Estações da Alma

Diante do ritmo frenético londrino, um olhar contemplativo.

Flay Alves
Revista Passaporte
4 min readApr 16, 2018

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Fotografia: Acervo Pessoal

Faz 11 graus. Aqui estou, sentada em frente à London Eye, lendo Che Guevara e exercendo o meu doce ofício de escrever.

Estar aqui me faz ter uma vista panorâmica do que é estar em Londres. Os meus olhos não são os mesmos de um turista que veio para ficar alguns dias e devora com pressa e desespero essa cidade de céu cinza e edifícios portentosos. Tampouco são os mesmos daquelas pessoas que vivem aqui há anos e por vezes têm a sempre lotada Westminster Bridge como seu trajeto de trabalho.

Enquanto olhava fascinada para o Big Ben pude distinguir claramente a diferença entre um e outro. Uns sempre com celulares a postos para uma selfie ou algum ângulo magnífico desses monumentos grandiosos. Os outros apressados com as situações corriqueiras da vida que simplesmente vai acontecendo, por vezes visivelmente tragados pelo mundo business londrino.

É claro, vez ou outra há tempo para parar e apreciar. Mas em meio a esse ritmo frenético parar definitivamente é uma escolha e isso vale pra mim, para o turista e para o morador. Por isso estou aqui.

Talvez aqueles que como eu, vieram para viver uma temporada, possam entender o que quero dizer. Há tempo, mas não o suficiente para desperdiçar. Há pressa, mas não o suficiente para impedir uma parada para admirar o pôr do sol em meio aos prédios portentosos, às casas que fazem-nos sentir parte de um filme ou livro de época — Cite-se de passagem o quanto essa sensação sempre é ambientada em minha mente pelos romances de Jane Austen.

Em Londres o antigo e moderno se encontram. Aqui há um ritmo frenético de tempos imemoriais. O novo e o velho dividem espaço. O velho mundo ainda habita cada canto deste lugar. O velho mundo paira sob largas avenidas, vai se esgueirando pelas ruelas mais estreitas e se embrenha à vida moderna.

Enquanto observo essa vista urbana imensa me pergunto se algum dia os meus olhos se acostumariam com ela e dariam a tanta grandiosidade o tom de banal. O pior é saber que a resposta é sim. Os dias cotidianos têm essa armadilha. Nos acostumamos com as belezas mais singulares. O espetáculo do sol, o encanto das estrelas, a sensação ímpar do vento, tudo isso vai deixando de ser contemplado lentamente.

O melhor de viver por temporadas é ir aprendendo a abominar essa aura anestésica dos dias corriqueiros. Vamos aprendendo a ter uma urgência paulatina, uma ânsia serena.

Assim que cheguei em Londres achava que deveria cumprir todos os roteiros turísticos indicados, sentia como se tivesse que sair por aí freneticamente para explorar a cidade, no entanto depois de alguns dias me dei conta de que não. Essa não é a maior beleza de viver nesse lugar. A beleza de estar aqui é poder realizar andanças sem rumo. Uma tarde tranquila no Hyde Park durante a primavera. Uma parada em um Café charmoso e aconchegante para ler Madame Bovary. Virar a madrugada em uma balada — qualquer balada — da Piccadilly Circus. Marcar uma saída para tomar uma cerveja e conversar com os amigos em algum pub da Trafalgar Square ou em Camden Town. Uma desacelerada para se deliciar com o som dos músicos que enchem de vida as estações de metrô. Fumar um cigarro sentada em frente a London Eye e escrever esse texto.

Este olhar contemplativo diante da vida que ruge me faz sentir como se o barulho e quietude interiores estivessem em comunhão com o caos e silêncio do cosmos, e não há nada mais pleno do que instantes assim.

Não poderia deixar de comentar que esse olhar, o contemplativo, é também algo que julgo necessário para o ofício do escritor. Muito dessa urgência paulatina sobre a qual falei permeiam nossos dias de palavras a serem rasgadas do peito e cortadas no papel, parafraseando Drummond. Esses nossos dias de madrugadas a matutar, esses nossos momentos de insights, essas memórias marcantes que incitam em nós temas e inquietações, tudo isso requer que aprendamos a ter ímpeto e serenidade para trilhar o caminho entre as ideias e o papel. Mais uma vez, a capacidade de contemplar, seja em meio à agitação ou em meio à quietude.

[…]

Nesse instante as badaladas do grande relógio se misturam ao barulho da sirene em movimento. O som do Big Ben ecoa em harmonia com o uivar do vento. Ouço o agito quieto dos motores roncando. É quase meia-noite. A cidade descansa, mas não para. Já não há mais tantos transeuntes, mas esse lugar nunca sossega completamente.

Não há sequer uma estrela nessa vastidão celestial cinzenta. Juro por Deus, nenhuma. Esse céu é diferente do céu das minhas raízes. O céu do meu Maranhão tem estrelas e sons diferentes. Tem barulho de cidade interiorana cunhada às margens de certa BR 153. Tem barulho de crianças brincando na rua e vizinhos à porta de casa. Tem o barulho da minha infância.

Agora estou aqui e lá. Sentada em frente ao rio Tâmisa e na palhoça paroquial. Está tudo cinzento. Está tudo estrelado. As memórias nos transportam para onde o nosso coração está e é por isso que me sinto em dois lugares.

Faça-se uma promessa em lugares especiais. Um grande amigo de alma boêmia me ensinou. Uma promessa que faça você se manter viva em dias difíceis. Nada de obrigações e fardos. Uma promessa que seja âncora.

Fecho os olhos. Nunca perder de vista a beleza das minhas estações.

Aqui dentro por vezes faz sol, mas também há dias de frio. Às vezes as folhas caem no meu interior, mas depois as pétalas florescem. Cada temporada tem a sua beleza e como tudo no universo são findas, mas quando tocam a nossa alma podem gravar memórias eternas na nossa existência.

Sou Flaviana Alves, escritora que percorre o mundo fazendo voluntariado e expedições literárias e compartilha vivências e reflexões sob a ótica de uma viajante mulher, negra e nordestina. Acompanhe meus relatos diários no IG.

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Flay Alves
Revista Passaporte

Escritora e jornalista antirracista, feminista e itinerante. Autora de Donas de Si. Escrevo sobre a potência da vida e o encanto de ser gente. Insta flay.alvess