Diário de viagem em outro planeta

Querido diário, já estamos no dia 09 (ou 8 ou 10) dessa viagem.

Regiane Folter
Revista Passaporte

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Photo by Daniel Olah on Unsplash

Minha incertidão com a data vem do fato de que nesse planeta ninguém conta a passagem do tempo. Não existem relógios, calendários, nada de nada que nos ajude a entender que dia é ou que horas são. Inclusive aqui não existe o conceito de horas, dias ou meses. Todos vivem num contínuo seguir em frente e a única coisa que utilizam para marcar a passagem do tempo são suas próprias características físicas.

- A vida era mais simples quando eu ainda podia caminhar sem bengala.

- Isso aconteceu quando a Mariquinha estava grávida do primeiro filho.

- Você não pode fazer isso! Lembra do que aconteceu quando ainda tinha cabelo?

Acho que desde que comecei esse programa de intercâmbio a pouca noção do tempo que rege essa sociedade foi — e ainda é — o meu maior choque cultural. Nos primeiros dias eu fiquei verdadeiramente agoniada, encarando o céu com uma obsessão ridícula, tentando adivinhar as horas de acordo com a posição do sol. Depois lembrei que não sei fazer isso. Ainda por cima me contaram que aqui o sol não tem uma rotina tão definida como lá na Terra. Às vezes as manhãs podem durar muito e as noites pouco ou ao revés. Tem algo a ver com a distância que estamos do astro rei e com a forma elíptica variante da trajetória que esse planeta percorre ao seu redor e blá blá blá. Enfim, desisti de tentar colocar um pouco de ordem temporal na minha experiência e resolvi deixar a vida me levar.

Não foi nada difícil me concentrar em outras coisas, como venho contando nesse diário de bordo. Isso me ajuda a manter minha ansiedade mais controlada, exatamente como dizia o psicólogo que nos instruiu antes da viagem. Sua insistência em que deveríamos trazer um diário de viagem parecia bem clichê lá na Terra, mas eu inclui um caderninho bem grosso na mala, pelas dúvidas. Não sabem como eu o agradeço mentalmente todos os dias — embora já não saiba bem o que é um dia…

Bom, o importante é que consigo me manter bastante ocupada pra (quase) não pensar nessas reflexões filosóficas sobre o tempo. Minha rotina aqui se resume em escrever nesse diário, fotografar as cenas ou paisagens que mais chamam minha atenção e trabalhar na ONG fazendo as coisas mais diversas, às vezes entediantes, às vezes esdrúxulas. Bom, também dormir, comer e essas coisas. Experimentar pratos típicos tem sido uma atividade bastante frequente em minha lista! Frequente e impactante, tenho que admitir. O paladar agridoce picante desse planeta é uma das coisas mais deliciosas e doidas que já provei! Tive alguns episódios de uso-repentino-e-desagradável-do-banheiro, claramente. Tanta inovação nem sempre é compatível com meu estômago “arroz com feijão”. Mas insisto em dar uma chance a tudo e meu sentido de aventura está mais aguçado que nunca!

Se penso nas coisas que mais gosto de fazer provavelmente colocaria a fotografia em primeiro lugar. Há muitas coisas para ver nesse planetinha que, embora menor que a Terra, é igualmente rico em suas paisagens e na diversidade da sua gente. As imagens que faço aqui tem um objetivo oficial, que é ser meu TCC da faculdade de artes. Foi assim que eu consegui a bolsa que me ajudou a custear a viagem — isso de passear pelo Sistema Solar é carinho viu!

O objetivo não-oficial, mas que é o que mais motiva, se trata de simplesmente registrar essa experiência incrível. Não quero me esquecer de nadinha, então tiro foto de tudo. Pessoas, objetos, comidas, lugares, o que for! Nunca saio de casa sem a mochila, a garrafinha de água e a Nikon.

Aqui faz muito frio, vivemos numa espécie de inverno ongoing. Me explicaram que isso acontece porque a distância que estamos do sol é maior que a Terra, então os verões são algo desconhecido para os nativos. Na realidade nenhuma estação do ano rola de verdade, só esse inverno eterno. Eu achei que isso ia me incomodar mais, porque sou bastante friolenta. Mas até que não. Caminho tanto pela cidade que sempre termino acalorada, por isso a garrafinha de água é indispensável. Junto com ela, a câmera, uns tênis confortáveis e algumas camadas de roupa que vou perdendo ao longo do caminho, estou bastante adaptada ao clima local.

Na ONG onde passo quatro horas diárias (mínimo) também não tenho muita oportunidade para sentir frio. Na realidade, não tenho tempo para nada, nem pras minhas amadas fotos. O trabalho é bastante demandante, como já contei aqui antes. Ontem por exemplo desde que cheguei até o último minuto antes de ir embora estive ocupada, seguindo minha líder de um lado para outro e ajudando nas mais distintas tarefas. Não lembro se já contei, mas essa organização se dedica a ajudar refugiados terráqueos que estão passando por dificuldades neste planeta. Muitos deles migraram da Terra, onde a vida não está fácil não, como já sabemos. Mas nem sempre encontram aqui o paraíso que esperavam. Alguns, principalmente mulheres, terminaram aqui pelo velho tráfico de pessoas que atualmente atinge a humanidade em níveis intra-planetários. Muitos simplesmente não conseguiram se adaptar a uma nova realidade e terminaram na rua por causa das drogas, bebidas e outros entorpecentes destrutivos.

Problemas bastante conhecidos nossos, né não? Parece que você até pode tirar o terráqueo da Terra, mas a Terra nunca sai do terráqueo. Esse é, inclusive, um ditado bastante conhecido aqui. Embora se dirija a pessoas como eu, a ONG foi fundada por nativos. Seu propósito era (e ainda é) nobre, e conseguiram dar muitos passos desde que começaram. Construíram um espaço amplo e confortável, com um lindo jardim onde as pessoas podem passar seu tempo livre, uma cozinha gigante para alimentar a todos que visitam a ONG diariamente, quartos e mais quartos para os que precisam passar uma noite e outras comodidades materiais mais que úteis. Porém, para os nativos sempre foi um grande desafio lidar com os dramáticos habitantes do planeta Terra. Entender nossos problemas e porque agimos de determinada forma é algo que vai além da sua capacidade de compreensão, já que eles são muito mais pragmáticos que nós. Foi assim que surgiu a ideia do programa de intercâmbio.

Sou parte da quinta turma de voluntários que anualmente viaja até aqui para passar alguns meses colaborando com a organização. O projeto ainda é bastante novo, mas com cada edição vai avançando e eu me sinto orgulhosa de ser parte de algo assim. Além da oportunidade de conhecer outro planeta, algo impensável para meus avôs e bisavôs, também sinto que estou fazendo algo bom pelos meus conterrâneos. E eles, mesmo sem saber, me ajudam também a me sentir mais perto de casa. Tenho que confessar que a dificuldade dos nativos em nos entender é uma via de mão dupla. Não é pelo idioma, que na realidade estudei por vários anos e me sinto bastante fluente. Mas sim pelos costumes e tradições, tão diferentes dos nossos. Vide o negócio do tempo.

De qualquer forma, não posso me queixar. Todos têm sido amáveis comigo e mesmo com nossas diferentes maneiras de ver o mundo estão se esforçando para que eu me sinta acolhida. O trabalho é demandante e muitas coisas ainda me confundem, mas já se passaram 9 dias. Ou 8, ou 10. E cada vez que paro pra pensar nisso me sinto mais adaptada e pronta para todos os dias que faltam.

Bom, por aqui termina o relato de hoje. Na próxima espero poder contar mais detalhes sobre minha vida nesse planetinha tão peculiar. Um beijo, diário!

Obrigada por me escutar.

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Regiane Folter
Revista Passaporte

Escrevi "AmoreZ", "Mulheres que não eram somente vítimas", e outras histórias aqui 💜 Compre meus livros: https://www.regianefolter.com/livros