Marrakech, a Cidade Vermelha
Viagem pelo Marrocos, com fotos de Odete Polesi (4/4)
À medida que o ônibus entrava em Marrakech, logo nos chamou a atenção o tom avermelhado das casas, dando certa homogeneidade ao cenário urbano. É resultado da areia regional usada nas construções, a ponto de chamarem Marrakech de “cidade vermelha”.
Nossa pousada ficava próxima da célebre Djema El Fna, a espaçosa praça na entrada da medina. Quem assistiu ao clássico O Homem Que Sabia Demais (Alfred Hitchcock, 1956) se lembrará que logo no início um homem é esfaqueado na medina e vai cair morto em plena praça. Felizmente, nada disso vimos, nas vezes em que passamos ali. E nem cabeças de condenados à morte espetadas em estacas, como se fazia num passado longínquo. Pena é que tampouco encontramos os contadores de história que ali entretinham o público − ainda existirão? Hoje, as atrações pega-turistas parecem ocupar boa parte do espaço.
Incessantemente movimentada, a medina de Marrakech tem o inconveniente da circulação de lambretas e scooters, que se somam às bicicletas e aos burricos de carga − a toda hora tínhamos que ir administrando o caminho.
Com a variedade de artesanatos e o colorido comércio, suas ruas são um espetáculo estimulante, mas quem insistir ainda achará mais o que xeretar. Um dia, fomos procurar a conceituada loja Mustapha Blaoui. Em certo momento, o Google Maps indicou que chegáramos ao destino, mas não o víamos. Consultado, um moço disse que voltássemos 50 metros e nos levou até lá: não havia letreiro, mal se lia o número na porta. Mas ao entrarmos, demos com um imenso salão onde se vendiam tapetes de qualidade. Depois, outras salas e mais andares, com interminável profusão de artigos para a casa − luminárias, vasos, louças e por aí afora. Em termos de Mil e Uma Noites, seria a caverna de Aladim… Nada compramos, mas foi um passeio divertido, e em nenhum momento sofremos assédio de vendedores.
Na medina, há vários museus e espaços culturais. Instalado no Palácio Mnebhi, antiga mansão, o Museu de Marrakech expõe trabalhos do artesanato local. O pequeno acervo está muito bem apresentado, e a beleza do prédio vale a visita.
No Dar Bellarj, outro antigo palácio, um casal de arquitetos suíços anima um centro cultural. Depois de dias apreciando belas heranças artísticas do passado, entramos ali em contato com a arte contemporânea do país.
Pouco adiante, a Maison de la Photographie exibe retratos do Marrocos entre 1870 e 1950, tirados por profissionais estrangeiros, notadamente europeus. Um deles, de autoria de Pierre Verger, excelente fotógrafo francês que após correr o mundo se fixou em Salvador.
Almoçamos no despretensioso Kafe Fnaque Berbere, que serve autênticos − e primorosos! − tagines marroquinos. Pertencente à família dos ensopados, o tagine é um dos principais pratos do país; o outro é o cuscuz, com grãos de semolina. Eles podem vir com carne de vaca, vitelo ou carneiro, com frango ou peixe, ou ainda terem preparo vegetariano. E o molho varia bastante.
Os marroquinos apreciam certa panqueca que frequentemente é feita nas calçadas. Não nos entusiasmou. Mas adoramos o pão, sobretudo o das ruas, mais gostoso que o dos hotéis. Ao caminharmos, se sentíamos cheiro de pão novo, procurávamos de onde vinha. Achávamos uma portinhola e lá dentro, na penumbra, comprávamos o pãozinho na boca do forno. Já saíamos comendo.
Atrás da Praça dos Ferreiros, está o Palace Bahia − em árabe “bahia” significa “brilho”. O caminho passa perto do mellah, bairro judeu; antiquìssima no Marrocos, a comunidade judaica se reduziu bastante devido à emigração, sobretudo para Israel. Em árabe, mellah significa “local de salgar”. No passado, era ali que se salgavam cabeças degoladas dos condenados à morte, para depois serem expostas na praça central − e a incumbência cabia a salgadores judeus.
Construído no século XIX, o Palace Bahia foi residência de um grão-vizir, espécie de primeiro-ministro. Restaurado, o prédio tem charmosos jardins internos, e mais uma vez admiramos a arte dos vitrais e azulejos… No total, são oito hectares. Mas o homem precisava, mesmo, de espaço: tinha quatro esposas e 25 concubinas…
Quando souberam que um projeto imobiliário ocuparia o Jardim Majorelle, Yves Saint-Laurent e seu companheiro Pierre Bergé, que tinham casa em Marrakech, adquiriram o lugar e patrocinaram sua restauração. É um belo recanto, com plantas de diversas partes do mundo: bambuzais, cáctus variados… O ingresso custa caro, mas a griffe YSL atrai visitantes, e se forma longa fila no portão.
Igualmente bonito, mais amplo, livre do enxame de turistas e sobretudo gratuito é o jardim vizinho à majestosa mesquita La Koutoubia. Encontram-se ali algumas laranjeiras, mas de laranjas azedas, que não se colhem. Sua função é perfumar, e foram os árabes que as trouxeram para o Marrocos. Também as levaram para a Andaluzia, e quem já esteve por lá deve tê-las visto em pátios de catedrais e palácios.
Em deslumbrante prédio do começo do século XX, erguido como residência do pachá (governador), o Museu Dar El-Bacha serve para exposições, sobretudo as que focalizam as culturas formadoras da identidade marroquina.
Havia uma bem montada exposição abordando as convergências entre as grandes religiões monoteístas surgidas no Oriente Médio: judaísmo, cristianismo e islamismo. São as três Religiões do Livro (Torá, Bíblia, Alcorão). Vários objetos ressaltavam as analogias; por exemplo, o turíbulo cristão e os queimadores de incenso das duas outras religiões. Também se mencionavam similaridades nas narrativas: Adão e Eva figuram nas três crenças, assim como Noé e Abraão (o Ibraim maometano). E existe a veneração muçulmana às figuras de Jesus, Maria e até São Jorge…
Lançada por um museu público de país muçulmano, essa iniciativa de diálogo interreligioso mostra que o mundo islâmico não é tão fechado e intransigente como alguns imaginam. Existe, mesmo, certa autocrítica, como na fala de um personagem do romance La Nuit Sacrée, do marroquino Tahar Ben Jelloun: “Eu amo o Alcorão como uma maravilhosa poesia, e tenho horror dos que o exploram como parasitas e limitam a liberdade do pensamento”.