No peito, uma bússola

Há lugares que nos chamam. A propósito, já ouviu falar em Bournemouth?

Flay Alves
Revista Passaporte
5 min readApr 4, 2019

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Acordei com o canto das gaivotas. Através da janela, vi o sol nascendo. Foi quando me perguntei: afinal de contas, como vim parar em Bournemouth, cidade costeira do condado de Dorset (Inglaterra)?

A princípio, o plano era ficar 30 dias em Londres, em seguida passar dois meses em Brighton e encerrar essa primeira expedição em Turim, na Itália. Mas isso foi antes de Londres — com sua multidão frenética e repleta de sonhos — me tragar. Por trás de rostos cabisbaixos e passos largos, existe gana e loucura nesta capital cosmopolita. Em meio aos becos e amplas avenidas da Piccadilly, os jovens incendeiam o mundo. Fingem normalidade, quando tudo o que querem é extravasamento. Sim, Londres pode te tragar, mas também pode te fazer brilhar.

E foi assim que 30 dias se tornaram quatro meses. A temporada em Brighton se transformou num bate e volta de fim de semana e em seu lugar, surgiu Bournemouth, uma cidadela que ainda não sei pronunciar o nome, mas que apareceu no meu radar, através do Worldpackers, devido ao fato de ser um dos poucos lugares na Inglaterra que costuma receber voluntários latino-americanos. Não tive dúvidas, deveria chegar até lá. Fiz a aplicação no site. No peito, a esperança de descobrir, na prática, o que é viver numa “coast town with sandy beaches”.

Ainda sobre a mudança nos planos: a Itália tornou-se uma expedição futura e, em seu lugar, um mochilão de despedida (carinhosamente nomeado como Trip GirlsPower), que ocorrerá por ocasião do meu aniversário e ao lado de duas grandes amigas. Será o ritual de fechamento dessa primeira temporada vivendo oficialmente no mundo.

[…]

Alguns dias se passaram. Era uma quarta-feira banal quando recebi o e-mail. Nele a confirmação de que havia sido aceita pelo hostel Prime Backpackers para um intercâmbio de trabalho. De imediato me subiu um frio na barriga. No rosto, surgiu um riso. Me questionei: o que você está sentindo neste exato momento? Um dos exercícios que tenho praticado é perceber melhor minhas emoções diante dos fatos que me ocorrem.

Alegria. Veio à tona aquele turbilhão de perguntas mentais que acompanha a euforia. Excitação. Adrenalina percorrendo pelo corpo. Felicidade genuína.

A propósito, sobre este ponto, lanço uma provocação: você já sentiu frio na barriga hoje? Em caso negativo, aperte o botão e ligue um alerta dentro de si. Pare e preste atenção: o medo antecede as melhores experiências da nossa vida. Frio na barriga. Borboletas no estômago. Arrepio na pele. Coração acelerado. A gente precisa dessas coisas, sabe?

[…]

Em uma semana, organizei os preparativos da viagem e fiz uma breve despedida (com a promessa de: Londres, volto no verão). Na sexta-feira, passeio em Candem Town com os amigos. Sábado foi dia de boate. No domingo, um bom champanhe em casa. Para fechar os preparativos, alguns ajustes no horário do trabalho home office. Quando dei por mim, a bagagem estava pronta. Uma mala de 10 quilos, uma minimochila e uma bolsa média. Sim, tudo o que eu tenho cabe aí. Mas nem o mundo inteiro abarca as experiências que tenho vivenciado.

A caminho de Victoria Coach Station, um misto de emoções. Ah sim, agora eu me lembrei porque estou aqui trilhando essa existência nômade. É por causa dessa sensação irresistível que te arrebata quando você vê o novo à sua frente.

O novo e mais nada. Não conseguir ver um palmo à sua frente é alucinante.

Às 23h59 o ônibus partiu. Duas horas e meia depois, eu estava em Bournemouth (cerca de 170 km da capital). Peguei um táxi e em menos de cinco minutos me vi à frente da seguinte placa: Hostel Prime, a home from home for backpackers.

Um detalhe me chamou atenção: dormi como se estivesse em casa. No dia seguinte, a manager me mostrou as instalações. A cada cômodo, uma reação de encantamento. Aqui é repleto de sons e de artes. Livros, quadros, trilha sonora por todos os cantos, souvenirs por todos os lados. Meia hora, esse foi o tempo exato para eu me apaixonar por este lugar que será meu lar durante as próximas quatro semanas. A constatação veio enquanto estava sentada no BearKat Bistro, café localizado numa das instalações anexas do hostel. Enquanto fazia um tour pela casa, me pus a identificar cantinhos da escrita (e encontrei vários).

A equipe do Prime Backpackers é formada por nove pessoas, das quais sete são voluntárias. Três britânicos, uma ucraniana, dois australianos, um argentino e duas brasileiras. O espaço foi aberto em 2016 e tem como objetivo tornar-se um lugar aconchegante e tranquilo para mochileiros se sentirem em casa.

No final da tarde, fui andar pela cidade, ou, em outras palavras, mapear os cafés ideais para montar minha escrivaninha ambulante. A arquitetura imponente chama a atenção. A atmosfera é amigável. A quietude é perceptível nos passos calmos dos moradores e nas risadas expansivas. No ar, paira serenidade. Ao lado de imensos paredões de pedra, encontrei a praia, que se alastra pelo horizonte e nos traz a sensação de que não existe mundo além-mar.

Enquanto caminhava pelo calçadão, fui acometida pela certeza espiritual: sim, cheguei onde precisava estar.

[…]

Há lugares que nos chamam. Não somos nós quem decidimos ir até eles, pelo contrário, eles é que nos escolhem. Foi assim com Londres, onde nasceu a ideia deste projeto e onde vivi um grande amor. Do mesmo modo me ocorreu na Chapada dos Veadeiros (Goiás), onde estreitei minha relação com a água e decidi encarar a vida nômade. Assim também cheguei em Boipeba (Bahia), ilha que reconectou meu ser com o ar e foi ponto de partida para esta expedição.

E você Bournemouth, por que me chamou? O tempo vai nos trazer essa resposta. Por isto — por todos esses momentos belos e únicos que cada um destes lugares me proporciona — não ouso mais dizer não. Sempre que ouço o chamado, apenas vou. Traço rotas aparentemente sem rumo, desmonto e refaço planos mil vezes, deixo a minha existência me guiar. Os meus pés não sabem o caminho, mas o meu coração já tem a bússola.

Sou Flaviana Alves, escritora que percorre o mundo fazendo voluntariado e expedições literárias e compartilha vivências e reflexões sob a ótica de uma viajante mulher, negra e nordestina. Acompanhe meus relatos diários no IG.

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Flay Alves
Revista Passaporte

Escritora e jornalista antirracista, feminista e itinerante. Autora de Donas de Si. Escrevo sobre a potência da vida e o encanto de ser gente. Insta flay.alvess