de barco #3

Café das sete
Revista Passaporte
Published in
8 min readJun 15, 2019

Esse é um diário de viagem, comece por AQUI, depois AQUI

08/01/2019
cidade de deus

Dormi cedo e acordei cedo. Às 4hrs da madrugada já estava de pé, dia de visitar o MUSA, o Museu da Floresta Amazônica, que fica numa reserva na periferia de Manaus. Fiz uma reserva online para ver sol nascer às 5h30min, o parque só abre às 8h30min. Acordei, sem grandes dificuldades. Pedi meu Uber: 77 reais, caro, pensei; mas não tinha outra opção de transporte. O motorista cancelou e ainda tive que pagar. Achei paia, mas quando pedi o próximo tudo se encaixou, 37 reais, era isso. Outra mulher. Marcela. Eba! Ela não cancelou, entrei no carro ansiosa.

No caminho ela me contava sobre a Cidade de Deus, o bairro onde ficava o museu. Segundo Marcela é um bairro periférico, bem perigoso. Que algumas ruas dele nem passam carros e que ela tinha medo de fazer corridas ali na região. Quando cheguei de viagem pesquisei: o bairro nasceu a partir de terras que foram invadidas por imigrantes na década de 90 e em 2010 virou um bairro que abriga 70 mil habitantes. Depois de 30 minutos chegamos a minha parada. Me despedi de Marcela e desci esperando que a Cidade de Deus me acolhesse da melhor forma possível.

Na portaria do museu não tinha ninguém. Eram 5hrs da manhã eu estava sozinha, na porta do museu fechado e morrendo de fome. Estava com medo, depois de todas histórias que Marcela tinha me contado, então não tive coragem de ir procurar um lugar para comer. Também não parecia haver nada a vista. Liguei meu celular pra ver se tinha algum ifood entregando. Única ideia que tive, sem sucesso. Comecei a me preocupar pensando que provavelmente a lanchonete não estaria aberta e eu teria que esperar 3hrs para comer algo. Estava morrendo de fome, prestes a entrar na selva e sem saber o que me aguardava.

De repente apareceu um segurança que começou a conversar comigo. Disse que as mulheres mineiras eram bonitas e altas e que só estava cobrindo férias do segurança responsável. Me contou que nunca tinha subido na torre e que não gostava de viajar de barco. Antes que eu pudesse descobrir seu nome, três jovens com vestuário de floresta, rsrsrs, chegaram de carro. Dois meninos e uma menina. Disseram que tinham reservado à visita. Entrei com eles. Perguntei se tinha um guia e a menina me disse que não. Mas, que tinha trabalhado lá no museu e sabia o caminho e eu podia ir com eles. Fui. Ela abriu uma corrente que limitava uma passagem com a seguinte placa “proibido entrar” e adentrou a selva. Que na verdade tinha caminhos bem “urbanos” feitos por humanos. Antes que pudesse dizer muito ela perguntou se eu era mineira, respondi que sim e perguntei de onde eles eram. Todos três paulistas e biólogos, ela e um dos menino, especialistas em pássaros e o outro moço em sapos. Ela me perguntou se eu tinha vindo observar os pássaros também. Eu respondi: ehhhh, eu vim para subir lá.

Rapidamente chegamos a torre, 42 metros de altura e 242 degraus. Comecei a subir já encantada com as árvores ao redor. Cheguei ao topo e não acreditava, já tinha visto fotos na internet, mas nada faz jus ao estar lá no meio daquela reserva. Não era um dia tão bom para ver o nascer do sol, estava meio nublado, mas ainda sim eu estava radiante. Todos lados que olhava eu via apenas árvores gigantes, diferentes tons de verde, diferentes tipos de folhas. Os pássaros cantavam e o sol timidamente aparecia por entre as nuvens e neblinas. Em alguns pontos saiam fumaça por entre as árvores e em outros era possível ver Manaus, prédios e construções ao redor daquela imensidão natural. Era contraditório. Poderoso como natureza é. Devastador como ser humano gosta de ser.

Esqueci completamente que estava com fome. Tirei fotos, filmei, mandei para os amigos, queria que todos que amo pudessem testemunhar aquele momento pessoalmente. Cheguei a conclusão: eu estava na Cidade de Deus. Não sou de religião, mas sou uma mulher de muita fé, eu creio nas pessoas e agora eu estava crente naquela floresta. Por uns segundos meus olhos encheram de água. Era uma emoção que não não cabia dentro de mim ela precisava sair de qualquer jeito, virou lágrima. De repente a bióloga que tinha ficado no andar de baixo subiu para o meu e me mostrou no seu binóculo um casal de macacos que estava no topo de uma árvore. Lá de longe eu via o casal de guaribas marrom que se destacam no meio do verde.

Diferentes pássaros cantavam e passavam voando de uma árvore a outra. Num certo momento um macaco começou a gritar, seu grito durou cerca de uns 5 minutos. Pude ver um deles pulando de uma árvore a outra. Me senti pequena novamente. Uma coisa que essa viagem tem me feito sentir é isso, eu não falo pequena de insignificante. Mas, é porque tudo que diz respeito à natureza é muito imenso e nós somos apenas um pedacinho minúsculo dela.

Descobri nas placas de informação e provavelmente devo ter estudado isso alguma vez na vida que o solo da Amazônia é arenoso é pouco fértil, mas que existe uma camada de folhas que fica em cima dele que caem das árvores e fazem ele ser muito bom para a vegetação local. Sinto que essa viagem vai me nutrir de camadas para conseguir seguir a vida mais fértil. Assim como as folhas que caem no solo amazônico. Fiquei lá em cima por 3hrs. Sério! Que pareceram 30 minutos. Deram 8h30min imaginei que a lanchonete estaria aberta, me despedi e agradeci aos três biólogos e desci em busca de ir me nutrir de comida dessa vez.

Enquanto voltava para entrada tirei algumas fotos. Pedi uma tapioca com queijo, um queijo quente e um suco de cupuaçu. Até que enfim estava comendo. Fui a recepção e comprei a visita guiada do parque. Uma bióloga local ia narrando curiosidades da floresta, animais e lendas indígenas da região. Eu curto muito ir descobrindo as coisas por mim mesma, mas os guias, os locais sempre tem coisas muito preciosas a dizer, além de ajudar no turismo local, sempre que posso eu compro esse tipo de serviço.

Durante o trajeto diferentes tipos de gente se manifestavam, agora eu estava presenciando a selva humana, um sujeito, de aparentemente uns 50 anos ia à frente do grupo, chamando atenção com sua voz alta, não escutando as histórias que a guia contava e tirando fotos ridículas. Ele queria ir no serpentário, como se uma dúzia de cobras encaixotadas pudessem torná-lo mais másculo. Duas senhoras também me chamaram atenção, elas eram de Juiz de Fora, mineiras também. O senhor que acompanhava elas ficou tirando foto da guia explicando para grupo durante todo trajeto. Uma das senhoras ficava questionando com um tom de humor as histórias indígenas. Num momento que a guia falava sobre uma tribo que tinha hábitos matriarcais a senhora soltava aos ventos: não é só pra isso que servem as mulheres, serem responsáveis pela casa, comida e filhos. Era como se ela achasse que podia salvar sua própria essência de mulher ali questionando. Chegou ao fim da visita e a última etapa era subir a torre. A guia não ia, ainda bem, coitada. Subir aquilo mais de uma vez por dia é muita sacanagem. Como eu tinha vindo de lá fui entrar no borboletário e no orquidário com mais calma e tirar fotos tranquilamente.

Decidi ir embora e já eram 13h30min da tarde. Eu tinha passado 7hrs lá. O Uber passava de 50 reais, decidi pegar um ônibus, 3 reais, bem melhor. Eu estava exausta, imaginei que poderia descansar um pouco durante o trajeto. Entrei no ônibus e pedi a trocadora que me avisasse o ponto do centro. Estava a caminho do teatro amazonas e ia almoçar lá por perto. A trocadora era a Elizabeth, baiana, que morava em Manaus desde os 14 anos, mesma época que arrumou seu emprego de trocadora. Conheceu um paulista e se casou, segundo ela o marido queria ir embora, mas ela não. Gosta da cidade. Me disse que em março teria férias e iria para o Rio de Janeiro. Me perguntou se eu tinha parentes, se estava sozinha, disse que não é que sim. Ela estranhou, como todos os outros que me fizeram essa pergunta. Me contou que tinha parentes na Bahia, Recife, São Paulo, mas que o marido queria levá-la no Rio. Chegou minha parada me despedi de Elizabeth e desci. Esperei o ônibus passar e dei tchau para ela que acenava em resposta pela janela.

Caminhei rumo ao teatro, parei num restaurante em frente, pedi um chopp é uma porção de pastel recheado de queijo coalho. Depois de uns minutos a garçonete me trouxe uma canequinha com caldo de peixe, uma cortesia da casa, aceitei e bebi, maravilhoso! Pedi um tambaqui com baião de dois, farofa e vinagrete. Também estavam fantásticos. Comi rapidamente pois queria fazer a visita guiada pelo teatro. Novamente uma guia local contava a história. O teatro é considerado uma das primeiras construções da Amazônia, desde 1896. Ele foi trazido praticamente todo da Europa. Por isso demoraram cerca de 12 anos para construí-lo. Me lembro de um detalhe de um dos andares, a madeira do chão se alternava entre madeiras claras e escuras, a guia amazonense contou ser uma homenagem aos rios: negro e amazonas. Sai de lá ainda exausta, decidi passar no hostel e dormir um pouco.

Acordei no final da tarde e passei na loja de chocolates do José. Ele me presenteou com alguns mimos e eu segui em direção a uma loja americanas para comprar tranqueiras. Já estava bom de experiências passando fome na viagem. Depois da loja, passei na barraca de Said novamente, dessa vez ela estava somente com Maria.

Said me contou um pouco mais sobre sua barraca. Disse que estava naquele ponto há muitos anos e que nunca tinha tido nenhum problema, que se dava muito bem com os moradores de rua que ficavam por ali, que sempre dava lanche para eles. Me afirmou que não os tratava mal pois não sabia o motivo deles de estarem na rua e que a vida já tratava eles mal o suficiente. Tomei dois sucos de cupuaçu feitos por Said. Jantei novamente no Fernando, dessa vez Maria também comprou uma marmita pra levar pra casa. Me despedi das duas senhoras, agradecendo a companhia, peguei em suas mãos e olhei dentro dos seus olhos, elas retribuíram com olhar de carinho. Segui meu caminho passando por moradores de rua, me lembrando do que dissera Said e pensando na cidade de Deus.

… continua em “rondônia” — de barco #4

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Café das sete
Revista Passaporte

Por Helena Merlo. MUITOS erros de digitação pq eu escrevo na fritação do sentimento! CATARSE. "A arte é uma confissão de que a vida não basta" F.Pessoa