Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
Published in
6 min readJun 30, 2018

--

Rishikesh à noite (Photo by Shubham Rawat on Unsplash).

Viajando pela Índia com um grupo, Odete − minha mulher − e eu fomos até Rishikesh, no norte do país, quase no Himalaia. Funcionam lá diversos centros de ioga e ashrams, comunidades monásticas que hospedam pessoas desejosas de melhor conhecimento do hinduísmo. Os próprios Beatles passaram uma temporada no ashram do Maharishi Mahesh Yogi, que o governo indiano acabaria fechando por sonegação fiscal; dizem que Ringo e John reclamavam da comida…

Até Haridwar, uma das cidades sagradas do hinduísmo, fomos de trem − antigão, mas confortável. Como já almoçáramos, dispensamos a refeição de bordo. Devia estar saborosa, pois um passageiro, seguindo costumes locais, manifestou aprovação com retumbantes arrotos.

Chegamos a Haridwar quando já escurecera, e vimos muita gente estendida no solo da estação. Certamente, iriam pernoitar. Seriam passageiros da madrugada? Pessoas sem-teto? Na volta, ao passarmos por ali de dia, não veríamos ninguém no chão.

Até Rishikesh, foram 45 minutos subindo o vale do Ganges em rodovia de pista única. Nas ultrapassagens, nos assustávamos com o par de faróis vindo no sentido contrário. Dizem que o indiano está condicionado num reflexo: tenta ultrapassar, mas não força; sabe quando ceder. Verdade ou mito, dava friozinho na barriga.

Chegamos pelas nove da noite e fomos à única lanchonete aberta àquela hora. Pedimos queijo e tomate sobre o pão tostado e chá de gengibre com limão e mel. Gostamos e logo nos demos por satisfeitos. Mas as porções tinham o dobro do tamanho que imagináramos, e os garçons continuavam a trazer coisas. Dissemos que embrulhassem o resto, mas como ninguém queria levar, quisemos dá-lo para alguma outra pessoa − num país com tantos pobres, o descarte parecia inadmissível. Oferecemos a dois empregados da lanchonete; se não quisessem, saberiam a quem repassar. Relutantes, terminaram pegando, mas logo levaram uma rebordosa do patrão, que os obrigou a devolver. Então, uma das brasileiras tentou entregar o embrulho a trabalhadores que ali defronte. Refugaram. Finalmente, a caminho do hotel, encontrou quem aceitasse.

O guia não estava presente, e no dia seguinte lhe pedimos que esclarecesse aquela história. Na Índia, respondeu, dar comida pronta − principalmente sobras − é mexer em vespeiro, pois pode interferir com tabus alimentares das castas, ou despertar perturbadoras associações de ideias ligadas a isso. Dificilmente se aceita.

A cidade é cortada pelo Ganges. Naquele ponto, o rio está no curso superior, próximo às cabeceiras no Himalaia, com águas bem limpas. Bonito cenário.

Na área urbana, as margens são ligadas por duas pontes pênseis para pedestres − mas também usadas por ciclistas, motoqueiros, vacas sagradas… E há macaquinhos atrevidos avançando nas sacolas das pessoas para roubar guloseimas − macaco adora comida industrializada, quem gosta de naturebas é intelectual…

Há muitos templos hinduístas. Entramos num deles, que tem culto vinte e quatro horas por dia. Sentado no chão em posição de lótus, um monge repetia alto a cantoria: “ Hare, hare Krishna!” Espalhados pela cidade, vêem-se também pequenos oratórios com pessoas rezando. A todo momento, se cruza com monges, alguns com traços ocidentais, calçando sandálias e envolvidos nos panos característicos.

Na cidade, são proibidos alimentos não-vegetarianos. Certo dia, vimos um galinheiro: sem medo da panela, as penosas locais contribuem para o PIB apenas como poedeiras. Passada a fase produtiva, ficam cacarejando memórias e fazem programas de terceira idade. Quando morrem, é de velhice.

As vacas sagradas, que pouco víramos em Déli, vagueiam para lá e para cá, sem dar satisfações a ninguém. Mansas, não incomodam. Dos bovinos, os indianos aproveitam o leite e o esterco, que serve de fertilizante, de combustível e para a vedação de paredes e solos; no campo, os bois também entram nos trabalhos agrícolas. Certos místicos hinduístas costumam beber uma mistura de urina e esterco de vaca, que tonificaria o corpo e o espírito. Não chegamos a experimentá-la (ai, meu Deus! será que bebemos sem saber?), mas registro a dica.

Quando a produção de leite começa a diminuir, muitos proprietários de vacas vão deixando de alimentá-las. Passam elas a perambular nas ruas e comem qualquer coisa, inclusive lixo.

Certa manhã, fizemos rafting no Ganges. Na agência, devíamos assinar uma declaração de que sabíamos nadar, e alguns desistiram. Eu, que nado mal, senti calafrios com as imagens se sucedendo: naufrágio, correnteza levando meu corpo, crocodilos asiáticos a se banquetearem com minhas carnes adiposas… Mas não ia refugar: assinei a declaração, como se fosse veterano do Canal da Mancha.

Nosso bote era comandado por John, o inglês da agência. Depois de breve treinamento, levantamos âncoras. No trajeto, pegamos corredeiras empolgantes − nada apavorador. Havia balanços fortes e água fria na cara, mas isso estava no programa. Na maior parte, descemos o rio tranquilos, contemplando belos panoramas.

Em duas horas, chegamos a Rishikesh, final da aventura. Para comemorar, alguns se lançaram ao Ganges. Dizem que a pessoa ascende a níveis mais altos de espiritualidade quando mergulha naquelas sagradas águas. Sagradas mas geladas! Odete se animou a nadar, e o efeito perceptível foi um resfriado. Sua elevação espiritual, porém, deve estar em andamento.

Na cidade, havia policiamento ostensivo, no esquema de segurança para um figurão da política que chegava. Merecedores de atenção − e distância! − eram os longos cassetetes de madeira, aparentemente bambu, que os policiais empunhavam. Quando dizem que a polícia indiana “baixou o pau” no povaréu, é literal.

Nas imediações de Rishikesh, o SPA Ananda funciona num antigo palácio de marajá. Aberto também a pessoas não hospedadas, seu restaurante serve comida de boa qualidade − nada do faquirismo de SPA! − e estando situado fora da cidade, não obedece às normas vegetarianas de Rishikesh. Poderíamos comer carne sem atrair olhares inculpadores, como se fôssemos canibais. Para irmos almoçar lá, contratamos a ida e volta num táxi.

À entrada, um curioso ritual de admissão. Como chegamos sem reserva, o recepcionista disse que não havia lugar. Prontificamo-nos a esperar, mas ele reiterou que a lotação estava completa. Perguntamos então se pelo menos poderíamos visitar as dependências do antigo palácio. Depois de consultar, concordou, pediu que aguardássemos numa sala e nos providenciou água. Dali a pouquinho, veio uma moça para nos mostrar parte do palácio e informou que havia uma solução: sim, poderíamos almoçar. Terminada a visita, um carrinho elétrico nos conduziu ao restaurante, instalado atrás de um belo jardim. Ali, surpreendemo-nos ao ver que as mesas ocupadas eram menos da metade. Por que a conversa de “lotação esgotada”? Colocar, de início, a barreira de uma negativa, para depois retirá-la como gesto de cortesia, parece atitude comum entre indianos, talvez um traço cultural. Durante a estadia no país, ainda teríamos outros rituais do tipo.

“Nossas fortes mulheres”.

Na estrada, passáramos por duas mulheres que carregavam enormes feixes de lenha. Na viagem, também víramos mulheres trabalhando na construção civil, especialmente obras públicas − e ao invés do macacão ou uniforme, muitas vestiam o sári, traje típico. Comentamos, então, com o taxista que as mulheres indianas trabalham pesado. Com orgulho, respondeu: “Sim, nossas mulheres são fortes”. Em nome da igualdade entre gêneros, Odete perguntou em que trabalham os homens. “Dirigindo carros, ou escritórios − coisas assim…”

Contou-nos ele que sente saudade de sua aldeia nas montanhas. Todo ano vai lá visitar parentes. No vilarejo, não se fala hindi, e muito menos inglês, mas um dialeto local. As pessoas não comem maçãs nem laranjas, não assistem à televisão, pois não têm acesso à energia elétrica. Nem mesmo água encanada existe. Mas − prosseguiu − todos se conhecem, se dão bem, fazem festas, gostam de cantar e dançar; enfim, vivem felizes. Encantada, Odete já começou a pensar numa próxima viagem incluindo uma esticada até esse cafundó do Himalaia. Esperarei por ela na Côte d’Azur.

--

--

Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.