Fez, a Capital Cultural Marroquina

Viagem pelo Marrocos, com fotos de Odete Polesi (3/4)

Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
6 min readApr 23, 2018

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Se há programa imperdível em Fez, é um rolezinho na medina, a maior e mais bem preservada “cidade velha” do mundo árabe. Na primeira incursão, contratamos um guia local − foi o modo de ganhar tempo sem nos perdermos nas numerosas atrações daquele emaranhado.

Ali, não circulam carros perturbando o formigueiro humano − no mundo, é a maior área urbana interditada a eles. Pelas vielas estreitas, estende-se um diversificado comércio, com lojas se concentrando em espaços especializados por ofícios: curtume, carpinteiros, entalhadores, artesãos do bronze…

Porta Azul, principal entrada da medina de Fez.
Trecho do curtume, visto do alto. Pendentes das paredes, peles de camelos, bois, cabritos.
Cena da medina de Fez.

São centenas de milhares de moradores, mas da rua não se vê o interior das casas. Onde não há lojas, o transeunte observa apenas uma parede contínua; às vezes, uma porta, raramente uma janela. Mas a porta costuma levar a um pátio interno, por onde se faz a ventilação; pode haver um jardim e até um surpreendente cenário de requinte. Em Zohra’s Ladder, a escritora inglesa Pamela Windo, que morou no Marrocos, fala de “dois aspectos da vida árabe, o privado e o público. Dentro, tudo é recatado, sereno e protegido; fora, tudo é visível, drama e comércio. E no limiar mágico entre os dois mundos, a porta de entrada, frequentemente solene e ornamentada, em comparação com o despojamento das paredes.”

Perto da Porta Azul, está a Madrassa Bou Inania, fundada no século XIV para o estudo da teologia muçulmana. O prédio, que teve restaurações, apresenta esplêndidos mosaicos, azulejos e trabalhos em madeira e em gesso.

Detalhe da Madrassa Bou Inania.

Em frente, acha-se a clepsidra, relógio movido pelo fluxo da água, também do século XIV. Na época, a medina de Fez já contava com 70 km de rede de água e esgoto, e todas as casas tinham fonte e latrina; enquanto isso, a Europa Ocidental ainda levaria séculos usando penicos. A clepsidra, porém, empacou aos duzentos anos de trabalho, e não há quem a faça andar de novo. Alguém se candidata?

Clepsidra de Fez.

Outro ponto alto é a Universidade Al-Karaouine, do século IX, tida como a mais antiga do mundo. Como está hoje interligada a uma mesquita, só muçulmanos podem visitá-la. Contentamo-nos em espiar por uma porta que dava para o pátio interno. Entre seus personagens notáveis, figurou Maimônides, filósofo da Idade Média que morava na medina. A condição de judeu nunca o impediu de lecionar na Al-Karaouine, onde havia estudado. Ao pararmos à porta de sua casa, comentou o guia: “Esse é o verdadeiro Islã”; depois, ele nos deixaria algum tempo no museu de artesanatos de madeira enquanto ia orar na mesquita.

Transmitida por gerações, a habilidade artesanal marroquina permanece notável. Ao se mudar para o país, o escritor Tahir Shah contratou um artesão para colocar um mosaico em sua casa e se admirou de ver que o homem, antes de assentar suas cinco mil peças, as posicionava de cabeça para baixo, com a face incolor voltada para cima. Ia então pinçando uma após outra para colocá-las no lugar exato; sabia a cor de todas elas. Em escala menor, pude eu próprio ver essa cena numa cooperativa de artesãos; no caso, era o mosaico de um tampo de mesa.

No alto da coluna romana, o ninho da cegonha.

De Fez, fizemos alguns passeios “bate-volta”. No sítio arqueológico de Volubilis, visitamos ruínas de uma cidade do Império Romano. Ainda restam pontos interessantes: mosaicos, colunas, vestígios da canalização de água...

Detalhe das ruínas de Volubilis.
Mosaico de um piso em Volubilis.

A meia hora de Fez, Sefrou nos atraiu por ser localidade menor, mais tradicional. Fomos de grand-taxi, lotação interurbano mais espaçoso que os táxis urbanos − era um Mercedes bastante rodado, mas em bom estado. Além do motorista, viajávamos seis passageiros: quatro, atrás; e na frente, minha mulher e eu, encolhido entre ela e o motorista. Acabamos nos ajeitando e até pudemos, no trajeto, contemplar ao longe montanhas nevadas.

Em Sefrou, almoçamos num restaurante popular. Em mesa próxima, uma moça comia um franguinho tentador; apontamos ao garçom: “Un comme ça!”. Deliciosamente temperado, saíu baratíssimo.

Franguinho “un comme ça”.

Numa barraca, compramos mexericas e saímos saboreando pela rua. Mas sem vermos lixeiras, não sabíamos onde jogar as cascas. Da porta de sua lojinha, um vendedor de azeitonas percebeu: chamou-nos, ofereceu uma lixeira, disse-nos que há no Marrocos laranjas melhores que a mexericas (que estavam ótimas!), foi pegar uma e gentilmente nos presenteou.

Ainda gulosos, entramos numa pequena confeitaria e comemos uma tortinha magnífica, pagando uma insignificância. Se a dominação francesa não tiver servido para outra coisa, pelo menos promoveu uma pâtisserie de qualidade.

Em Fez, o Museu Batha, dedicado ao artesanato marroquino, tem acervo pequeno mas caprichado. Funciona num antigo palácio − belo prédio, valorizado por um jardim onde impera um frondoso carvalho.

O Museu Batha e seu carvalho.

Como muitos moradores de Fez, passeamos no Jnane Sbile, vasto parque nas imediações do palácio real. Recanto aprazível, lembra a frase do Alcorão: “Com um jardim, Ele os compensará das dores sofridas”.

Manhã de domingo no Jnane Sbile.

Na última noite, quisemos jantar num hotel renomado pela bonita decoração. No Google Maps, seriam 17 minutos de caminhada atravessando a medina. Mas depois de uma bela andança, caímos num trecho residencial pobre. Não parecia haver hotel caro ali perto. Os 17 minutos já eram, e o Google Maps deixara de informar coisa com coisa. Estacamos meio perplexos, pois planejáramos tudo corretamente; e como dizem os marroquinos, “se o minarete vem abaixo, a culpa não é do barbeiro”.

Então, um rapaz se ofereceu para nos guiar − 5 minutos até o destino. Mas o tal hotel estava fechado para reforma. Jantamos num restaurante vizinho, de comida mais ou menos. Havia, porém, música ao vivo, com dança do ventre. Ombros descobertos e barriga de fora, a dançarina empolgava os turistas chineses.

Preferimos voltar de táxi. Seguia conosco uma outra passageira que acabara de subir, recatadamente abrigada num casacão, com véu cobrindo os cabelos. Ao descermos, notamos que era a moça da dança do ventre…

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Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.