Gilberto De Martino
Revista Passaporte
Published in
3 min readFeb 7, 2022

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Levei minha mãe para o Atacama

Minha mãe tinha noventa anos e sofria de artrose no joelho esquerdo, mas estava saindo de um período difícil de doenças dela e de uma neta de quem gosta muito. Eu me propus fazer uma viagem de aventura a ela, cujo destino seria uma surpresa e só seria revelado no meio da trajeto. Achei que isso a animaria e ela topou.

Então passei uns dias pensando em um destino. Ela tem um sonho de conhecer o Taj Mahal. Faríamos uma parada em Dubai. Viajaríamos devagar. Pesquisei mas era época das monsoons lá na India, a logística e o longo trajeto me desanimaram.

Queria aproveitar a disposição e a vontade de viajar de minha mãe naquele momento. Se demorasse muito ela certamente desistiria.

Foi então que pensei no Chile e em algo totalmente diferente: o deserto do Atacama. Radical.

Eu buscava um cenário que fosse totalmente diferente do seu cotidiano. Na minha imaginação seria uma terceira dose booster de ânimo. Escondi a supresa da todos. Acho que inconscientemente já sabia que iriam me condenar e até me proibir. E não queria esse desgaste. Falariam tanto que eu teria que ir mesmo para um hotel em alguma estância de água mineral. Coisa que nem eu, nem minha mãe queríamos naquele momento.

Guardei o segredo.

Com a ajuda de um amigo, escolhi um hotel bem bacana perto de San Pedro de Atacama, com uma arquitetura interessante compatível e com os materiais locais, seguindo tradições construtivas da região. Pensei em tudo. Pedi serviços especiais de translado, cadeira de rodas nos aeroportos etc.

Eu estava bem animado. E ela também, embora não soubesse para onde iria.

Minha impulsividade, e excitação com a idéia desconsiderou algumas coisas importantes. Todo o meu planejamento foi para aquela mãe com o espírito inquieto e curioso de 50 anos que sempre guardei na minha mente. E foi feito com imaginação, as emoções de um filho que, de espírito nunca passou da adolescencia.

No aeroporto falei que iriamos ao Chile mas que o local avisaria quando chegássemos a Santiago. Foi uma via cruxis de cadeiras de rodas, imigração, filas, translado até chagarmos ao hotel.

Generosa e bem humorada ela começou a observar as cores locais, as flores poucas, mas exuberantes ao longo de todo o caminho. Um exótico casal de pavão que habitava o hotel apareceu para nos saudar na recepção.

Tudo muito bonito.

Registramos e procedemos ao chalé. Uma pequena caminhada. Estava a uns 2–3 passos adiante da minha mãe e quando me viro e a vejo desfalecer. Em câmera lenta ia caindo. Devagar. Aos poucos. Tive tempo de segurá-la antes que chegasse ao chão.

Era um passarinho nas minhas mãos.

Desesperado levei-a ao quarto e corri ao telefone pedindo socorro. Muito gentis as atendentes, vieram trazendo chá de coca. A senhora de 90 anos estranhou a altitude do Atacama. Como não pensei nisso?

Já me culpava tremendamente pela irresponsabilidade e total descuido com os detalhes básicos de uma viagem como essa. Amarguei momentos de remorso em um lugar tão inospitamente bonito e perigoso. O adolescente sumiu de repente. E era eu quem tinha 50 anos mesmo.

Passado o susto, pudemos ainda programar um passeio pela cidadezinha no dia seguinte. Chamei o único taxi da cidade, que era na verdade um ônibus escolar de uns 20 anos de idade e que rodava pela região toda.

Todo mundo nos ajudava por onde passávamos, afinal não era comum ver uma senhorinha de bengala fazendo turismo na região. Um lugar cheio de gente atlética com mochilas nas costas, roupas coloridas e agitadas. Nosso ritmo era lento, muito lento. Cheio de paradas. Suavizados pelos sorrisos das pessoas que sempre ofereciam um banco para minha mãe descansar e esperar o tal taxi.

Terminamos a viagem e minha mãe voltou para casa com um seu mesmo batalhador espírito de 50 anos.

Fui eu quem envelhecera.

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