E quando chegar o dia de ir embora?

Sobre amor, felicidade e ir embora.

Flay Alves
Revista Passaporte
4 min readApr 8, 2019

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Aperto o botão até o térreo. O elevador desce. Através da vidraça, vejo os prédios da cidade. Um pensamento me ocorre: e quando chegar o dia de ir embora?

Não me refiro a ir embora desta casa. Ou desta cidade, tampouco deste país. Me refiro a ir embora desta vida.

Eu sei. Continuarei a existir de outros jeitos, em outros formatos da matéria. Talvez serei vento, ou o mar. Talvez serei natureza. Quem sabe uma caliandra? Que nasce em solo árido, é delicada, porém resistente. Quem sabe serei uma andorinha. Ou um urso polar.

Mas todos nós bem sabemos: um dia eu vou embora deste corpo, eu vou embora desta pessoa chamada Flaviana. Eu vou embora desta existência.

Muitas e muitas vezes, ao lembrar disso, me sinto patética. Sempre tão preocupada com os afazeres da vida. Sobre isto, certa vez, muitos anos atrás, me senti a Marta da bíblia. Sempre andando para lá e para cá, toda esbaforida, enquanto o mestre estava sentado à mesa, apenas desejoso por se partilhar. Sinto que o meu mestre interior está cada dia mais pertinho, e aos poucos me ensina a deixar de lado essas quinquilharias e apenas me ser.

Sim, somos patéticos. Sempre tão ocupados. Dedicados demais em fazer parte desse baile de máscaras. Ocupados demais nessa busca por validação social e atestados de felicidade. Tão ocupados, que nem nos sobra tempo para as alegrias cotidianas e as surpresas diárias.

Pensar nisso me faz querer deixar de lado scripts. Suscita em mim um profundo desejo de apenas transbordar amor. Me faz querer ser aconchego na vida daqueles que fazem meu coração vibrar. Me faz querer estar presente, quando perto ou mesmo apesar das distâncias geográficas. Desperta em mim uma vontade genuína de ser mais gentil, apesar de toda essa raiva que mora em mim.

Sim. Eu sinto raiva. Eu sinto dor. Eu sinto tristeza. E muitas outras coisas. Todos esses sentimentos moram aqui dentro. E provavelmente em você também.

Eu achava que só seria feliz no dia que expurgasse todos eles de dentro de mim. Mas é mentira. É impossível fazer isso. A não ser que você decida ser apático diante do mundo, e mesmo optando por isso, ainda assim algo vai te fazer sangrar.

O melhor que podemos fazer é aprender a conviver com tais sentimentos de maneira amorosa. Compreender que eles são parte imprescindível do caminho. E não se apegar a eles.

Hoje eu entendi: essa felicidade que vendem nas novelas, filmes e comerciais, é ilusória. A gente não precisa ter tudo perfeito para ser feliz. A gente precisa apenas deixar a porta aberta e a casa arejada.

Então levante-se da cama e ao tomar banho, limpe-se por dentro também. Não deixe o revés cotidiano te intoxicar, te sufocar, te envenenar. Deixe a porta aberta de fato. A maioria de nós foi ensinado a criar barreiras.

Um fato alegre nos ocorre, e em vez de celebrá-lo, o questionamos. Será mesmo? Uhn, sei não viu. Ah, mas quando a esmola é grande o santo desconfia. Ah, mas eu não mereço tanta felicidade. Nem tô acreditando. Mas por que eu?

Por que não você? Já se perguntou isso? Você pode ser feliz. Mais do que imagina.

Para você ter uma ideia: um dia desses me flagrei sem saber o que fazer com esse espaço vazio que criei. Então entendi: não fui ensinada a ser feliz. Fui ensinada a odiar o mundo. A sucumbir aos sofrimentos e ser uma pessoa apática, conformada e aleatória. Mas eu sou extraordinária. Você também. É totalmente novo para mim perceber que sim, eu posso ser realmente feliz.

[…]

Vivemos com medo do amor e da felicidade.

Temos tanto medo que aqueles que nos amam nos abandonem, que focamos energia demasiada na busca por comprovar que somos amados. E aí a gente esquece da parte mais importante: amar.

A gente esquece que aqueles que amamos precisam ser cuidados. Que nós podemos ser a pessoa que oferece uma xícara de chá, quando eles precisam de um pouco de calma. Podemos ser seu ouvido amigo ou aquele alguém que dá um abraço apertado, quando a vida decide virar furacão e tudo parece desmoronar.

Lembro que quando era adolescente tinha um desejo: queria ser uma boa pessoa. Mas esse era um desejo externo a mim, quase alheio. O que eu queria é ser classificada como boa. Queria ser boa aos olhos dos outros.

Hoje vejo sob um prisma diferente. Não quero mais ser boa. O que quero é: fazer bem ao outro. Externar bem. Que ao estar comigo, o outro se sinta bem. Eu quero exalar bem.

Sobre a felicidade: não a rejeite. Ser feliz é verbo. Ser feliz é celebrar.

Todas as vezes que estiver em encruzilhadas existenciais, use a seguinte pergunta para balizar sua decisão: e quando chegar o dia de ir embora?

Lembrar que não somos eternos muda nossa perspectiva diante da vida. Nos faz deixar de lado essa mania medíocre que temos de colocar nossas vidas numa régua social, econômica e cultural, e alarga nossa visão. Deixamos de ser um ponto no meio duma multidão, e passamos a nos ver como um pedacinho essencial desse imenso mosaico humano.

Dedico estas palavras à banda Mumford & Sons pela música Believe, que me despertou alegria e um senso de urgência por viver.

Dedico também à escritora Dayanne Dockhorn, pois seu texto Partir, mesmo sem saber o que está por vir suscitou reflexões preciosas em mim.

Ofereço estas palavras a minha amiga-irmã-alma gêmea Manu, que tanto bem me faz.

Dedico estas palavras a todas as pessoas que fazem do mundo um lugar mais belo.

Sou Flaviana Alves, escritora que percorre o mundo fazendo voluntariado e expedições literárias e compartilha vivências e reflexões sob a ótica de uma viajante mulher, negra e nordestina. Acompanhe meus relatos diários no IG.

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Flay Alves
Revista Passaporte

Escritora e jornalista antirracista, feminista e itinerante. Autora de Donas de Si. Escrevo sobre a potência da vida e o encanto de ser gente. Insta flay.alvess