Desumanidade

O estado de coisas no eixo Bruxelas-Paris

Gabriel Vasconcelos
Revista Passaporte
4 min readMar 24, 2018

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Estação Norte de Bruxelas, 15h40 de hoje, 29 de agosto de 2017, um dia depois do meu segundo aniversário de casamento. Estou na fila do ônibus de viagem. O destino é Paris, onde encontrarei Mariana à noite.

Em frente ao bagageiro, o motorista, um senhor branco flamengo ou holandês na casa dos 60 anos, verifica tíquetes e documentos. A aceitação de bilhetes digitais em smartphones agiliza o processo e a fila anda rápido. Mas quando chega a vez de uma mulher africana na casa dos 40 anos e sua sobrinha de sete anos, imediatamente à minha frente, tudo para. Uma confusão.

Os trilhos da Estação Norte de Bruxelas. Além dos trens, de lá partem os ônibus para Paris, uma fastidiosa viagem que fiz em quase todos os finais de semana de setembro a dezembro de 2017. Essa história é uma das muitas aberrações que presenciei no coração da Europa. Foto: Gabriel Vasconcelos.

A mulher mostra uns papéis e o motorista faz sucessivas negativas com a cabeça. Um princípio de discussão e me aproximo para entender. Africana, a mulher só fala francês. O motorista não. Pergunto a ela o que está acontecendo e ofereço ajuda aos dois, o que é surpreendentemente muito mal recebido pelo homem. Ele pede um documento da menor. A mulher tem nas mãos três papéis: uma certidão de nascimento emitida na França, um formulário de autorização de tutela assinado pelo pai e uma cópia muito ruim da carteira de identidade dele, a famosa “carta de séjour” de estrangeiro, talvez vencida. Ela não tem uma carta da menina e nem passaporte. Não esqueceu. Simplesmente os documentos não existem.

Ela explica que os pais estão ilegais na Europa. E diz que o estado francês não dá mais carta para filhos de ilegais nascidos no país. Estes também são considerados ilegais. E assim a menina de sete anos, nascida na Europa — o único lugar onde esteve, eventualmente estuda, brinca e dorme todos os dias — não tem nenhum documento europeu que possa ser aceito por uma pequena empresa de ônibus.

Por alguns segundos, então, me questiono como é que ela vai poder entrar numa universidade, trabalhar ou contratar um seguro saúde. Quando é que ela poderá exercer cidadania?!

Reformulada, a pergunta logo é feita por um casal de belgas, solidários em meio a tantos outros passageiros que simplesmente ignoram o episódio e acomodam suas malas embaixo do ônibus. “Como isso é possível?”, pergunta a moça do casal. A africana explica que talvez aos treze anos a menina consiga os “papéis”. Pode estar certa, pode estar equivocada, mas o fato é que, hoje, nada. Cara na porta.

O motorista eleva o tom e diz que, se embarcá-la, pode ser preso na fronteira. Uma fronteira que não existe na prática, como sabem os acostumados ao trajeto. Eu e o rapaz continuamos a verificar os papéis que a mulher tem nas mãos. Um deles foi emitido por uma administração comunal de Paris, onde o pai reside. Original, carimbado e assinado por autoridade. Mas pela postura do motorista, cada vez mais agressivo e do alto do pequeno poder que o uniforme lhe dá, sinto que não vai ter jeito.

O rapaz insiste e ouvimos do homem que, se desejamos embarcar, não devemos nos meter no assunto. Caso contrário, não nos deixará viajar. No final ainda solta: “essa gente não viaja comigo!”.

Sinto raiva, muita raiva. E depois sinto pena. Prefiro acreditar que ao dizer “essa gente”, quis dizer apenas “ilegais”, mas logo me dou conta que não faz muita diferença. É xenofobia, se não for xenofobia e racismo juntos. É a chaga social do neocolonialismo europeu na África e seus desdobramentos imigratórios desordenados, muitas vezes incentivado pela metrópole em tempos de vacas gordas e rechaçados à menor crise do capital.

Muitos diriam se tratar apenas de prudência do motorista, mas está clara a liberação de uma índole fascista que encontra abrigo na alienação pela lei, pelo regulamento, por esse ente convenientemente desumanizado.

Então o rapaz, muito educadamente, diz que entende a situação do motorista, para quebrá-lo pela educação. Eu saco logo e repito, mas só funciona mesmo para constranger minimamente o homem. No ônibus as duas não entram.

Digo a mulher que, objetivamente, melhor seria já buscar uma viagem em um aplicativo de carona, em geral com preços acessíveis. Ela diz que pode ser uma boa ideia, mas promete correr atrás do dinheiro das passagens de ônibus. Vai embora para o carro onde está a mãe da menina. Observo e concluo que, provavelmente com status legal, é ela, a tia, quem faz o translado da criança para ver os pais, possivelmente separados, de tempos em tempos.

Com minha carta no bolso, sigo com o casal de belgas para a porta do ônibus. Hoje à noite estarei junto da minha esposa e amigos queridos. Mas a menina não estará com seu pai.

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Gabriel Vasconcelos
Revista Passaporte

É botafoguense e já viu sua Imperatriz ganhar cinco carnavais. Jornalista, pesquisa Cinema Documentário na Universidade de Liège, Bélgica.