Entre psicopatas e sushis

Thais Martinho
Revista Passaporte
Published in
10 min readMay 21, 2018

Digam o que quiserem, mas eu até gosto do Tinder. Sempre que estive solteira, o joguinho de deslizar para esquerda ou para direita em uma espécie de cardápio humano, me distraiu e divertiu bastante. Claro, nada é perfeito. Das últimas vezes que usei precisei de pelo menos umas cem deslizadas para esquerda antes de achar alguém que me interessasse minimamente. E sim, inevitavelmente você vai se deparar com os casos clássicos de caras pedindo “foto sua de agora”, ou perguntando o que você busca no app só para te contar que ele está buscando “aventuras sem compromisso”. Tem também os que estão em um relacionamento aberto, mas “esqueceram” de avisar suas parceiras.

Apesar de todos os embustes nele presentes, e acredite, questões como as acima vem em todos os idiomas, acho que esse tipo de aplicativo é especialmente legal em viagens. Sempre recomendo para minhas amigas que viajam sozinhas e querem conhecer caras locais. O mais bacana é que indo em um encontro, você também acaba conhecendo lugares que talvez não conheceria como turista. Ou seja, no pior dos casos, você esteve em contato com um local e conheceu lugares novos. O que poderia dar errado?

Não vou mentir: muita coisa.

Imagine você, cinco dias sozinha em uma cidade que já conhece e adora, querendo socializar com locais. Era o meu caso. Decidi usar o app e até achei, com um pouco mais de dificuldade do que esperava, alguns caras interessantes.

O primeiro deles se chamava Henry e parecia tímido, cheio de fotos misteriosas. Eu já usava o Tinder há algum tempo para saber que fotos misteriosas normalmente são sinônimo de cilada, mas acabei insistindo por pura falta de opção. Marcamos de encontrar em um final de tarde em uma praça de um bairro boêmio da cidade. Fazia frio e claro, o rapaz atrasou. Fiquei observando as pessoas saindo do metrô, o movimento da praça onde também ficava um zoológico e a alegria das crianças com seus algodões doces coloridos. Eu, que vestia um casaco de pele fake, estava recebendo muitos olhares estranhos e imaginei que a qualquer momento, conforme a noite caísse, seria abordada por alguém perguntando o preço do programa. Finalmente Henry se materializou em meio à multidão. Mais alto do que eu imaginava, magro, meio corcunda. Quando me cumprimentou, notei que seu cabelo estava sujo e ele tinha um cheiro rançoso, de quem passa dias de pijama dentro de casa. Nesse momento, já soube que não iria rolar nada além de amizade, porque cara sujo não dá. Seja feio, mas seja limpo. Ok, se der para não ser feio também eu agradeço.

Caminhando para o bar, soube que ele havia se mudado para a cidade há seis meses e era originalmente de uma província rural, ao norte do país. Parecia não ter vida social muito ativa, já que eu conhecia a cidade melhor que ele. Isso também queria dizer que ele não me levaria a um lugar novo e inusitado e eu acabei escolhendo o bar.

Henry quase não falava. Henry não bebia nem fumava. Henry não curtia viajar. Henry mal saía de casa. Henry era um chato. Mas acima de tudo, Henry era estranho. O tipo de cara que comete assassinatos horríveis e guarda os corpos na geladeira de casa. Quando a polícia finalmente descobrisse, os vizinhos apenas falariam que ele parecia um bom rapaz, muito quieto e que não incomodava. Para ser justa, Henry até tomou uma cerveja, mas me confidenciou que se bebesse mais que uma long neck poderia ter um “piripaque ou algo assim”. Além do medo do que exatamente seria esse piripaque, imagina ter que acompanhar Henry ao hospital? Tirei a cerveja dele e bebi. Ele agradeceu.

O resto da noite foi um monólogo meu, tentando sair daquele silêncio estranho. Ele respondia em poucas palavras, olhando pra baixo. Seu rosto estava vermelho e tinha uns tiques nervosos estranhos, o que me deixou feliz por ter inventado que encontraria uma amiga ali perto às oito da noite. O problema é que o tempo não passava. Tudo isso já tinha acontecido e só havia passado meia hora. Quando finalmente o relógio marcou sete e meia, eu já não podia mais esperar. Ele se ofereceu e até insistiu para me acompanhar até o local onde me encontraria com a minha amiga imaginária, mas inventei uma desculpa qualquer para ir sozinha. Ele foi embora e eu, aliviada, fui ao banheiro e comecei a pensar onde iria jantar. Quando saí e dobrei a esquina dei de cara com Henry. Ele ficou me esperando sair do bar.

– Faço questão de te acompanhar — disse seriamente, olhando para a minha cara pela primeira vez na noite. Sem reação, comecei a andar. Fomos caminhando rápido pelas ruas de paralelepípedo movimentadas do bairro, com seus bares coloridos e grandes grupos de jovens bebendo e falando alto. Agora quem não falava era eu, que apenas pensava em como me livraria dele. Foi quando a chuva começou a cair. Eu, que tinha um guarda-chuvas, fiquei aterrorizada com a ideia de dividi-lo com Henry e seu ranço. Aproveitei-me da situação para me despedir rapidamente usando a chuva como desculpa e sair correndo pelas ruas, com medo de olhar para trás e encontrá-lo de novo. Em seguida, o bloqueei em meu celular.

Depois de alguns meses, o Facebook me mostrou Henry como uma sugestão de amizade. Ali, ele usava outro nome e em um misto de choque e alivio, pensei que provavelmente havia escapado de um horrível destino em seu freezer.

Mais tarde, nessa mesma noite, conheci Martin. Estava jantando sozinha e ele passeava com seu cachorro pela rua. Eu era a única pessoa do restaurante disposta a jantar nas mesas da calçada com um frio de dez graus e seu labrador, Bob, veio direto ao meu encontro, como a encantadora de cães que sou. Começamos a conversar e ele comentou que o cachorro era na verdade do amigo com quem dividia o apartamento, que tinha que seguir passeando, mas que queria meu telefone para me levar para “jantar ou algo do tipo”. Ele mal virou as costas e já estava me mandando mensagens. Martin era bonitinho, educado e tinha iniciativa. Gostei disso, além de que a história de termos nos conhecido por causa do cachorro seria ótima para contar para os netos.

Nos próximos dias, continuei papeando com Martin e havia também começado a conversar com Jaime, um novo contato do Tinder. Jaime era músico, havia tocado baixo inclusive com o pessoal dos Secos e Molhados e vinha sempre para São Paulo comprar vinis e visitar os amigos que fizera aqui. Era um cara engraçado e divertido de conversar. O assunto com ele nunca acabava. Combinamos de nos conhecer pessoalmente na noite seguinte.

No dia do meu encontro com Jaime, Martin me ligou pois estava em um cliente perto de onde estava hospedada. Combinamos de tomar um café naquela tarde mesmo, uma vez que à noite eu já tinha planos.

Ele passou para me buscar de carro e parecia muito nervoso. Revendo aquele homem, vi que fui cegada pela noite e pela fofura de como nos conhecemos. Olhava para o seu sapatênis e me dava conta de que ele realmente não fazia meu tipo. Além de tudo, o cara olhava o tempo todo para o celular e não conseguia escolher um lugar para tomar o tal café e conversar. Comecei a desconfiar de seu comportamento e minha intuição me soprou o que no fundo eu já desconfiava: ele é casado. Na mesma hora, já cansada e irritada com a descoberta, decidi encerrar o encontro. Disse que ele parecia claramente preocupado com suas “questões de trabalho” e que era melhor que focasse nisso e nos encontraríamos outro dia — o que nunca aconteceria. Ele concordou aliviado e mencionou algo de sair no sábado, mas eu já havia lhe dado as costas e caminhava de volta para o albergue. Foda-se, pensei. A noite encontraria Jaime e seria no mínimo divertido. E de fato foi.

Nos encontramos em uma esquina de uma avenida movimentada. Eu, para variar, havia me arrumado demais. Ele chegou, baixinho, despojado e muito simpático. Gostei dele de cara, apesar de inicialmente não ter sentido atração física. Fomos a um bar muito antigo e tradicional da cidade, com poucas mesas ocupadas por senhores da idade do meu pai. Adoro lugares assim. Pedimos dois chopes e começamos a conversar. Ele mencionou que queria pagar pelas minhas bebidas, mas que estava com dinheiro contado. Eu disse que não era necessário. Jaime era cheio de histórias engraçadas e conforme a noite avançou e os chopes subiram à cabeça, eu já estava interessada. Ele também se mostrava interessado, mas notei que o fato de eu ser brasileira era quase um afrodisíaco para ele. Incomodei-me com essa generalização, mas não me importava o suficiente para ficar ofendida. Na saída do bar ele quis me abraçar pois “fazia frio”. Ali mesmo nos beijamos. E ali mesmo quis sair correndo e me jogar dentro do primeiro táxi que passasse. Que beijo era aquele? Sua língua dura era como punhaladas na minha garganta. Eu não conseguia entender o que ele estava fazendo. Como pode ser que alguém tenha namorado com um cara que beija assim? Se o beijo é assim, imagina o resto? Mais um desastre para a conta. Inventei uma desculpa e entrei no primeiro táxi que passou. Ele ficou com cara de cachorro que caiu do caminhão de mudança. Não sei o que pensou, mas entendeu que não rolaria mais nada, já que nunca mais me escreveu.

Depois dessa noite, resolvi desistir de aplicativos de encontro e homens em geral naquela viagem. Aproveitaria para conhecer a galera do albergue, sairia sozinha se fosse preciso, mas não conseguiria enfrentar mais nenhum encontro como os que tinha tido. Foi quando recebi uma mensagem do Nicholas, um cara que havia conhecido em uma viagem a trabalho. Em sua mensagem, ele me perguntava porque não tinha entrado em contato e que ele adoraria me mostrar a cidade. Havia me esquecido completamente que ele morava lá, mas lembrei que tínhamos nos divertido bastante juntos. Ele contou que havia feito um curso de sushi e que adoraria preparar um jantar japonês para mim. Pensei: preciso jantar, adoro sushi, economizarei dinheiro e não terei surpresas, uma vez que já o conheço. Concordei, ainda que um pouco relutante pelos traumas passados na viagem, e marcamos para a noite seguinte.

Assim que entrei em seu carro, ele me avisou que não tivera tempo de comprar as coisas para o jantar japonês e que poderíamos pedir comida no apartamento dele. Não gostei muito, estava animada com a ideia original do jantar, mas ele parecia bem cansado e achei melhor deixar quieto. Conforme ele ia dirigindo, começou a disparar uma série de perguntas aleatórias e então me lembrei: ele era daquelas pessoas que adoram fazer perguntas e mal ouvem suas respostas. Você se sente em um interrogatório policial ou entrevista de emprego — o que for pior. Finalmente lembrei que só havia insistido nele no passado, porque estava bêbada e tentando esquecer um cara com quem tive um relacionamento que terminou mal. Dessa vez, não me senti nem um pouco atraída por ele e quando chegamos ao seu apartamento eu já queria ir embora. No final das contas, ele me serviu uma taça de vinho e acabou pedindo sushi. Estava sendo muito gentil e atencioso, então decidi dar uma chance.

- Por onde andou o meu bebê, tenho sentido muitas saudades — sussurrou ele no meu ouvido quando me abraçou. OK, isso foi muito estranho. Só saímos duas vezes, dois anos atrás e não era como se ele tivesse tentado falar comigo nesse meio tempo. O pior de tudo foi a vozinha de bebê que ele fez para falar isso. Nem um jantar japonês justifica ter que passar por isso — e olha que eu gosto de sushi.

Enquanto ele me levava para um tour em seu apartamento eu, em pânico, já começava a pensar em que desculpa daria para fugir dali. Finalmente chegamos em seu quarto, que parecia aqueles clichês de apartamento de homens solteiros, com uma luz neon saindo por trás da cama e decorado em madeira e tons de preto e cinza.

- Voxê num vai me dar um beijo, bebê? — surge ele na minha frente, fazendo biquinho. Quando dei por mim, ele já estava me atirando na cama e me beijando com uma boca mole enquanto eu podia sentir seu pau duro pela calça de moletom, o que me deu ânsias. Quando o empurrei e pedi para ele ir com calma, me olhou com cara de criança contrariada perguntando — voxê num goxta maix de mim, bebê?

Por sorte, fomos interrompidos pelo interfone, avisando que a comida havia chegado. Salva pelo delivery de sushi. Ele recebeu a comida e eu me ofereci para pagar metade, o que ele rejeitou quase ofendido. Animado, ele declarou — ainda bem que sushi não esfria! — e, para o meu terror, foi me levando de volta para o quarto . Foi quando decidi que bastava. Falei para ele que queria jantar naquela hora e ele fez biquinho de novo com cara de cachorro abandonado. Perdi a fome.

Mesmo assim, insisti no jantar e enquanto comíamos ele voltou com o interrogatório. Queria adotar um cachorro e me perguntou nos mínimos detalhes como era a vida com um. Resolvi cansá-lo de tanto falar do meu cachorro, o que pareceu funcionar, pois lá pela sobremesa ele já estava piscando duro. Aproveitei a deixa para dizer que ele parecia muito cansado e que eu tomaria um táxi de volta para o albergue. Novamente o biquinho de criança pirracenta, a voz odiosa e a pergunta:

-Max neim uma rapidinha, bebê?

Frustrada, contei essa história para meu melhor amigo, enquanto jantávamos juntos em Nova York. Estávamos em uma conhecida cadeia de restaurantes “mexicanos”, que eram uma grande paixão do Francisco — provavelmente seu segundo lugar preferido para comer, precedido pelo McDonald’s e seguido pelo Habib’s aqui no Brasil.

— Desisto, sério— comentei resignada enquanto meu amigo ria. Seria mais fácil deixar um guardanapo aqui com o meu telefone e ver quem entra em contato.

E foi exatamente o que eu fiz.

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