No movimento das marés de Cumuruxatiba

Annamaria Marchesini
Revista Passaporte
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6 min readNov 4, 2019

A delícia de esquecer o mundo num lugar “onde o tempo não tem pressa e a preguiça é mais gostosa”, como definem os moradores do vilarejo baiano

O que restou do pier de Cumuruxatiba, que tinha 600 metros e foi construído por uma empresa alemã para facilitar o acesso de navios à praia para retirada da areia monazítica. Dizem os nativos que ele é da década de 50. Hoje dá nome à praia e é puro charme.

De todas as cidades que visito trago um mapa. Já tenho quantidade suficiente para formar uma barriguinha na pasta onde os guardo. Faço isso porque sou perdida. Minha noção espacial é zero. Em questão de direção, direita e esquerda se confundem facilmente (o que não acontece em relação à ideologia, onde caminho firmemente à esquerda). Perco-me pelas ruas, mas sempre com um mapa no bolso para emergências. E prefiro os de papel aos do celular. Cada um, cada um.

O mapa com a tábua das marés do ano

Por que estou falando de mapas? Porque acabo de adicionar à coleção o de Cumuruxatiba, vilarejo no litoral sul da Bahia, e ele é o único onde consta uma tábua das marés. Por um bom motivo: é no vai e vem do mar que se pauta a vida por ali. Afinal, “Cumuruxatiba” significa, na linguagem pataxó, “grande diferença entre a maré baixa e a maré alta” (dicionário informal na web). Barcos saem “se a maré estiver alta”. Ir a pé até a Ponta do Moreira? “Só na maré baixa”. E segue assim. Esqueça a ideia de fincar guarda-sóis na areia e se refestelar nas cangas para descansar e se bronzear. Quando a maré está baixa, o bom é caminhar pelas pocinhas d’água entre os barcos encalhados e percorrer suas praias de olho no movimento das águas para retornar antes da preamar. Quando a maré sobe, o melhor é se acomodar nos jardins das pousadas à beira-mar, num deck ou nas estreitas faixas de areia que ficam acima do nível do mar, na orla.

Parece que a maré baixa só para criar estas lindezas. Beleza e paz ao mesmo tempo e em doses gigantescas.

Quem visita Cumuru entre julho e outubro pode ver as baleias jubarte que seguem da Antártida até o arquipélago de Abrolhos, região onde se reproduzem. Barcos levam os visitantes para avistá-las. E, garanto, é tão emocionante que chega a dar vontade de chorar. (Vivi esta experiência há alguns anos em Abrolhos). Segundo o ICMBio (Instituto Chico Mendes), anualmente cerca de 9 mil baleias fazem esta viagem até o “berçário” brasileiro. Este ano as primeiras baleias chegaram ao arquipélago, a 109 km de Cumuruxatiba, no dia 31 de maio e foram embora em setembro. Ainda bem. A partida precoce evitou que mães e bebês enfrentassem o óleo que está poluindo o litoral do Nordeste e que acaba de chegar às ilhas de Abrolhos (mas pelo menos até eu publicar este texto não havia atingido as praias de Cumuru). Outro passeio legal é ir de barco a Corumbau (“o fim do mundo e o começo da terra”, em pataxó), uma ponta de praia no caminho para Caraíva. Fomos com seu Antônio, figuraça de 74 anos que comanda o barco Libra tocando gaita e contando causos. Sabe toda a história da vila e de seus habitantes.

Fala a verdade: não é bonito demais?

É possível ver o vilarejo e seu mar do alto dos morros do Cantagalo e da Fumaça. A distância não é enorme, mas subir ladeira debaixo de sol nem sempre é um bom programa. De qualquer maneira, fica a sugestão. Aliás, aqui vai outra: o restaurante Mama África, que fica no Morro da Fumaça. Pertence à angolana Dolores, que saiu de seu país por causa da guerra e depois de percorrer alguns caminhos pelo mundo, parou lá e abriu o restaurante há muitos anos. Pequenininho e fresco, serve pratos angolanos d.e.l.i.c.i.o.s.o.s. Quando ela viaja, quem comanda a cozinha é Izabel, que aprendeu tudo com Dolores e em sua ausência mantém a qualidade do Mama África nas alturas.

Uma das ruazinhas do vilarejo

Cumuru é um punhado de casas, com poucas ruas calçadas, onde todos se conhecem. Não fosse a tábua das marés, o mapa seria desnecessário. Impossível se perder por lá. Seus moradores são gentis. Fora de temporada (evito viajar em altas temporadas) a vila é de um sossego sem fim. É segura, acolhedora e desajeitada de um jeito que a torna atraente. Ao entardecer, a garotada ocupa os bancos da praça, crianças e adultos circulam de bicicleta, cachorros brincam soltos nas ruas (aparentemente todos têm donos), vizinhos conversam nas janelas e, se a maré estiver baixa, a areia encharcada vira calçada e área de lazer. Suas praias de águas verdeazuis cristalinas, sem ondas e cálidas, se estendem em nomes como Japara Grande e Mirim, Barra do Cahy (onde Pedro Álvares Cabral avistou o Monte Pascoal, “descobrindo” o Brasil), Ponta do Moreira, do Centro, do Rio do Peixe Grande e do Rio do Peixe Pequeno, Imbassuaba, Calambrião, Areia Preta, Dois Irmãos, Corumbau. Nelas, árvores de raízes retorcidas alongam suas sombras e tornam a paisagem ainda mais incrível.

Seu Walmir e a casa que construiu há 20 anos na beira do mar. Ele fez o muro de troncos para protegê-la das marés e todos os dias vai lá dar uma olhadinha.

Chegar a este canto delícia da Bahia exige paciência. De São Paulo, o caminho inclui a viagem de avião a Porto Seguro. De lá até a vila são 242 km e as opções são ônibus, carro alugado, táxi ou translados. O caminho passa pelas BR- 367 e 101 e, depois, BA-489 até Prado. A partir de lá, há duas maneiras de se chegar a Cumuruxatiba. A estrada principal é mais longa e segura: são 9km de asfalto e uns 35km de estrada de terra. Se chover, o último trecho parece duplicar em sacolejos e trepidações. Prepare-se. A outra opção é mais curta (uns 30km) e segue paralela às praias, pelas falésias. Mas como é de terra, se chover, esqueça. Optamos pela estrada principal: contratamos um carro da Prado Tour (bem bom). Saímos às 17h30 do aeroporto de Porto Seguro e chegamos à Pousada Areia Preta (ótima), em Cumuruxatiba, por volta das 22 horas e sob uma chuvinha insistente.

Árvores crescem praticamente em toda a orla de Cumuruxatiba, sobrevivendo às marés com suas longas raízes e estendendo as sombras na areia

O cansaço da viagem sumiu quando vimos a vila à luz do sol, na manhã seguinte: um encanto onde os olhos se perdem no horizonte, o mar te abraça, as pessoas te cumprimentam com um sorriso, o tempo parece não ter pressa e a preguiça é mais gostosa. Difícil foi pegar o caminho de volta alguns dias depois.

Mar, sossego, gente boa e simplicidade para esquecer um Brasil desgovernado, mesmo que por alguns dias
As falésias de Cumuru vistas do mar vazio
Um pedacinho de Corumbau
Amanhecer em Cumuruxatiba no dia em que eu fui embora do paraíso

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Annamaria Marchesini
Revista Passaporte

Sobre lugares por onde passo e outras coisinhas mais. Afinal, tudo é viagem. As fotos são minhas, para o bem e para o mal.