Marrakech, a Cidade Vermelha

Viagem pelo Marrocos, com fotos de Odete Polesi (4/4)

Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
6 min readApr 30, 2018

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Cena de rua em Marrakech.

À medida que o ônibus entrava em Marrakech, logo nos chamou a atenção o tom avermelhado das casas, dando certa homogeneidade ao cenário urbano. É resultado da areia regional usada nas construções, a ponto de chamarem Marrakech de “cidade vermelha”.

Nossa pousada ficava próxima da célebre Djema El Fna, a espaçosa praça na entrada da medina. Quem assistiu ao clássico O Homem Que Sabia Demais (Alfred Hitchcock, 1956) se lembrará que logo no início um homem é esfaqueado na medina e vai cair morto em plena praça. Felizmente, nada disso vimos, nas vezes em que passamos ali. E nem cabeças de condenados à morte espetadas em estacas, como se fazia num passado longínquo. Pena é que tampouco encontramos os contadores de história que ali entretinham o público − ainda existirão? Hoje, as atrações pega-turistas parecem ocupar boa parte do espaço.

Incessantemente movimentada, a medina de Marrakech tem o inconveniente da circulação de lambretas e scooters, que se somam às bicicletas e aos burricos de carga − a toda hora tínhamos que ir administrando o caminho.

Com a variedade de artesanatos e o colorido comércio, suas ruas são um espetáculo estimulante, mas quem insistir ainda achará mais o que xeretar. Um dia, fomos procurar a conceituada loja Mustapha Blaoui. Em certo momento, o Google Maps indicou que chegáramos ao destino, mas não o víamos. Consultado, um moço disse que voltássemos 50 metros e nos levou até lá: não havia letreiro, mal se lia o número na porta. Mas ao entrarmos, demos com um imenso salão onde se vendiam tapetes de qualidade. Depois, outras salas e mais andares, com interminável profusão de artigos para a casa − luminárias, vasos, louças e por aí afora. Em termos de Mil e Uma Noites, seria a caverna de Aladim… Nada compramos, mas foi um passeio divertido, e em nenhum momento sofremos assédio de vendedores.

Na medina, há vários museus e espaços culturais. Instalado no Palácio Mnebhi, antiga mansão, o Museu de Marrakech expõe trabalhos do artesanato local. O pequeno acervo está muito bem apresentado, e a beleza do prédio vale a visita.

Luminária do Palacio Mnebhi.
No Museu de Marrakech, trabalhos de oleiros e ceramistas.

No Dar Bellarj, outro antigo palácio, um casal de arquitetos suíços anima um centro cultural. Depois de dias apreciando belas heranças artísticas do passado, entramos ali em contato com a arte contemporânea do país.

Foto exposta no Dar Bellaj.
Ainda o Dar Bellaj.

Pouco adiante, a Maison de la Photographie exibe retratos do Marrocos entre 1870 e 1950, tirados por profissionais estrangeiros, notadamente europeus. Um deles, de autoria de Pierre Verger, excelente fotógrafo francês que após correr o mundo se fixou em Salvador.

Almoçamos no despretensioso Kafe Fnaque Berbere, que serve autênticos − e primorosos! − tagines marroquinos. Pertencente à família dos ensopados, o tagine é um dos principais pratos do país; o outro é o cuscuz, com grãos de semolina. Eles podem vir com carne de vaca, vitelo ou carneiro, com frango ou peixe, ou ainda terem preparo vegetariano. E o molho varia bastante.

Os marroquinos apreciam certa panqueca que frequentemente é feita nas calçadas. Não nos entusiasmou. Mas adoramos o pão, sobretudo o das ruas, mais gostoso que o dos hotéis. Ao caminharmos, se sentíamos cheiro de pão novo, procurávamos de onde vinha. Achávamos uma portinhola e lá dentro, na penumbra, comprávamos o pãozinho na boca do forno. Já saíamos comendo.

Vai uma panquequinha? Consultada, a vendedora consentiu ser fotografada, mas pediu uns trocados. Como bem dizem os marroquinos: “se tens muito, dá tua riqueza; se tens pouco, dá teu coração”.
O irresistível pão marroquino.

Atrás da Praça dos Ferreiros, está o Palace Bahia − em árabe “bahia” significa “brilho”. O caminho passa perto do mellah, bairro judeu; antiquìssima no Marrocos, a comunidade judaica se reduziu bastante devido à emigração, sobretudo para Israel. Em árabe, mellah significa “local de salgar”. No passado, era ali que se salgavam cabeças degoladas dos condenados à morte, para depois serem expostas na praça central − e a incumbência cabia a salgadores judeus.

Construído no século XIX, o Palace Bahia foi residência de um grão-vizir, espécie de primeiro-ministro. Restaurado, o prédio tem charmosos jardins internos, e mais uma vez admiramos a arte dos vitrais e azulejos… No total, são oito hectares. Mas o homem precisava, mesmo, de espaço: tinha quatro esposas e 25 concubinas…

Saída para um dos pátios do Palace Bahia.

Quando souberam que um projeto imobiliário ocuparia o Jardim Majorelle, Yves Saint-Laurent e seu companheiro Pierre Bergé, que tinham casa em Marrakech, adquiriram o lugar e patrocinaram sua restauração. É um belo recanto, com plantas de diversas partes do mundo: bambuzais, cáctus variados… O ingresso custa caro, mas a griffe YSL atrai visitantes, e se forma longa fila no portão.

Recanto no Jardim Majorelle.

Igualmente bonito, mais amplo, livre do enxame de turistas e sobretudo gratuito é o jardim vizinho à majestosa mesquita La Koutoubia. Encontram-se ali algumas laranjeiras, mas de laranjas azedas, que não se colhem. Sua função é perfumar, e foram os árabes que as trouxeram para o Marrocos. Também as levaram para a Andaluzia, e quem já esteve por lá deve tê-las visto em pátios de catedrais e palácios.

Em deslumbrante prédio do começo do século XX, erguido como residência do pachá (governador), o Museu Dar El-Bacha serve para exposições, sobretudo as que focalizam as culturas formadoras da identidade marroquina.

Detalhe do Dar El-Bacha.

Havia uma bem montada exposição abordando as convergências entre as grandes religiões monoteístas surgidas no Oriente Médio: judaísmo, cristianismo e islamismo. São as três Religiões do Livro (Torá, Bíblia, Alcorão). Vários objetos ressaltavam as analogias; por exemplo, o turíbulo cristão e os queimadores de incenso das duas outras religiões. Também se mencionavam similaridades nas narrativas: Adão e Eva figuram nas três crenças, assim como Noé e Abraão (o Ibraim maometano). E existe a veneração muçulmana às figuras de Jesus, Maria e até São Jorge…

Lançada por um museu público de país muçulmano, essa iniciativa de diálogo interreligioso mostra que o mundo islâmico não é tão fechado e intransigente como alguns imaginam. Existe, mesmo, certa autocrítica, como na fala de um personagem do romance La Nuit Sacrée, do marroquino Tahar Ben Jelloun: “Eu amo o Alcorão como uma maravilhosa poesia, e tenho horror dos que o exploram como parasitas e limitam a liberdade do pensamento”.

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Uma revista colaborativa brasileira para todos que amam ler e escrever sobre viagens.

Antonio Carlos Boa Nova
Antonio Carlos Boa Nova

Written by Antonio Carlos Boa Nova

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.

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