Mulher. Negra. Sonhadora. Nômade.

No Dia Internacional da Mulher, partilho divagações.

Flay Alves
Revista Passaporte
6 min readMar 9, 2019

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Onde você está? Me pergunto sucessivas vezes. Garota, onde você está?

Sentada num café há apenas algumas quadras de casa, pensamentos desordenados vem à mente.

Onde eu estou? Essa pergunta abarca tantas coisas e me intriga.

Na primeira vez em que estive nesse país eu subi num leão. Por Deus, em dado momento a única coisa que eu queria no mundo era estar em cima daquele leão. Em meio a um mar de turistas, me agarrei à estátua e saí me arrastando ladeira acima. Meu amigo me deu a mão. “Vem Flay, por aqui”. E eu fui. Tiramos fotos para registrar a conquista, mas naquela época tirar fotos fazia sentido. Hoje não faz mais. Pelo contrário. Naquela época tirar fotos coloria o presente. Agora desbota.

Já da segunda vez em que estive nesse país lembro de mim parada na Picadilly. O cruzamento de luzes e grandiosidades. Era uma sexta-feira. Todos queriam festa. Eu perguntei a alguém: “Nova York é assim?”. “Não, não é assim. Aqui é muito melhor”. E eu ousei acreditar.

Na terceira vez em que coloquei os pés em terras britânicas, meu coração acelerou. Enquanto tentava recordar os nomes das estações e o modus operandi do underground, olhava para o mundo ao meu redor e tudo me maravilhava. Uma certeza me invadiu naquele momento. Eu estava no lugar certo.

Não em casa. Apenas no lugar certo.

Agora dois meses se passaram. Hoje eu acordei e decidi tomar banho de água gelada. Tremi dos pés a cabeça. Mas como eu precisava daqueles choques e espasmos. Sempre que fico eufórica procuro por água. Bebo um copo. Tomo uma ducha. Molho as mãos. Lavo a cara. Como se fosse um peixe me afogando pela boca. Um bicho do mar que foi arremessado para a areia. E está se debatendo. Até que as ondas me alcançam e gentilmente me devolvem para o reino das águas.

É aí onde eu estou. Eu estou fora do meu habitat. Me sinto estrangeira. Não uma turista, nem uma migrante. Um pouco nômade. Mas acima de tudo e de modo avassalador eu me sinto uma estrangeira.

Não apenas uma estrangeira moderna, mas uma estrangeira de tempos imemoriais. Como se só agora houvesse me dado conta da diáspora que corre pelas minhas veias. Uma estrangeira de tempos ancestrais.

As pessoas não têm a menor ideia do que é ser uma mulher negra viajando por terras brancas. Estou lendo Mulheres, Raça e Classe, de Angela Davis. Li também um texto de Bell Hooks falando sobre a afetividade nas vidas negras. O que é isso | a minha existência | então? Enquanto percorro essas páginas e caminho por estas duas me dou conta, afinal.

Muitos são ludibriados pelo toque de Midas que há mim. Sim, eu tenho isso. Por vezes é difícil reconhecer, mas quando toco nas coisas com todo o meu ser elas se tornam reais. Um dia desses, minha sobrinha chegou em casa eufórica e me contou uma história que me fez refletir. “Tia, tenho uma amiga que é sua fã. Ela disse: sua tia é tão linda. Ela é capaz de realizar todos os sonhos que deseja. Ela é linda demais”. Não é a primeira vez que escuto isso. Sorte, mapa auspicioso, boa sina. Nunca ganhei na loteria. Uma ironia e tanto. Mas sim, quando olho para vida reconheço sua generosidade. Mas tenho medo de quebrar o encanto. Por isso sempre falo baixinho. Como se fosse uma magia que me envolve. E não é? E se for, qual o problema em reconhecê-la?

Demoramos tempo demais para admitir que somos especiais. Todos somos e esse é um argumento que usamos para parecer menos pretensiosos. No final das contas o que realmente importa é: você é capaz de abraçar essa magia? Não apenas reconhecer, mas deixar-se ser guiado por ela. Não olhar para os lados, apenas seguir o feixe de luz que se apresenta à sua frente. Não temer a abismos e tempestades, apenas seguir adiante.

E por isto também me sinto estrangeira. Eu sou uma mulher negra sonhadora reivindicando meu lugar no mundo. O mais duro é perceber que isso é uma petição diária ao outro e a si mesmo. Fomos educadas a nos colocarmos à margem. Saímos da sala. Baixamos a cabeça. Desviamos o olhar. Nos condicionamos a uma vida sofrida. E eu já nem sei como prosseguir com estas palavras. Porque este texto não é estritamente sobre racismo, é sobre apagamento. Apagamento de vidas. Apagamento de estrelas humanas.

Esses dias comentei com uma amiga que estava pensando em fazer um curso de literatura numa universidade europeia. Mal comecei a falar e ela se distraiu. Eu entendi a descrença em mim. Mas acima de tudo, eu entendi a descrença nela.

Para ganhar fôlego e conseguir terminar estas palavras, estou ouvindo agora mesmo Nina Simone. Mas o que tenho, afinal? Eu tenho uma vida. Eu tenho uma alma. Eu tenho sangue. Eu tenho uma vida.

Dentes. Braços. Pernas. Boca. Língua.

Então eu me dou conta. Ser uma mulher negra que passeia pelos cafés do mundo e compartilha olhares, versos e miudezas cotidianas é um ato transgressor.

Você é capaz de compreender a dimensão deste momento? É aí onde eu estou. Me deixando ser rasgada pelas incertezas. Pelos abismos que vão se abrindo à minha frente. Eu vejo um precipício e quero pular. Só para saber o que vou encontrar no final dele. Se antes eu fugia das incertezas, agora eu paro e deixo elas chegarem. Converso com elas. Vejo o que estão tentando me dizer.

E quanto mais estrangeira eu me sinto, mais à vontade eu estou. Mais eu quero não ser ninguém. “A dúvida é o preço da pureza”. Esse verso nunca fez tanto sentido. Da pureza de quê? Da vida. A vida é mais pura e límpida quando ousamos duvidar e “não ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Por isso eu insisto em dizer. Eu sou uma estrangeira. E digo mais: uma estrangeira retirante.

O sol escaldante. A estrada de chão. No ombro, o peso dos mundos. Braços esquálidos. Fugindo de caminhos já traçados. Lá longe, no topo de uma serra, eu avisto o que procuro. Eu escuto agora a música New York. Eu busco o movimento. Entrar sem pedir licença. Tirar os sapatos e andar descalça. Em meio a letreiros, eu vejo gente. E gente é tudo o que me importa. Subir na montanha e ter perspectivas. A montanha transcende o horizonte? Ou o alarga? Prefiro que o horizonte nunca acabe. Ele me faz caminhar. Então eu caminho. Chego na fronteira. Mas a fronteira é só uma linha imaginária. Quisera eu que fosse uma linha física, assim não ficaria rondando a minha mente. Mas ela é imaginária, por isso grudou na minha cabeça. Eu consigo atravessá-la? Eu estou atravessando. Andando sobre ela. No seu limiar. Flertando com seus pontilhados. Desdenhando de suas regras e temendo suas retaliações.

Mas nada disso importa. Eu não estou indo para casa. Estou indo para fora. Meu lar ficou para trás e tudo o que tenho é o que carrego comigo. E quem vai me dizer onde estabelecer nova morada? E quem vai me dizer quando parar? E quem foi que disse que busco uma nova casa? Será que não é exatamente disso que estou fugindo? Por que eu fui embora? Como cheguei até aqui?

Isto é uma travessia. Me perdi de mim mesma. Voltei alguns passos. Tentei colar os pedaços que ficaram para trás. Mas eram partes mortas. Então terei que seguir adiante. Reencontrar? Reconstruir? Reinventar? Refazer? Nada disso. Não mesmo. Descobrir novos jeitos. Novos gostos. Novas mentalidades. Novas ideias. Novas paixões. E ir deixando essas coisas se fundirem com o que ficou.

Então é aí que estou? Não estou em lugar algum. E se estou, já nem sei. Não saber já nem importa. Sentir importa. Saber? Nem tanto.

Sou Flaviana Alves, escritora que percorre o mundo fazendo voluntariado e expedições literárias e compartilha vivências e reflexões sob a ótica de uma viajante mulher, negra e nordestina. Acompanhe meus relatos diários no IG.

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Flay Alves
Revista Passaporte

Escritora e jornalista antirracista, feminista e itinerante. Autora de Donas de Si. Escrevo sobre a potência da vida e o encanto de ser gente. Insta flay.alvess