Temple Bar na sexta, dia 02/03/2018 quando o forte da nevasca já tinha passado

Neve na Irlanda?

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Revista Passaporte
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7 min readMar 4, 2018

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A última década têm sido repleta de acontecimentos, tanto aqui na Irlanda, como no Brasil, daqueles que ficarão registrados para a posteridade. Confesso que sinto-me um pouco envergonhada com relação aos acontecimentos históricos do meu País, mas esse não é foco do texto. E sim, a Irlanda e a neve sem precedentes.

Desde que nos mudamos para a Irlanda há aproxidamente um ano e meio já tivemos um furacão, coisa que nunca tinha acontecido por aqui, um primeiro ministro assumidamente gay, ‘a quase aprovação’ da lei do aborto e agora uma nevasca. Dentre outros acontecimentos não menos relevantes.

Mas o que tem de tão fenômeno na neve?

Essa parte da Europa não é um local que neva em geral, alguns dias mais frios do inverno pode acontecer de cair uns gelinhos, mas não uma nevasca. Ainda mais em Março, quase fim do inverno. Se fosse no Natal ainda, mas em março só pode ser coisa do aquecimento global (minha teoria).

O último registro de neve tinha sido em 2010 e não foi dessas proporções. Feito como esse de 2018 dizem os jornais que só tinha acontecido em 1982, em uma época que a sociedade e tecnologia nem se comparavam com o que temos hoje.

O desenrolar dos acontecimentos

No final de semana que antecedeu o fenômeno eu comecei a acompanhar na mídia e na previsão do tempo as chamadas alertando para uma mudança radical no clima, com a possibilidade de neve. Quando o tal do ‘beast from the east’ ou melhor dizendo, a besta do leste levou uma nevasca histórica para Roma e Inglaterra, tivemos certeza de que não saíriamos ilesos aqui na ilha.

Uma coisa que se aprende na Irlanda é ser o neurótico da previsão do tempo, você checa o app do celular, checa o site de previsão mundial, dá uma olhadinha no do jornal para ver se confere e quando a coisa aperta acessa o site da previsão do tempo do governo, que é de lá que vem os alertas, em caso de necessidade.

Na segunda-feria (26/08/2018) quando cheguei no trabalho combinamos um mini plano de ação para caso a neve viesse mesmo. Os diretores da empresa embarcavam no dia seguinte para uma viagem aos Estados Unidos então deixamos tudo mais ou menos alinhado de como deveria acontecer. E aí começaram os jornais, as redes sociais a destacar para o que estava vindo. Eu devo dizer que até presenciar com meus próprios olhos estava bem incrédula. No dia do furacão (Ophelia) fizemos toda uma preparação, trabalhamos de casa, a cidade parou, nada funcionou e no meu ponto de vista não tivemos tão grandes estragos assim.

Casal fazendo graça na neve no Grand Canal, em Portobello

Quarta-feira (28/02/2018) eu e o Alex, como de costume acordarmos as 5h30 para ir na academia antes do trabalho e nos deparamos com uma boa quantidade na neve nas ruas. Tinha chegado a tão esperada neve, mas fomos treinar e vida que segue. Voltamos e estavámos nos arrumando para ir trabalhar quando ambos os telefones começaram a pipocar nos grupos de trabalho com orientações de que tudo estava parado. E aí começou a correria, os ônibus já não conseguiam mais passar nas ruas, os trens estavam com horários espaçados. Nossas empresas orientaram para trabalharmos de casa.

Na noite anterior eu já havia passado no mercado para estocar algumas comidas e já não tinha mais pão, leite e ovos nas prateleiras, isso que nem um floco de neve tinha caído ainda. Corri no mercado na quarta de manhã já com um pouco de neve para ver se conseguia algo mais e a disputa estava acirrada. Comida estocada voltei para o quentinho do lar e seguimos no ‘home-office’ usando o aquecimento como se não houvesse amanhã.

Tinha que ter uma selfie nevada

E aí foi o dia todo de mais neve e com a previsão de que a coisa iria ficar muito pior na quinta-feira (01/03/2018). O cômite de crise do governo decidiu que as escolas deveriam fechar de quarta até sexta, ou seja, retornando somente na próxima segunda. Os meios de transporte também pararam de operar. E consequentemente as empresas tiveram que fazer o mesmo. Sem meio de transporte ninguém chega ao trabalho e aí tem uma reação em cadeia. Sem escolas e creches abertas os pais não tem com quem deixar os filhos, etc.

Exagero ou prudência?

O fato é que a Irlanda é um País que não é preparado para a neve. Obviamente não precisa, pois não neva aqui. Os carros, infra estrutura em geral não estão preparados para gelo, não tem pneus de neve , não tem carrinhos que limpam as calçadas. Logo, para segurança o governo precisa tomar atitudes que aos olhos de outros Países podem soar radicais.

Um fato que me chama a atenção na sociedade e governo como um todo aqui é esse fator segurança das pessoas em primeiro lugar. Bem, venho de um País onde a segurança das pessoas é desrespeitada dia após dia, óbvio que isso se destacaria para mim. No primeiro dia da nevasca, assim como foi no dia do furacão, a hastag #staysafe (fique seguro) #staywarm (fique aquecido) já estava totalmente difundida. No rádio, na TV, a todo o momento eles pediam para as pessoas se preservarem e ficarem de olho nos vizinhos mais velhos, pessoas mais frágeis e vulneráveis.

Tudo fechou, super mercados, mercadinhos, restaurantes, cafés, etc. Claro que um ou outro local os próprios donos abriram porque tinham como chegar. Mas de forma geral foram quase 4 dias onde tudo completamente parou. Obviamente isso será um baque na economia do País, sem falar nas perdas com relação à agricultura e com os alimentos que não conseguiram chegar nas prateleiras dentro da validade, esse número não foi divulgado ainda, mas certamente em breve será.

Grand Canal, em Portobello, no bairro que moramos. Aparentemente o ganso perdeu a noção de espaço, já que eles nunca saem do canal para o meio da rua.

Mas mesmo assim me surpreendeu como prevaleceu em primeiro lugar a segurança das pessoas e a mobilização para que ficassem em casa seguras. Isso ainda é um pouco difícil para a minha cabeça 100% trabalho e que vem de experiências anteriores totalmente diferentes.

Exemplo do que estou tentando explicar no texto

Eu tinha um congresso para participar no dia 01 de março, na quinta-feira, dia mais intenso da nevasca. Um congresso organizado pelo Trinity College, a maior universidade da Irlanda, que está entre as 100 melhores do mundo, teria palestrantes do mundo inteiro para esse fórum. Na quarta recebi um e-mail avisando do cancelamento do evento devido ao alerta vermelho metereológico, que eu poderia optar por receber meu dinheiro de volta ou deixar em crédito para o evento do ano que vem, veja bem 2019.

Na minha concepção, o evento sim seria cancelado porque nem o aeroporto estava aberto para esses palestrantes chegarem, mas que seria reagendado para sei lá mês que vem. Não! Cancelado, simples assim. Infelizmente cancelamos, você terá o seu dinheiro de volta e se quiser será bem vindo no evento do ano que vem. E isso acontece de forma natural, sabe, sem sofrimento, sem berros e gritos e sem revoltas. Esse é o baque para mim.

Eu e Alex na Grafton Street, uma das ruas principais de comércio de Dublin

As consequências

Eu não sei dizer se isso é bom ou ruim para a sociedade, é claro que tem os pontos negativos e não são poucos. Mas confesso que me sinto sim um pouco aliviada de saber que chegarei na segunda-feira para trabalhar de forma tranquila e serena e não me sentindo culpada porque fiquei 3 dias trabalhando de casa, sem poder chegar até o escritório e com várias coisas pendentes.

É claro que alguns representantes, como por exemplo da comunidade hoteleira, já estão se manifestando dizendo que a Irlanda não pode parar diante de uma ameaça meteorológica. Que outros Países sofrem com condições muito mais adversas e que as coisas continuam acontecendo. Essa discussão vai dar muito o que render ainda aqui ilha. Mas continuo com meu posicionamento de que a preocupação com as pessoas felizmente pesou mais do que o capitalismo vigente. Sinto uma pontinha de esperança com isso. Afinal como boa brasileira sempre penso que nem tudo está perdido e dá-lhe fé e esperança.

E mais selfie de baixa qualidade de resolução

O saldo geral da nevasca foi realmente impressionante, aeroporto fechados por quase 3 dias. Imagens aéreas que mostram praticamente toda a Irlanda coberta de branco. Crianças se divertindo com seus bonecos de neve e brincadeiras polares. Memes dos mais divertidos que já vi. Foram dias de divertimento nos grupos de whats app irlandeses.

Outro ponto que não posso deixar passar despercebido é o senso de humor dos irlandeses de forma geral. Eles tem um humor muito peculiar, irônico, crítico, e engraçado ao mesmo tempo. Eu acho fantástico. Imagina, gaúcha, sisuda, vinda da parte menos bem humorada do Brasil. Que experiência! E em uma situação como essa eles conseguem levar de forma muito tranquila. Eles fazem graças de si mesmos, dos próprios problemas e esteriótipos de uma forma muito leve. Têm sido um aprendizado.

Agora voltamos a vida normal e torcendo para que o aquecimento global, que tem mexido tanto com o clima mundial não pegue tão pesado das próximas vezes.

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Suellen Machado, a Brazilian living in Ireland, a journalist by degree, marketing for a living, a traveller when I can, and an occasional writer.