Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
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23 min readSep 19, 2018

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Desde menino, eu olhava aquelas fotos. Sempre soube que meu pai passara um tempo exercendo sua profissão de médico em plena selva do Acre. Vim depois a saber que foi a serviço do Conselho Nacional do Petróleo, atendendo aos que lá se ocupavam na prospecção de jazidas. Em área vizinha, o Peru descobrira petróleo, e o Conselho apostava que o Brasil também acharia; achou, mas não ali.

Junto da sonda do Acampamento Pedernal, Acre, trabalhadores do Conselho Nacional do Petróleo.

Com poucos anos de formado e uma especialização em malariologia, partiu ele para o Acre em meados de 1939, só retornando mais de um ano depois. No Rio, ficaram minha mãe e meu irmão, de três anos.

O que eu desconhecia eram papéis que estiveram guardados até que minha mãe, já viúva, falecesse: três cadernetas com o diário das primeiras semanas e seis longas cartas − cerca de vinte páginas, em letra miudinha. Cartas com jeito de diário: iam sendo escritas até que houvesse portador. E ao dirigi-las à sua mulher, utilizava ele vocabulário de medicina, como entre colegas. Hábito que sempre manteria: em casa, lembro-me do realismo sangrento com que narrava atendimentos prestados − inclusive à mesa, sob horrorizados protestos de minha mãe…

As anotações começam por registros minuciosos dos tempos da viagem de ida − feita de barco, segundo o costume da época:

O Baependi.

“Parti do Rio de Janeiro no Baependi, do Loide Brasileiro, no dia 14 de julho de 1939, às 9 horas da manhã.”

Três anos depois, o Baependi, torpedeado por um submarino alemão, naufragaria no litoral brasileiro, ocasionando a morte de 270 pessoas. A comoção da tragédia, somada a outros afundamentos, levaria o governo a declarar guerra às potências nazifascistas.

“Cheguei a Belém do Pará no dia 31 de julho, às 11 da manhã.”

Meu pai costumava contar um acidente do desembarque em Belém. Quando estavam atracando, ele era um dos primeiros na balaustrada. Mas, ao se dar conta de ter esquecido no camarote uma carta que poria no correio, foi buscá-la. Ao voltar, uma cena chocante: a escada de desembarque despencara, jogando passageiros no rio; houve quem se afogasse. Destinatária da carta, minha mãe se gabava de tê-lo salvado…

Prosseguia o relato:

“Parti de Belém no dia 1/8, entrando no rio Amazonas nesse mesmo dia. Cheguei a Manaus às 12 horas de 7 de agosto.”

Enquanto aguardava a data do novo embarque, admirou-se de certos contrastes na capital amazonense. A loja Careiro era famosa pelos preços em conta; na Rua dos Remédios, não havia farmácia, e a Rua das Flores não as tinha. Visitou a Igreja do Pobre Diabo e conheceu o Dr. Barba, que tinha cara raspada.

Aproveitando a parada, fez provisões:

“Um mosquiteiro; um filtro; trinta garrafas de água mineral; cinco latas de biscoitos; dois pijamas (pois ia viajar 30 dias sem poder contar com lavadeira); vinte filmes para máquina fotográfica; oito caixas de sabonete; seis tubos de pasta Kolynos; uma lata de talco; quatro dezenas de lâminas gilete; três tubos de sabão de barba; meio litro de água de colônia; dois milheiros de cigarros, um espelho…”

Chama a atenção a água de colônia figurando nas compras de quem ia para a selva. Nenhuma surpresa para quem conheceu meu pai, homem cioso da apresentação pessoal. Já o talco − explicou− era para evitar frieiras, comuns naquele clima úmido. Também as latas de biscoitos seriam úteis: tempos depois, escreveu que o pão do acampamento era “miserável de ruim”.

E embarcou novamente:

“Às 22 horas de 17 de agosto, parti no navio Tupy, da Companhia de Navegação do Rio Amazonas, denominado de ‘gaiola’ pelo povo. Navegamos primeiramente rio Negro abaixo e entramos no rio Solimões. Subimos o Solimões durante 6 dias e 6 noites, e fiquei conhecendo as cidades de Manacapuru, Codajás, Coari e Tefé e muitos seringais. No dia 24 de agosto, chegamos ao Porto de Paranaguá, onde encontramos a ‘chata’ Therejuia, para a qual baldeamos. A seguir, entramos no rio Juruá.”

A caderneta relaciona onze atendimentos médicos feitos nesse trecho da viagem; nove, gratuitos. Um dos pacientes complementou o pagamento com uma dúzia de ovos de pato.

Às margens do Juruá, uma samauneira. Atingindo 40 a 50 m de altura, é tida como “árvore da vida” pelos habitantes da Amazônia (Foto: Dr. Avelino I. de Oliveira).

“Cheguei a Cruzeiro do Sul no dia 12 de setembro.”

Hoje com 80.000 habitantes, Cruzeiro era então cidadezinha de poucos recursos. Escreveu ele: “um lugar tão à toa que nem cinema tem”.

Vista parcial de Cruzeiro do Sul.
No porto de Cruzeiro do Sul, moradores observam um pequeno vapor de partida pelo rio Juruá.

Seriam mais seis dias de espera até zarpar para a subida do rio Moa, afluente do Juruá:

“No dia 18 de setembro embarquei no batelão do serviço. Dormi no seringal Pentecoste, na rede armada ao relento, em duas árvores. Às 4 da madrugada, acordei ensopado, pois desabou uma formidável carga d’água. Às 5 horas, prosseguimos viagem para a Serra, rio Moa acima. Muitas paradas tivemos que fazer para cortar, a machado, enormes árvores que impediam completamente o prosseguimento”.

Nos meses seguintes, ele transitaria algumas vezes entre Cruzeiro e o acampamento, sempre parando para pernoitar em condições precárias.

O vale do rio Moa se estende pela região noroeste do Acre.

Certa vez, anotaria:

“Às 7:10 da noite, chegamos ao Seringal Aurora (mal-assombrado, dizem), onde dormimos. Estava tudo alagado e andamos com água pelo joelho até chegarmos à casa do seringalista, que estava abandonada.”

Setenta dias após deixar o Rio, aportaria por fim no Acampamento Central − três horas rio acima, havia ainda um outro acampamento, o Pedernal, então “o núcleo de população mais ocidental existente no Brasil”; dali em diante, só se navegava de canoa. Com o insucesso das perfurações buscando petróleo, esses acampamentos seriam posteriormente desativados, e hoje a área está no Parque Nacional da Serra do Divisor.

Vista do Acampamento Central.

Andava meu pai inquieto por não ter notícias de casa. Nem notícia alguma, pois o rádio estava mudo:

“Há 45 dias, desde 12 de agosto, quando ainda me encontrava em Manaus, não recebo uma só notícia de Elisa. É para desesperar. Não sei o que se passa no resto do mundo. Apenas soube em Cruzeiro do Sul que havia estourado a guerra na Europa, entre a Alemanha de um lado, e a Polônia, França e Inglaterra, de outro. Será possível? Será verdade?”

Feitas em 27/9, quase um mês após o início da Segunda Guerra, as perguntas soam estranhas para os habituados às comunicações imediatas de hoje. O posterior conserto do rádio permitiria sintonizar, em ondas curtas, algumas emissoras, quase todas estrangeiras (nacionais, só a Rádio Clube de Pernambuco e a Hora do Brasil). Nas transmissões em português e espanhol de rádios europeias, daria para acompanhar o noticiário da guerra. Em maio de 1940, comentaria:

“Pelas notícias ultimamente ouvidas, quer de fonte inglesa, francesa, alemã ou italiana, parece que a guerra terminará dentro de pouco tempo. Tenho também essa impressão, em vista dos rápidos progressos do exército alemão. A situação é muito crítica para os Aliados, que quase mais nada podem fazer.”

Como se sabe, a guerra ainda levaria cinco anos até a vitória aliada.

Retomada, a correspondência com minha mãe sofria longas demoras. Entre o Rio e Manaus, as cartas iam por via aérea, mas só havia um voo por semana. De lá até o acampamento, passando por Cruzeiro do Sul, era uma sucessão de barcos e de períodos de espera. Sugeriu ele modos de agilizar o processo: que, ao lhe escrever, ela postasse as cartas entre os dias 25 de um mês e 5 do mês seguinte:

“Basta isso para que eu as receba com o máximo de rapidez, isto é, pouco mais de 30 dias.”

Emperrando mais ainda o processo, havia os controles ditatoriais do Estado Novo, que no Território do Acre eram bastante invasivos:

“As cartas que me escreveste (talvez em setembro) ainda não as recebi, como também é possível que não receba pela ‘chata’ de novembro. Aqui ainda há censura, feita no próprio palácio do Interventor em Rio Branco; censura-se tudo, quer seja oficial ou não a correspondência. As cartas foram para Rio Branco, para serem censuradas pelo Interventor. A linha de navegação para Rio Branco, pelo rio Purus, é diferente da de Cruzeiro do Sul, e o navio lá vai também uma vez por mês e gasta cerca de 30 dias de viagem de ida e 18 a 20 de volta a Manaus. Embora esteja também no Acre, de Rio Branco para aqui não há outro caminho senão voltar a Manaus e pegar o navio para Cruzeiro do Sul, linha do Juruá. Se me mandares as cartas para Manaus (Caixa Postal 38), elas virão pelo viajante diretamente para Cruzeiro, sem passarem pelo ‘dissabor’ de irem a Rio Branco para serem censuradas.”

Além das cartas, havia os telegramas, que tardavam dois a três dias para chegar.

Em outra ocasião, meu pai pediria:

“Para que eu me distraia um pouco, desejava muito que me remetesses sempre o Correio da Manhã e O Globo, embora eles cheguem dois meses depois. De vez em quando, mande-me também a Noite Ilustrada e a Carioca.”

Detalhe do Acampamento Central.

Que razão o teria levado a ir trabalhar naquele ermo, tão distante da casa onde ficaram a mulher e o filho pequeno? Pelo que eu soube, suas finanças andavam complicadas, e a remuneração, que era atraente, permitiria reequilibrá-las. Em uma carta, meu pai fala de planos para depois de terminado o pagamento de “todas as dívidas”.

Nos acampamentos, seu trabalho era atender o pessoal do serviço e familiares. Dava assistência também a moradores das redondezas, sobretudo seringais, e essa clínica particular poderia, em tese, ajudar nas despesas. Mas raros eram os pacientes em condições de pagar. Registrou ele:

“Além da consulta grátis, forneço também medicamentos de graça. É uma enorme quantidade de gente que vem me procurar constantemente, todos miseráveis, sem recurso de espécie alguma, cujo único alimento, durante anos a fio, é a clássica farinha e peixe, ou alguma caça (veado, anta, caititu, queixada, mutum, jacu, jacamim ou mesmo arara). E, de um modo geral, vem em estado grave, quase para morrer. A clínica aqui é miserabilíssima. Quando rende muito, costumo ganhar um cacho de bananas, uma melancia, um abacaxi ou um coco, frutos que dão aqui melhor que em outra qualquer parte do mundo.”

Essa pobreza ele também via em Cruzeiro do Sul:

“Na viagem para a inspeção de saúde nos operários que iam ser admitidos, além deles atendi a cerca de vinte doentes, todos indigentes. Apenas de um doente particular recebi o preço da consulta ($10:000)!”

Dez mil-réis era o quanto valia uma galinha… Na lista de gastos da ocasião, consta uma esmola de $20:000 para o leprosário de Cruzeiro − “um amontoado de palhoças”, segundo escreveu.

Aos 31 anos, era ele o único médico na região (o colega mais próximo estava a dois dias de barco), e lhe cabia lidar sozinho com tudo o que aparecesse. Entre as enfermidades, destacavam-se endemias tropicais, como o impaludismo (malária), mencionado em algumas cartas:

* “Têm aparecido aqui muitos casos, e todos de forma grave, perniciosa − terçã maligna. Como não me é possível fazer nenhum trabalho de combate aos mosquitos, por exigirem obras de hidrografia sanitária, o único recurso de que disponho é a profilaxia química. Quando cheguei, não havia aqui impaludismo: os casos que apareciam eram de pessoas que vinham já infectadas de Cruzeiro do Sul, onde ele é a doença de que mais morre gente, nunca menos de um por dia. Mas com as contínuas viagens do batelão a Cruzeiro, vieram também os anofelíneos, transmissores da malária, juntamente com os impaludados: o resultado é que o Acampamento Central e o Pedernal estão já infestados. Atualmente, estou com oito casos.”

* Há quatro dias, capturei uma porção de anofelíneos que ainda não classifiquei por falta de tempo: vou ver se descubro alguma espécie nova, pois por aqui nunca esteve ninguém que conhecesse mosquitos. Sou o único malariologista que até hoje deu com os costados aqui.”

Não admira que também houvesse as picadas de animais peçonhentos:

* “Apliquei uma injeção de soro antiofídico no Chico Pimenta, rapaz de 17 anos que havia sido mordido na véspera por uma surucucu-bico-de-jaca.”

* “O Raymundo Daniel foi ferrado na coxa por um enorme escorpião. Apliquei-lhe logo uma ligadura apertada na raiz da coxa e bastante amoníaco na ferida. Não há aqui soro contra picadas de escorpião. Passou o dia com muita dor de cabeça, calafrios e tonteiras.”

* “O operário que chegou do Pedernal mordido por cobra deu-me um pouco de trabalho. Só agora à noite melhorou. Chegou com enorme hemorragia, pondo sangue pela boca e urinando sangue quase puro. Interessante é que todas as pequenas feridas que ele apresentava pelo corpo, em consequência de picada por mosquitos, começaram a sangrar, o que causou uma impressão horrível a todos, que pensavam que ele ia morrer esvaindo-se em sangue. Estava também com a perna inchadíssima até a raiz da coxa (foi mordido no pé) e sem vista. Apliquei-lhe duas ampolas de soro antiofídico polivalente às 3 da tarde, duas às 6 horas e outras duas agora à noite, às 9. Sustentei-lhe o coração e empreguei hemostáticos para combater a hemorragia. Parece estar fora de perigo.”

Exigindo constante cautela, a presença de animais silvestres já aparecera nas anotações dos primeiros dias:

* “Há pouco, quando entrei no meu quarto, passei por grande susto: um enorme escorpião, que o pessoal aqui chama de ‘lacrau’, em cima do travesseiro. Peguei com alicate e pus dentro de um vidro com álcool. Todos os dias, mato aranhas monstruosas e cabeludas no meu quarto. Ontem, o Protásio matou na ‘sentina’ (privada) uma enorme lacraia que quase lhe mordeu o pé. O Luiz, telegrafista, matou hoje uma surucucu na cozinha de sua casa, depois de fazer enorme berreiro, com medo da ‘bichinha’.”

* “Ontem, por volta das três da tarde, ouvi grande algazarra provocada pelo pessoal encarregado da lenha, do lado oposto do rio. É que apareceu um bando de cerca de cinquenta queixadas, enormes, e em atitude ameaçadora, querendo atacar os lenhadores. Eles gritavam pedindo socorro, ao mesmo tempo que subiam apressadamente nas árvores, pois só estavam armados de ‘terçado’ [facão], nenhum tinha arma de fogo. Os caçadores armaram-se de rifles e, em canoa, atravessaram o rio a fim de dar caça às queixadas. Nós outros, no Acampamento, assistíamos ao combate, que foi encarniçado. O Raymundo matou cinco, o Marcelino quatro, e o João duas queixadas. Hoje, ninguém deixará de comer carne de queixada, pois temos quase 500 quilos no almoxarifado.”

* “Caminhei 1 km a pé, pela estrada de automóvel, com o rifle na mão, pois aí abundam as onças. Encontrei o Caboclo e o Taveira, caçadores contratados do serviço. Vinham tristes, desolados: levaram quatro cachorros para a caçada, e só voltaram dois. Os outros dois foram mortos na beira da estrada por enorme onça que quase estraçalha também o Caboclo.”

E posteriormente, em cartas à minha mãe:

* “Hoje, logo após ter eu saído da ‘sentina’, foi lá um empregado e encontrou enrolada junto à tabua onde a gente se senta uma bruta surucucu-bico-de-jaca, que ele matou a pau. O homem perdeu até o ‘apetite’ de evacuar!!! O empregado ficou admirado por não ter eu dado com a bicha lá. De fato não a vi, mas tenho a certeza que ela lá não estava quando entrei. Certamente entrou logo após a minha saída.”

* “De manhã, quase fui mordido (e logo onde: no ‘fiofó da gaieta’) por uma enorme lacraia que estava calmamente em cima da tábua da latrina: a bicha devia ter uns 30 cm de comprimento. Nunca vi tão grande. Se eu me sentasse distraidamente, sem olhar a tábua, ela teria me ferrado. E no momento não tinha nada para matá-la, a não ser os pés (estava calçado); fui tão infeliz, quando, de mau jeito, lhe dei a primeira patada, que ela correu pela latrina abaixo e passou por um buraco que tem no assoalho e foi para debaixo da casa. De hoje em diante será mais uma preocupação para mim, pois ela poderá voltar.”

* “No Pedernal, dois caçadores mataram uma enorme cobra sucuriju, com cerca de 9 metros de comprimento e da grossura de uma lata de banha!!! As jiboias daqui são também colossais. Há cinco dias, no banheiro das mulheres, situado à beira de um igarapé que passa perto de minha casa, apareceu uma surucucu-de-fogo, que por um triz não ferrou minha lavadeira. Ela fez uma forquilha e prendeu a bicha; chamou uma companheira que estava perto para lhe arranjar um cipó, fez um laço e me trouxe a bicha vivinha; guardei-a num vidro com álcool; deve ter uns 70 cm de comprimento e uma pele linda: vermelha e ponteada de pontos pretos. Vou levá-la para aí, junto com outros bichinhos, todos conservados em álcool.”

Trabalhadores do Acampamento Pedernal.

Para meu pai, os acampamentos significaram a primeira experiência concreta e continuada de exercício da clínica médica. Antes, ele atuava inspecionando condições sanitárias em locais de trabalho; desde a residência médica, no final da faculdade, raramente clinicara. Precavido, cuidou então de levar consigo para o Acre livros de medicina. Comentaria em carta:

“Minha maior distração aqui é a leitura, o estudo. Tenho aproveitado bastante as horas de folga para estudar medicina. Os livros que daí trouxe me têm sido bastante úteis, pois são todos bons; aos poucos, vou aperfeiçoando meus conhecimentos de clínica, de cirurgia, de obstetrícia etc. Tenho estudado bastante e já adquiri uma boa prática policlínica.”

Ao completar oito meses na selva, escreveria:

“Só perdi dois doentes, indigentes que chegaram aqui já muito mal. Primeiro, uma pobre índia caxinauá, de 25 anos de idade, viúva, com cinco filhinhos pequenos; chegou com uma pneumonia terrível, e já estava doente há dez dias sem tratamento de espécie alguma, a não ser algumas beberagens sórdidas ministradas pelo Miguel Jumento, o mais terrível pajé do Alto Moa. O segundo, um seringueiro pobre, com insuficiência cardíaca, cirrose alcoólica, ascite e impaludismo crônico.

E dali a mais dois meses, entusiasmado com o reconhecimento que recebia:

“Todo o pessoal daqui tem grande confiança em mim. Dizem: ‘O Dr. Boa Nova só não salva o doente que chega aqui morto, com o coração paradinho’. Modéstia à parte, tenho tido inúmeros sucessos; também tenho tratado todos os doentes com o máximo de dedicação. A confiança que em mim depositam me dá um grande conforto.”

O atendimento médico se fazia com as terapias da época − antibióticos, por exemplo, ainda não eram usados. E com os limites locais de recursos e pessoal:

“Aparelhei muito bem o hospital, a farmácia e o laboratório. Mas aqui eu faço tudo. Faço também exames de laboratório frequentemente: sangue, fezes, urina. Eu mesmo é que faço a manipulação na farmácia e aplico todas as injeções (média de 14 por dia), pois o enfermeiro está quase cego, só enxerga sombras diante dos olhos; apenas deixo para ele fazer os pequenos e simples curativos.”

Os casos eram bastante diversificados:

* “Em quinze dias, tive cinco doentes de broncopneumonia (estamos no tempo de ela aparecer), quatro de beribéri, três de leishmaniose. Os de broncopneumonia (todos em crianças) me deram um trabalhão.

* “De 27 de abril até hoje [2/5], já fiz quatro operações: duas com anestesia geral (ambas de flegmões profundos) e duas outras com anestesia local. Todos felizmente passam bem. Ultimamente têm aparecido aqui diversos casos de reumatismo poliarticular. Estou com dois doentes impossibilitados até de se mexerem.”

* “De dois em dois meses, aparece um surto de gripe; e forma grave, que raramente eu via assim aí no sul. Febre elevada, faringite e comprometimento pulmonar e intestinal. Aqui, doente de gripe cai de cama e fica 12 a 15 dias de molho. Agora mesmo, apareceu novo surto: estou com uns doze doentes acamados.”

* “Escrevo-te do Acampamento do Pedernal, onde cheguei a fim de debelar um surto de grave disenteria entre os operários que estão trabalhando dentro da mata, na abertura da estrada de rodagem. Moram neste barracão cerca de 50 homens. Pois bem, todos eles caíram de uma só vez doentes”.

No Pedernal, onde permaneceu até sanar o surto, as condições eram bem rústicas:

“Não tem luz, não há conforto nenhum; meu ‘tapiri’ (palhoça) é de palha, de chão batido e cheio de bichos horrorosos pelas paredes: aranhas caranguejeiras, escorpiões medonhos de grandes e feios, lacraias. Não tem porta, nem janela, nem nada. Sou obrigado por isso a andar sempre armado: quando estou escrevendo, como agora, o revólver armado está na minha frente, em cima do ‘projeto’ de mesa; quando saio do ‘tapiri’, vai ele comigo na cintura. Aqui não se fabrica pão, e eu me esqueci de trazer bolachas; de maneira que estou comendo pão duro, feito na madrugada do dia 7, e o comerei até domingo, dia 12.”

E prosseguia queixando-se de diversos insetos, que relacionava com os nomes locais. Imagino minha mãe lendo a carta com o dicionário ao lado:

“Para maior tortura minha, carapanãs, piuns, maruins, micuins, cabas, potós…”

Sem dispor da profusão de repelentes que hoje temos, ele se valia apenas do Flit, inseticida comum na época. A irritação com mosquitos e outros insetos lhe dava saudades do Acampamento Central:

“Lá, meu quarto de dormir e o de vestir são inteiramente protegidos com tela; inclusive o teto, que em vez de ser madeira é uma tela.”

Em uma das cadernetas, meu pai anotava falas pitorescas que escutava. Assim, espantou-se que o morador do Acampamento que melhor se vestia tivesse o apelido de “Farrapo”. Quando uma mulher dava à luz, dizia-se que “descansou”. Ele, que nunca foi obstetra, teria pela frente vários desses “descansos”. Já no primeiro dia de trabalho, registrava no diário:

“Triste notícia: encontrei no Acampamento três mulheres grávidas: uma esperando o bebê para o princípio de outubro, outra para novembro e outra para dezembro. No Acampamento do Pedernal, tem mais duas.”

Acabaria por fazer vários partos, inclusive em condições difíceis. Um deles, narrou detalhadamente a minha mãe:

“Quando estava tomando café, chegou um empregado avisando-me que sua mulher, de apenas 18 anos, desde ontem à noite estava sentindo as dores do parto. Encontrei-a já sofrendo dores atrozes. Mandei o enfermeiro preparar a ‘ferramenta’ e eis-me mais uma vez ‘bancando’ o obstetra na vida, coisa de que nunca gostei. Examinei a posição do feto e fiquei assombrado: apresentação de espádua!!! Auscultei o coração fetal e este acusou 180 batimentos por minuto: o que quer dizer que o feto já estava sofrendo. As contrações uterinas da parturiente tinham chegado ao auge. Toquei-a (toque bidigital) e constatei que a dilatação do colo estava completada. Que fazer? A audácia impeliu-me a praticar uma coisa que nunca havia feito: calcei as luvas e enfiei a mão toda útero adentro à procura dos pés da criança. Minha mão lá dentro agia às cegas: que coisa difícil diferenciar dentro da cavidade uterina, apenas pelo tato (com luvas) os pezinhos do feto de suas mãozinhas!!! Tudo parece uma coisa só! Afinal, depois de muito tatear (e já estava suando frio), convenci-me que tinha segurado os dois pezinhos da criança: e não me enganei. A sorte também veio em meu auxílio. A este tempo, já havia mandado o enfermeiro aplicar na mulher uma injeção de morfina, pois as dores quase a faziam desmaiar. Com o máximo cuidado, fui puxando o feto, de mãos firmes nos seus pezinhos, e tão grande era ele que, ao se exteriorizar a cabeça, houve ruptura do períneo e grande hemorragia. Para completar a complicação, o cordão estava enrolado no pescoço do feto e ele, inteiramente arroxeado, não respirava. Tirado o cordão de volta do pescoço, paradas as pulsações do cordão, seccionado este, consegui, ao fim de uns dez minutos, reanimar a criança: era um meninão. A mãe jazia inerte, esvaindo-se em sangue: suturei o períneo e fiquei então à espera da placenta sair. Estava então com as roupas ensopadas de sangue. Esperei uma hora, nada; apliquei na mulher uma injeção de Pituitrim e nada; espremi o útero externamente, comprimindo-o bem e nada; a placenta estava retida. Já se tinha passado uma hora e meia quando resolvi enfiar a mão para fazer a extração manual da placenta. Foi sem luva mesmo: acompanhei o cordão até sua inserção na placenta e, com o necessário cuidado, descolei-a inteiramente e trouxe-a para fora comigo. Após isso fiquei pensando numa infecção puerperal e imediatamente apliquei uma vacina antipiogênica.

Felizmente, ela está passando muito bem, apesar de todas as complicações. E eu, que fiquei a princípio um pouco perturbado com as dificuldades, sinto agora um bem-estar enorme, pois parece estarem salvos mãe e filho. Além deste parto, ainda tenho, para estes próximos dois meses, caso ainda esteja por aqui, mais quatro outros. E aqui não há fórceps.”

No dia seguinte, acrescentaria:

“Minha parturiente felizmente vai passando muito bem, assim como a criancinha. Não teve a menor elevação de temperatura.”

Três semanas antes, tivera uma surpresa:

“Recebi em casa a visita de uma comissão original: cinco mulheres grávidas daqui do Acampamento Central, das quais a que está em estado mais adiantado de gestação espera bebê para fins de julho, vieram me pedir para que eu permaneça aqui até que todas deem à luz!!! Achei interessante a solicitação que até muito me sensibilizou. Entretanto, fiz ver a elas que talvez isso não fosse possível e que eu só sairia daqui depois que chegasse o meu substituto. Além dessas cinco mulheres, tem mais duas lá no Pedernal. Sete ao todo. E olhe que depois que cheguei já fiz cinco partos e um aborto.”

Durante seu período no Acre, mais de uma vez ocorreram terremotos:

“O acampamento foi sacudido esta madrugada por um violento tremor de terra. Eu dormia tranquilamente quando fui despertado por um ruído, seguido imediatamente de sacudidelas barulhentas de toda a casa (a madeira estremecendo). Tive a impressão que ia desabar em cima de mim. Como já tinha sido avisado que aqui são frequentes estes tremores, percebi logo o que estava ocorrendo. Durou cerca de 40 segundos.”

E seis meses depois:

“Estava sentado à minha mesa quando meus braços começaram a tremer e a letra a ficar também trêmula. Em seguida, a mesa começou a pular fortemente, os vidros que contêm insetos e cobras a se bater uns de encontro aos outros; em poucos segundos, minha casa, toda ela, foi sacudindo com tanta violência que tive a impressão de que ia desabar; era um violentíssimo tremor de terra. Corri para fora, quase perdendo o equilíbrio: mal me aguentava em pé. O pessoal todo gritava e corria para fora de casa. Uma moça que está em tratamento comigo desmaiou. Este tremor foi um dos mais violentos que já se registraram aqui. À noite, ouvindo a Rádio Nacional do Peru, estava o speaker empenhado em tranquilizar a população. Ocorreram muitos desabamentos em Lima, Callao e outras cidades, tendo morrido muita gente.”

No Peru, o terremoto de 24 de maio de 1940 foi um dos maiores do século XX. Com intensidade de 8,2 graus na escala Richter, foi seguido por um tsunami que inundou o entorno portuário de Callao.

Surgiam ainda outros contratempos:

* “Há três dias, num temporal pavoroso, caíram várias faíscas elétricas. Uma delas, a 200 metros de minha casa, rachou uma enorme árvore de cima a baixo. Em consequência das chuvas, passamos há poucos dias um susto com a enchente do rio Moa, que por pouco não leva a torre de sonda e vários barracões. Imagina que da noite para o dia o rio encheu quase 5 metros além do nível normal, que é 1,60 m; continuou ainda a encher durante o dia e à tarde estava com 8,20 m. Passamos acordados a noite inteira, trabalhando para impedir que alguma coisa fosse levada. A casa em que são guardados os motores dos batelões, bem como o barracão de fabricação de farinha, ficaram embaixo d’água.”

* “Na viagem de volta do Pedernal, o batelão foi de encontro a umas pedras e quase naufragou. Foi um choque tremendo. Dei uma terrível cabeçada num dos esteios que sustentam a cobertura; quase quebrei a cabeça, tendo ficado com um enorme galo. Felizmente cheguei são e salvo.”

* “Amanheci gripado. Foi em consequência de uma chuva torrencial que apanhei no Pedernal. Estou sem guarda-chuva, pois o meu, além de estar com o forro todo rasgado, quebrou-se há uns cinco dias, quando ia descendo do hospital para a casa de um operário doente. Estava escorregando muito na descida e eu, ao me apoiar no guarda-chuva para não cair, fiquei com o cabo na mão, pois ele se quebrou em dois lugares.”

Desde o início, encontrara ele um estilo peculiar de comida:

“Comi hoje no almoço jacu e carne de veado, e no jantar, cotia e uma coxa de jacamim.”

Em uma caderneta, listaria outras iguarias provadas na Amazônia:

“Tartaruga (sarapatel, picadinho, bife, peito etc.); tracajá (e ovos de tracajá, que o povo denomina ‘arabu’); iaçá; tucunaré; porquinho do mato; paca; mutum…”

Com o tempo, no entanto, o regime alimentar provocaria descontentamento:

“O meu menu do almoço e jantar é invariável: arroz, feijão, corned beef (conserva) e lombo de porco (conserva). As conservas estragam o estômago da gente e tornam-se no fim de algum tempo enjoativas. A sobremesa também é invariável: marmelada. Aqui também não há leite de vaca. Só se toma leite condensado. Carne também não, e a caça ultimamente tem rareado: uma vez ou outra é que aparece um veado, um caititu ou uma queixada. Anta tem aparecido mais, mas eu não como porque é muito dura a carne. Pirarucu também não como, pois sempre que comia tinha dor de estômago.”

Dependendo basicamente de Cruzeiro do Sul, o abastecimento de gêneros estava sujeito às irregularidades na vazão do rio Moa:

“Estamos quase passando fome: sem feijão, sem conserva, sem peixe. A caça tem escasseado muito, e os caçadores há muitos dias que voltam com as mãos vazias. Feijão, há um mês não comemos, pois em Cruzeiro também não há. A conserva acabou e os ‘mariscadores’ (pescadores) não têm ‘mariscado’ nada ultimamente. Há dias que estou comendo, no almoço e no jantar, invariavelmente: arroz, ovo, farofa e macaxeira. Devido à alimentação, estou sempre com o ‘bucho empachado’, como diz o povo daqui. A pouca carne de caça que tenho comido é de anta, que é muito ‘remosa’ (assim diz o pessoal), isto é, indigesta. Os caçadores estão agora até dando caça aos macacos, pois em último caso, passaremos a comer carne de macaco.”

Foram justamente as condições de nutrição que levaram meu pai a adoecer no final da temporada: contraiu beribéri, moléstia associada a dietas pobres em vitamina B. A constatação o intrigou:

“Os cientistas que melhor têm estudado o beribéri recomendam, como medida profilática, que se coma bastante banana, mamão, abacate, legumes, laranja etc. Ora, a não ser laranja, fruta que não há por estas bandas, eu aqui nunca deixei de comer legumes, abacate de vez em quando, muito mamão e, principalmente, muita banana como em média cinco ou seis por dia. Como é que fui apanhar beribéri?”

Embora sabendo que ele adorava bananas, nunca o imaginei comendo meia dúzia por dia… Entre outros distúrbios, o beribéri pode dificultar a digestão, coordenação motora e respiração. No início de agosto, a última carta relata:

“Ando 50 metros e fico cansadíssimo. Quase não posso subir os três degraus de minha casa; sou obrigado a sentar-me logo. Tenho tido tonteiras de tempos para cá e não posso abaixar a cabeça, nem ler durante muito tempo. Entretanto, isso tudo que eu vinha sofrendo há tempos não me impedia de trabalhar. Mas agora já ando com dificuldade: comecei a sentir muitas dores nas pernas e braços e acentuou-se a dispneia. Ao mesmo tempo, estou com as pernas inteiramente dormentes até o meio da coxa e os braços também. Não sinto as pernas; jogo-as quando ando. Sinto muitas dores nos joelhos e nas panturrilhas, mesmo quando deitado. Causa-me grande preocupação a perspectiva de ter que ficar imobilizado em uma cama e não poder desempenhar satisfatoriamente minha missão aqui.”

Esses sintomas se manifestaram justamente na ocasião em que o remédio contra beribéri se esgotara no ambulatório:

“Para os outros beribéricos, dispus de remédio tão eficaz como a Betaxina; para mim, não tenho remédios com que tratar-me!!!”

Encomendada por telegrama a Manaus, a Betaxina levaria pelo menos quinze dias para vir. Estava ele ainda em tratamento no início do mês seguinte, quando a chegada do substituto lhe permitiu partir de volta. Tinha a expectativa de encurtar o tempo de viagem, pois o governo do Acre estabelecera uma linha aérea entre Cruzeiro do Sul e Rio Branco, de onde existia voo semanal da Condor para o Rio:

“É quase certo que viaje de avião de Cruzeiro até Rio Branco. Se o Conselho do Petróleo me conceder permissão para viajar de avião pela Condor, gastarei cerca de sete ou oito dias de Cruzeiro do Sul ao Rio. Caso contrário, irei de Rio Branco a Manaus navegando pelo Purus, e de Manaus até aí, por mar. Neste caso, mandarei minhas malas pela ‘chata’ para Manaus, onde as encontrarei. Aproveitarei assim a oportunidade de uma passagem gratuita até Rio Branco e ficarei conhecendo de cima a imensa floresta do Acre, habitada ainda por muitas tribos de índios.”

Não conseguiu, porém, o que desejava e teve que repetir o percurso feito na ida: batelão até Cruzeiro, “chata” até a foz do Juruá, barco da Companhia de Navegação do Amazonas até Manaus, e o navio Duque de Caxias, do Lóide Brasileiro, até o Rio. De novo, mais de dois meses.

Viagem de volta: meu pai na balaustrada do navio em que viajou da foz do Juruá até Manaus.

Na viagem, consolidou a convalescença do beribéri. Teve também momentos de lazer: em Manaus, um amigo o levou de lancha para pescar num igarapé.

No trajeto, um episódio chamaria a atenção dos passageiros. Disfarçada de homem, embarcou em Fortaleza a jovem Elieth, que fugira de casa a fim de se tornar aviadora no Rio. Descoberta, assumiu a identidade e voltou a se vestir de mulher. Parece que depois conseguiu realizar o sonho.

Elieth, ainda com roupa de homem, a bordo do Duque de Caxias.
Já em trajes femininos, Elieth em companhia de um grupo de viajantes.

Em 27 de novembro de 1940, o Duque de Caxias entrava na Baía de Guanabara e meu pai fez questão de fotografá-la.

Reencontro com a Guanabara. No verso da foto, escreveu: “após quase ano e meio de ausência, nos extremos e misteriosos confins amazônicos”.

Dali a pouco mais de um ano, ele retornaria ao Acre. Dessa vez em viagem relativamente breve, quase toda em hidroavião, acompanhando o presidente do Conselho Nacional do Petróleo.

Por ora, no entanto, era o momento de chegar em casa, reencontrar mulher e filho, matar saudades.

Exatos nove meses e onze dias após sua volta, minha mãe “descansou”, como se diz na Serra do Moa. Em setembro de 1941, eu vim a este mundo.

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Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.