguais diante daquela vastidão em água. Somos natureza, carne, osso e alma. Em alguns dias, sarjeta, dureza e lama.

O avião pousa e eu vou em direção ao portão de desembarque ‘A’. Peço Uber, Daiana, uma mulher, fico feliz. Enquanto espero Daiana a Uber, converso com Daiana, minha tia. A essas horas os stories já dão resultado é as pessoas começam a perguntar sobre a viagem. Daiana me pergunta, sola? Eu afirmo que sim. Todos me dizem que sou corajosa por estar por aí sozinha.

Solitude, responde a concha-lua. Toda pessoa, especialmente a mulher, deveria ficar sozinha por algum tempo durante o ano, durante a semana, durante o dia. Como isso soa revolucionário e impossível de se atingir! Para muitas mulheres, um programa como esse parece impraticável. Elas não têm rendimento próprio para financiarem suas férias; não conseguem um dia de folga na semana para descansarem da monotonia do trabalho doméstico; ao final de um dia cansativo em que cozinharam, limparam e lavaram, não lhes sobra energia para se permitirem pelo menos uma hora de solitude criativa. […] No que se refere à busca da solitude, vivemos atualmente numa atmosfera negativa tão invisível e permanente, como a umidade numa tarde de verão. O mundo dos nossos dias não consegue compreender a necessidade que têm, homens e mulheres, de estarem a sós. — páginas 55 e 56, Presente do Mar, de Anne Morrow Lindbergh —

Das experiências que ando tendo, posso dizer que viajar sozinha é muito massa. É como se você fosse obrigada a se abrir para a vida. Ou talvez seja minha forma de viver. Mas, quando estou sozinha eu me abro para o acaso, pros desencontros e pros encontros. Um “bom dia, como chegar em tal lugar?” vira prosa; pessoas aleatórias viram histórias de presença e momentos no quarto viram esse texto que escrevo. Após alguns desvios, Daiana, a Uber, chegou. Eu entro no carro, sem saber o que esperar de Manaus. Com a imagem dos Rios aérea já classificada como: do-caralho-o-que-pode-vir-a-seguir.

… continua em “os manauaras” — de barco #2

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Café das sete
Revista Passaporte

Por Helena Merlo. MUITOS erros de digitação pq eu escrevo na fritação do sentimento! CATARSE. "A arte é uma confissão de que a vida não basta" F.Pessoa