DOIS DIAS EM HAMBURGO
No caminho de Berlim para Copenhague, paramos dois dias em Hamburgo. Pouco habitual nos itinerários de brasileiros na Europa, é cidade bonita, muito visitada pelos alemães. Apesar das pancadas de chuva, achamos que compensou conhecê-la, e senti pena de só termos permanecido dois dias.
O hotel ficava longe da estação. Chamamos o Uber, e logo chegou Mustafá, o motorista. Turco de origem, ele trabalhou na Alemanha até a aposentadoria, quando passou a dirigir na praça. Na população nacional, os imigrantes são 12%, e nos últimos anos o país teve papel relevante no acolhimento a refugiados. A extrema-direita esperneia, alegando que eles tirariam empregos dos alemães, mas a lamúria é desmentida pelos dados: o país tem desemprego baixíssimo, em torno de 3%; em vários lugares, vimos anúncios oferecendo vagas. Longe de serem problema, os imigrantes ˗ muitos deles, jovens ˗ são convenientes para a vitalidade de uma sociedade que está envelhecendo.
Segunda cidade mais populosa do país, e seu maior porto, Hamburgo tem o cenário embelezado pelo lago Alster e pelo rio Elba, um dos maiores da Europa e marco importante na história alemã. Rodamos bastante pela área central, com especial prazer no calçadão da orla, e observamos a mescla entre os prédios clássicos, caprichados no estilo de suas épocas, e os modernos. Nos primeiros, sobressai a Rathaus (Prefeitura), portentosa construção de arenito, em estilo neorrenascentista. Nos modernos, o maior destaque fica por conta da arrojada arquitetura da Elbphilarmonique (Filarmônica do Elba). Inaugurada em 2017 e edificada em cima de antigo armazém portuário, ela tem fachada de vidro e cobertura na forma de ondas. Pena que não pudemos ir a nenhum concerto, e assim conhecê-la por dentro, pois os ingressos para nossos dias na cidade já estavam esgotados.
Foi instrutiva nossa visita ao Museu Histórico. Integrante da Liga Hanseática, aliança formada na Idade Média reunindo cidades da costa norte europeia, Hamburgo floresceu graças ao comércio marítimo. A rigor, ela não está à beira-mar, mas a 100 km da foz do Elba, no Mar do Norte; mas foi exatamente a localização rio acima que lhe proporcionou um porto bem protegido contra ataques inimigos.
Nas últimas fases da Segunda Guerra, Hamburgo foi intensamente bombardeada pelos raids de aviões britânicos e americanos. Além dos ataques a instalações portuárias e industriais, eles arrasaram 55% da área residencial, causando a morte de 5 mil pessoas e deixando 500 mil no desabrigo. No pós-guerra, a reconstrução foi rápida, e em poucos anos Hamburgo renasceu como polo econômico e cultural.
Num final de tarde, circulamos na antiga área do porto. Seguindo tendência comum em cidades portuárias, ela foi submetida a um processo de renovação urbana, e a Speicherstadt, maior bairro de armazéns do mundo, passou a ser utilizada para moradias e serviços diversos. Um pouco adiante, a HafenCity contém hoje uma extensa área residencial, comercial e de recreação, inclusive com prédios de estilo moderno. E foi preservado o recorte dos antigos canais.
Ainda no centro da cidade, demos uma olhada no Kontorhausviertel, que faz parte, assim como a Speicherstadt, dos patrimônios culturais da humanidade apontados pela UNESCO. Trata-se de um conjunto de construções erguidas após a Primeira Guerra Mundial para servirem de escritórios, comércio e residências. Com destaque para a Chilehaus, contruída entre 1922 e 1924, em projeto expressionista do arquiteto Fritz Höger. Transcorriam então os criativos e civilizados tempos da República de Weimar, período compreendido entre o final da Primeira Guerra e a tragédia do regime nazista.
Em passeio fora do centro, caminhamos pelo Karoviertel, bairro com toques de cultura alternativa. Admiramos ali vários grafites, inclusive um de autoria do artista brasileiro Crânio.
Em outro percurso interessante, fomos até o final dos 400 metros do túnel sob o rio Elba, construído entre 1907 e 1911. Em estilo art-déco, é um notável trabalho da engenharia de então, e os detalhes do acabamento e decoração também são de excelente qualidade. Hoje, o túnel continua sendo usado por pedestres e ciclistas. A caminhada compensa, até mesmo pelo panorama da cidade que se vê ao chegar na outra margem.
Nas calçadas de Hamburgo, como também nas de Berlim, várias vezes vimos pequenas placas metálicas com nomes gravados. Trata-se de judeus que moravam naqueles endereços antes que os nazistas os desalojassem e enviassem para o extermínio. Em 1933, ano em que Hitler ascendeu ao poder, havia 33 mil judeus em Hamburgo; hoje, eles estão em torno de 1.000.
Na Alemanha, está muito presente a lembrança do passado nazista. Desde a escola básica, o aluno aprende sobre aquele período e suas atrocidades; ao longo da vida, ele continuará vendo monumentos e memoriais pelo país inteiro. Trata-se de recordação dolorosa, e qualquer brincadeira ou piada sobre nazistas é considerada de mau gosto, sobretudo se feita por estrangeiros. Chamar um funcionário de “nazista” ou “Hitlerzinho” pode acarretar multa de 5.000 euros; sai mais barato xingá-lo de “Schweinehund” (“babaca”) e ser condenado a apenas 10 euros.
Como só ficamos lá de quinta a sábado, não tivemos ocasião de conhecer uma das atrações da cidade, o mercado do peixe; hoje em dia, ele funciona apenas nos domingos de manhã ˗ e só até a hora da missa… Mas em praticamente todas as refeições, comemos peixe ˗ afinal, estávamos num porto ˗, sempre muito bom. O que não nos seduziu foi o hamburger; mas a cidade nada tem a ver com essa invenção americana que só chegou lá em decorrência da disseminação da cultura de fast-foods.
Cerveja, sim, tomamos com gosto, como vínhamos fazendo desde Berlim. Bem diz um ditado alemão: “no paraíso não há cerveja, é por isso que a bebemos aqui”.
Havia muito mais o que ver em Hamburgo, mas já era o momento de seguirmos adiante, tal como aconteceu em 1962 com certos rapazes que estiveram tocando e cantando na cidade. Mas diferentemente dos Beatles, que partiram para a glória, nosso destino era despretensioso: simplesmente prosseguirmos viagem, rumo a Copenhague.
Para irmos até a estação de trem, chamamos o Uber, e quem apareceu? De novo, o Mustafá.