otiagoaraujo
Revista Passaporte
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8 min readAug 17, 2019

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Do perrengue na Amazônia à pobreza em Puerto Rico

Parte final do relato sobre a viagem que fiz de La Paz a Brasileia em 2017. Aqui está a parte 1!

A chuva parou e a altitude foi diminuindo, enquanto a temperatura se elevava da madrugada para a manhã do dia 30 de março de 2018. Íamos rumo à Amazônia. Paramos num povoado no meio da manhã. Comprei algumas mixiricas, bananas e água. Paguei 6 pesos, algo equivalente a um dólar para comer um cozido de peixe com legumes. Trocando o peixe por frango em alguns locais, essa basicamente seria minha refeição até chegar no Brasil. A essa altura eu tinha poucos pesos bolivianos e temia que a viagem se prolongasse demais. Ao menos comer bem não saía caro.

Fiz amizade com o casal de chilenos. Buena onda! Eles viajavam para visitar uma área ecológica mais adiante. A região que cruzei tem a Leste e a Oeste reservas ambientais e indígenas tanto no lado peruano quanto no boliviano. Nosso papo foi interrompido por uma senhora boliviana, que chegou, se apresentou e passou a palestrar sobre o quanto havia viajado e perrengues que superou. “Uma puta velhinha guerreira, meu!”, diria o Boça. Afirmava que manjava dos paranauê na cozinha e que a gastronomia boliviana era a melhor do mundo. Ela já tinha viajado o Brasil de Norte a Sul, conhecia bem o Chile e boa parte toda a América Latina. Não quis nem saber a nossa opinião. Nada superava os pratos do país dela, dizia com convicção.

Em certo momento vi um cara passar com a camisa do Palmeiras. Imitei meu irmão mais novo, palmeirense fanático, e gritei ‘dá-lhe porco!’. O sujeito me olhou com uma expressão de ‘quem é esse doido?” e seguiu sem dar bola. Na sequência as cidades ao longo do percurso foram ficando cada vez menores. Saquei ‘Las venas abiertas de América Latina’ da mochila e tentei ler, mas o calor tava de rachar, e o ônibus cheio de poeira por dentro não ajudava a relaxar o suficiente para a tarefa. Parávamos às vezes em alguns vilarejos para que sacos de coca fossem descarregados. Os chilenos desembarcaram num desses momentos. Restava eu de estrangeiro no carro.

Ao anoitecer as bolivianas trocavam ideia e davam muita risada. Era bonito ver a felicidade delas, mas na real eu tava mesmo era preocupado imaginando quantas horas mais eu passaria naquela aventura. Calculava que em mais 24 horas eu chegaria. Finalmente peguei no sono de verdade e pude dormir por mais de cinco horas.

Acordei no meio da noite. Era uma pausa na viagem feita em uma estrada cercada pela mata. A lanterna do veículo rompia a escuridão. A luz dos celulares também ajudava a ver algo. Não sei dizer se já estávamos em uma área pertencente à maior floresta tropical do mundo. Só sei que a temperatura agradável, o ar puríssimo da selva e os sons emitidos pelos animais noturnos geravam uma gostosa sensação. Eu estava no meio do nada, como diz a expressão popular, mas estar ali era ótimo. Só que parada não era para apreciar o clima e a natureza. Era para o pessoal fazer as necessidades. No meio da estrada, se for o número um. No matagal, se for o número dois. Baita trampo pras cholitas ter que urinar usando aquelas imensas saias.

Pela manhã paramos junto a um casebre de madeira que ficava numa estradinha de terra. Uma placa indicava que no local se faz reparos simples em veículos. Com a cara toda empoeirada, um garoto aparentando uns 14 anos dava duro embaixo de um caminhão. Pausou o serviço anterior e veio reparar algo no carro em que viajávamos. O cenário era pobre. Pequenas casa de madeira, um esgoto a céu aberto e crianças brincando em meio a galinhas e porcos criados soltos.

Uma hora depois seguimos viagem. Chegamos a um vilarejo e paramos atrás de uma fila de uns dez veículos, entre caminhões, caminhonetes e outros ônibus. Estávamos no povoado de Sena, e todos esperavam a balsa que nos levaria ao outro lado do Rio Madre Dios. Contudo, horas depois, finalmente entendi que era provável que não houvesse a travessia naquela tarde porque as chuvas do dia anterior tinham deixado as estradas intransitáveis. Soldados do exército boliviano passavam para cima e para baixo. Entendi que eles estavam verificando a condição das estradas, se já poderiam liberar a travessia no rio ou não. Não rolou.

Foi escurecendo. Comi outro frango cozido, arrumei até um bom café, mas continuava tenso. Mal havia passado o susto de viajar na estrada da morte, tinha agora que lidar com outros possíveis problemas. Dentre eles me preocupava o fato de não ter tomado vacina contra a febre amarela. Quanto mais tempo ali, mais exposição. Outro problema era que o dinheiro boliviano que eu tinha, nas minhas contas, bastava para um dia e meio, no máximo dois, contando refeições e cafés. Eu possuía alguns dólares também, mas não havia conseguido trocá-los em La Paz porque eram notas com pequenas manchas ou rasgos.

Tentei e consegui ler um pouco. Depois caminhei. O local era movimentado. Muitos comércios instalados em construções simples de tijolo ou madeira. Gente passando em motos ou caminhonetes. Também ouvi conversas em português aqui e acolá. Eu não estava bem, parece que as pessoas sentiam isso. Nem eu e nem elas buscavam interação. Num comércio pude carregar o celular e escrever a primeira parte dessa viagem de La Paz a Cobija. Creio que depois ouvi música e dormi.

Embarcações que fazem travessia entre margens em Sena, Bolívia.

1 de abril. Lá pelas 9 da manhã manobraram os veículos dando prioridade a algumas caminhonetes e ao nosso ônibus, que foram para a frente da fila. Ainda deu tempo do último almoço. As estradas já tinham condição de trânsito e tinham autorizado a travessia. Finalmente, junto a outros veículos, começamos a cruzar o rio Madre Dios numa balsa.

Ao redor de uma das caminhonetes, um grupo de brasileiros papeava. Puxei assunto com um flamenguista. Eles eram de Rondônia e um deles me perguntou que diabos eu fazia ali e se eu era maluco, porque aquilo ali era a selva, não era lugar para gente da cidade e tal e coisa. “Perdeu o juízo, foi Paulista?”, ou algo assim, me disse em algum momento. Não respondi, mas comecei a achar que eu era maluco mesmo.

Rio Madre Dios

Perguntei a eles se faltava muito para chegar a Cobija. “Tem chão ainda”, me desanimou um deles. O trecho que passamos era curto. Em uns quinze minutos já chegamos ao outro lado. Os funcionários da balsa se mataram para fazer o desembarque. A lama dificultava o serviço. Após muito esforço, deu certo. Passamos à outra margem e caímos na estrada. O caminho agora revelava o cenário destruidor que avança desenfreadamente: o desmatamento contínuo para a expansão das fazendas de gado e plantação de soja.

A estrada enlameada que atrasou a viagem.

No meio da tarde chegamos a um local chamado Puerto Rico, que de rico não tinha nada. O pequeno centro da cidade era bem humilde e contava com urubus aqui e ali à espreita por carniça. Nessa altura eu tinha uns 15 pesos bolivianos e já imaginava como faria para cruzar a fronteira caso o dinheiro acabasse. Eu era um pobre em Puerto Rico. Começaram a tirar sacos de coca do ônibus. “Ei menino, me ajuda aqui”, ordenou uma senhora. Ela tentava puxar um saco de coca preso a outros que estavam nos assentos do fundo. Fiz uma cara de surpresa com o pedido, mas fui auxiliar. Ela me ajudou a puxar e eu carreguei o saco até uma mercearia. Era largo, mas não pesava muito. Terminado o serviço, voltei ao meu assento. A cholita veio até mim e me deu uma moeda de cinco pesos. “Gracias”, digo, novamente surpreso. Ela fez uma cara de desdém e saiu para comer algo. Voltei à mercearia e comprei água. 4 pesos. Achei caro. Gastei 80% do meu bico de entregador de coca numa mísera garrafinha de meio litro de água mineral. Fazia um calor danado, e caravana do ônibus saciava a fome e a sede nas barracas de alimento da praça central perto de urubus à espreita feito cães famintos.

Puerto Rico, Bolívia.

Voltamos à estrada e tivemos mais paradas para a entrega de coca. Não tive novas ofertas de trabalho. A minha empregadora ficou num dos pontos. O veículo tinha menos gente e menos carga de folhas a cada parada. Aproximadamente às 22h chegamos à Cobija, na fronteira com o Brasil. Era noite, mas me pareceu uma cidade bem mais estruturada que qualquer outra que eu havia passado no caminho. Na rodoviária, mal cheguei e fui abordado por um cara que oferecia transporte a Brasileia. Eu tinha menos de dez pesos a essa altura, mas fechei com ele prometendo pagar em reais no lado brasileiro. O carro, creio, que era algo como um corsa sedan preto. Um simpático casal de bolivianos com seu bebê se juntaram a mim na travessia de fronteira noturna.

A família desceu numa ponte já no lado brasileiro. Pedi que o motorista me levasse a uma agência bancária. Era um trecho de menos de dez minutos. Fui, fiz o saque, e na hora de pagar o cara queria 50 reais a mais que o combinado, topei dar somente mais vinte se ele me deixasse numa pousada. Era quase meia-noite. Paguei 70 reais ao motorista e entrei na pousada. O dono, nordestino, me recebeu muito bem, assim como seu funcionário acreano. Me senti em casa ao ouvir o sotaque nortista deles. Mais tarde eu soube que o Acre foi ‘fundado’ por nordestinos, cearenses em sua maioria. Aluguei um quarto por 35 reais. Um bom banho depois de 72 horas! Fazia um calor infernal, mas o ventilador aliviava. Me conectei e falei com minha família. Bateram à porta e perguntaram se eu queria comer. Havia sobrado algo do jantar e eles cobravam 10 reais por um prato com arroz, salada, frango assado, farofa e suco de cajá. Amigos, para aqueles que duvidavam, o Acre existe e é um lugar maravilhoso. Comer um prato tão brasileiro depois de meses viajando foi para deixar os olhos marejados.

Pela manhã tinha tapioca, pão de queijo, bolo, manteiga, café e suco de cajá. Nossa, foi o melhor café da manhã da minha vida! Descansei, comi muito bem, resolvi meus problemas bancários e restaurei minhas energias. Estava há nove meses longe de casa. Tinha dúvidas se queria seguir viajando ou se deveria retornar. Dois dias depois decidi seguir e parti rumo ao Peru. Cusco e Machu Picchu seriam os próximos pontos de minha viagem.

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