de barco #6

Café das sete
Revista Passaporte
Published in
9 min readDec 13, 2019

Oi! Esse é um diário de viagem, temos parte 1, 2, 3 ,4 e 5

a partir de agora o que escrevo será baseado em notas que fui fazendo no decorrer da viagem, chegou um momento que eu comecei a viver tanto que não dava mais tempo pra escrever. Acontece quando o escrever é só um prazer e não um dever, enfim, eu estava só vivendo. Mas, tenho essa viagem tão gravada em mim que mesmo quase um ano depois está tudo vivo aqui na memória. As notas preenchem os lapsos.

outros idiomas

Depois de dançar pela chuva fui direto para minha cabine tomar um banho e trocar de roupa, hora de zanzar pela comunidade que vivia ali toda junta no barco por aqueles dias corridos. Eu estava na cabine e talvez o ponto alto dessa escolha privilegiada seja o banheiro privado, mais tarde eu dividiria um pouco esse privilégio com alguns amigos de viagem. A água da cabine é do rio, da pia para escovar dente, da privada e também a do chuveiro, eu que sou uma eterna amante das experiências achava isso um detalhe a mais e não me incomodei. Venho aprendendo com vida e com certeza nessa viagem a não dar muito valor para detalhes bobos que podem ser lidos como negativos e valorizar muitos os detalhes simples que eu leio com um contorno todo brilhante. A vida fica mais legal.

Lá no Hostel Manaus eu tinha feito uma trilha no Spotify toda trabalhada nos artistas amazonenses e paraenses pra ouvir durante a viagem. Eu amava ouvir aquelas vozes que pareciam se conectar fortemente com o que meus olhos viam. Dona Onete ❤ Só que decidi colocar minha playlist de sempre com as músicas que me conectam comigo mesma. Caramba!

Não tem como descrever esse sentimento se você não é uma pessoa que escuta música. Por aqueles minutos caminhando e ouvindo meu som eu estava transcendendo dentro de mim. As fronteiras geográficas entre meu coração mineiro e aquele estado no meio da floresta sumiram. Eu era parte daquele curso que seguia fluxo do Rio e as notas que saiam do meu fone de ouvido. De repente um lado do fone parou de funcionar, só quem escuta música também vai entender a questão desse ocorrido. Estava eu lá no meio do Rio querendo comprar um fone por qualquer preço, apenas queriam poder ter aquela sensação de novo.

O barco parou mais duas vezes Juriti e Óbidos. Novamente a dança dos portos: vendedores, passageiros desembarcavam e embarcavam, crianças corriam pelos corredores e eu continuava fotografando e observando tudo. Em Óbidos temos uma fiscalização do barco feita por oficiais, muitos deles uniformizados entram e revistam tanto a parte de carga do barco como as cabines, provavelmente buscando coisas ilegais. Eu fiquei na borda do barco só observando o movimento quando dei de cara com uma das funcionárias dizendo que tinha dito que minha cabine estava vazia quando um oficial perguntou, pois eu não estava lá para acompanhar a revista. Eu fiquei um pouco preocupada, mas logo um agente passou do lado e ela disse: ela que está na cabine 18! Abri a porta e o moço entrou, me perguntou se eu viajava sozinha? Qual motivo da viagem e se podia abrir minha mochila? Olhou minhas coisas e foi embora.

Cai a noite no Rondônia e eu decido me sentar no chão próximo ao bar para escrever, mas não consegui, porque eu não tirava os olhos das pessoas que viviam aquele cotidiano quase enfadonho para elas e completamente interessante pra mim. Passa por mim David, o gringo, que logo volta com um convite para que eu me juntasse à um grupo que ele e Yuri tinham conhecido. Sigo o jovem pelo barco e vou parar um canto do barco que eu ainda não tinha passado, em meio às redes penduradas uma roda de jovens conversava. Diferentes idiomas, entre Oi, Hi, Hola, conheço Natália, Gabriela, Martina, Emi e Victor. Conversas e músicas desajeitadas que tentavam agraciar os três idiomas e vamos nos aproximando do próximo porto.

Enquanto cantávamos e batucávamos os meninos e as meninas se revezavam tomando banho na minha cabine, eu era a única que viajava pagando por uma. Cada um deles ao voltar me agradecia imensamente pelo gesto. Num dado momento um dos jovens demorava a voltar e eu comecei a ficar preocupada, afinal eu havia acabado de conhecer aquelas pessoas e já dava a chave do meu quarto para elas, onde estava tudo que tinha naquele momento, dinheiro, comida e todos meus bens materiais. Eu sempre fui desse tipo que confia nas pessoas e exatamente por ser assim, quando viajo eu tento me lembrar vez ou outra que preciso escutar minha intuição mais vezes. Decidi ir até a cabine e ver o que estava acontecendo, a porta estava fechada e não tinha ninguém lá, voltei para onde o grupo estava e o Victor ainda não tinha voltado, era ele que estava com a chave. A pulga atrás da orelha veio por terra quando o jovem paulista chegou agradecendo e falando: “lavei até a alma.”

Nessa noite o barco parava em Santarém meu destino final. Santarém fica bem no meio do trajeto Manaus-Belém, assim o barco passa a noite nesse porto. Então, se você comprou o trajeto Manaus-Santarém ainda pode passar essa noite no barco já que ele sai somente na manhã do dia seguinte. Meus planos eram pegar um táxi de noite mesmo e já dormir no hostel que eu ia ficar pelos próximos 7 dias. Assim que o barco parou no porto de Santarém meu celular pipocou de mensagens no whatsapp, durante a viagem constantemente fica-se sem rede, não funciona nada, isso é um dos pontos altos ao meu ver, pois te obriga a sentir aquele ambiente além das distrações do mundo conectado, te obriga a se conectar com pessoas reais sem as barreiras digitais. (Rimou!)

As mensagens eram da Angie, proprietária do Hostel TerrAmor, dizendo que havia chovido muito naquela noite e que para chegar ao hostel que fica numa estrada de terra a uns 5 minutos da estrada de asfalto eu precisava que meu táxi fosse um carro com tração nas 4 rodas. Eu tinha combinado com meu taxista em Manaus antes de entrar no barco, pois eu não sabia como seria a internet, quando vi a mensagem da Angie eu liguei para ele que me contou que seu carro era normal. Cancelei com o moço e contratei um outro para me levar na manhã do dia seguinte. Nesse meio tempo eu já tinha organizado minhas coisas na minha mochila e já tinha entregado a chave da minha cabine para Vitória, uma senhorinha que trabalhava no barco.

Como eu passaria a noite por lá tive que ir atrás da minha chave novamente e explicar minha história, fui de um a outro que me informaram que senhora já tinha ido embora e levará minha chave e só regressava na manhã seguinte. Fiquei um pouco preocupada tentando pensar o que eu faria. Mas, de um a um achei Vitória que me devolveu a chave. Guardei minhas coisas novamente na cabine e fui esperar Martina, Emi, David e Yuri para que fossemos jantar na cidade. Me despeço de Victor e troco telefone com ele já que nós dois íamos estar pelos próximos dias em Alter do Chão. Enquanto espero os meninos conheço Kiet, um senhor vietnamita que eu já tinha observado outras vezes pelo barco.

Kiet — Tirei essa foto antes mesmo de conhecê-lo

Kiet me conta um pouco da sua história, conversamos em inglês, engenheiro, ele morava atualmente em Boston e estava viajando a alguns meses de barco e já tinha passado por outros países latinos. Ele também ficaria em Santarém por alguns dias, eu contei para ele ficaria em Alter do Chão e trocamos telefone para que pudéssemos nos encontrar novamente. Enquanto escrevia seu número no celular ele me contava que precisou inventar uma grafia nova para seu nome que era completamente diferente na sua língua nativa, “Kiet” que se lê “Ki”.

Jamais vou me esquecer da mala de viagem de Kiet, ele estava a mais de 3 meses viajando com uma mochila pequena, dessas normais que usamos na escola. Com duas muda de roupas, uma no corpo e uma na mochila, uma câmera analógica e seja mais o que for que cabia naquela pequena mala. Ele me contava que por estar viajando em janeiro por países tropicais era super possível. Que comprava suas roupas de tecidos que secam rápido e ia lavando assim que trocava de roupa. Eu que tinha acabado de deixar minha mochila enorme de 55 litros na cabine me questionei mentalmente o que é essencial para se carregar numa mochila, numa viagem, numa casa ou numa vida?

Me despeço de Kiet e vou ao encontro de David e Yuri, a dupla de belgas e Martina e Emi duas argentinas, irmãs, que fariam a viagem completa até Belém. Decidimos ir até a orla da cidade e jantar em algum restaurante local. Pedimos um táxi e Martina negocia o preço com o motorista que reduz 50% do valor. Ela conta que já está acostumada com o Brasil e que sabe que por serem estrangeiras os preços sempre ficam mais caro para elas, por isso, sempre questiona e negocia os valores. Também negociamos a quantidade de pessoas já que éramos 5. Fechamos um valor com o taxista que nos deixa na orla e pegamos o telefone dele para avisar quando fossemos voltar ao barco.

Martina gosta de aprender idiomas e corrigi a pronuncia da irmã e dos meninos quando eles tentam falar português, ela também traduz pra mim o inglês dos meninos. Eu que já tive minhas aulinhas de espanhol e inglês vou entendendo quase tudo e me perdendo em algumas frases. Percebo que Yuri é bem bobão, diferente do que eu tinha percebido dele no barco e David é mais simpático. Emi é mais reservada que a irmã e gosta mais de falar o inglês que do portunhol. Os meninos parecem ter um orçamento bem restrito e se descontentam com todos os pratos disponíveis, acabamos comendo uma porção de batatas fritas juntos e depois cada um come uma coisa diferente de acordo com fome e o bolso.

Terminamos de comer e seguimos a orla para encontrar nosso taxista, enquanto caminhamos conversamos sobre dança. David faz uns passos que eu não sei bem o que são e eu dou uma sambadinha, ele fica surpreso com o passo e pergunta: como assim? Que passo é esse? Como você faz isso? Eu tento explicar sem muito sucesso como sambar, até porque eu sou de longe uma boa passista; e ele observava admirado tentando reproduzir. Voltamos para o barco e eu convido as meninas para dormirem comigo, já que minha cabine tem uma beliche. Emi decide ir, buenas noches and dormimos.

Não conheço a Bélgica ou o Vietnã e fui uma única vez para Argentina, mas fui dormir pensando em todas as conversas do dia, em todos aqueles idiomas misturados. Me lembrei do que Yuri tinha me dito sobre o Brasil, sobre termos as melhores paisagens. Não discordo do jovem (mesmo não conhecendo muitos lugares do mundo). Entretanto, existe uma coisa maravilhosa no Brasil, tão caloroso quando ver a vastidão do Rio Amazonas e o verde da Floresta Amazônica. Somos nós, o povo brasileiro.

Bar

… continua em “alter do chão” — de barco #7

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Café das sete
Revista Passaporte

Por Helena Merlo. MUITOS erros de digitação pq eu escrevo na fritação do sentimento! CATARSE. "A arte é uma confissão de que a vida não basta" F.Pessoa