otiagoaraujo
Revista Passaporte
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5 min readMay 10, 2018

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Noite de terror no caminho da morte num busão lotado de coca

Em La Paz, fiquei sem grana e, pra resumir, o Bradesco complicou (pra não usar um palavrão) minha vida. Se quisesse seguir viagem ou pagava taxas exorbitantes realizando saques ou tinha que ir a uma agência bancária no Brasil e resolver o problema. Já que minha rota é para o norte, a solução mais simples era da Bolívia entrar no Brasil pelo Acre. O ônibus de La Paz a Cobija, cidade que faz fronteira com o Acre, custa duzentos pesos bolivianos, algo como cem reais. O que causava espanto era que a viagem dura em média 48 horas. Inocente juvenil. Tardiamente descobri que demorava tudo isso por conta da condição das estradas bolivianas. Assim, no dia 29 de Março parti pra viagem mais maluca que fiz na vida. Mais uma vez agradeço ao Bradesco por me forçar a esse sacrifício.

Pra começar, olhem só o naipe do busão. Já passa aquela confiança, certo? Comprei a passagem com um dia de antecedência, mas não sabia que viajaria nessa arapuca. Quando cheguei ao local de partida, havia muita movimentação, e os empregados da companhia enchiam os compartimentos da parte de baixo e também acima do teto do veículo com sacos. Não custei muito a entender que eram de folhas de coca. Parece que só haviam uns 20 passageiros pros 40 lugares disponíveis. Logo encheram até os assentos traseiros com sacos de coca. A previsão de partida era às 18 horas, mas não paravam de carregar o bus com coca. A prioridade não era para os passageiros, obviamente. Na hora da partida, faltou até lugar para os passageiros, e tiveram que retirar uns sacos de coca. Finalmente partimos às 19:50.

De passageiros, além de mim, havia um casal de chilenos e uns 20 bolivianos, a maioria mulheres. Na parte de baixo, junto aos sacos de coca, viajavam o motorista e quatro empregados da companhia de ônibus. Menos de uma hora de viagem e paramos. O exército boliviano queria revisar a carga. Ficamos meia hora esperando. Tédio. Que achavam que tinha, cocaína? Suave, era só coca, Evo.

Seguimos. Meia hora depois começamos a entrar numa estrada mortal. O caminho nos levava a uma subida que parecia não ter fim. Logo começaram as curvas e, mesmo no escuro, eu podia ver que estávamos numa altura absurda. Pô, La Paz fica a 3700 metros de altura, e em vez de baixar, o veículo subia ainda mais. O pânico começou a tomar conta conforme a estrada se estreitava. Havia momentos em que o caminho tinha apenas o espaço exato do bus, mas com um pequeno buraco ou deslize de terra em algum ponto. Não havia espaço para o menor erro. Se o motorista vacila, cairíamos num precipício gigante.

Em alguns momentos em meio a esses trechos arriscados, como se não bastasse, a estrada de terra estava esburacada e forçava o ônibus a se inclinar para os lados. Eu na janelinha da esquerda, de cara pro precipício, via lá embaixo o que parecia ser um riacho. Do alto das montanhas andinas eu olhando pra baixo encarando meu trágico fim. O busão balançando a 4 mil metros de altura, as bolivianas rindo e conversando como se estivessem num piquenique em um dia ensolarado e eu ali com o ânus mais fechado que o gol do São Marcos na final da Copa de 2002.

Obviamente eu não havia pesquisado bem. Não sabia onde estava me metendo. Só queria o trajeto mais curto de La Paz a alguma cidade do Acre. Se soubesse que iria atravessar a “estrada da morte”, que segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento até 2006 tinha uma média de 96 mortes por ano, seguramente teria considerado outra rota.

Pra piorar, eu comecei a sentir uma dor de ouvido imensa, decorrente da altitude. A solução, claro, era mascar coca. Mas tava tão puto e apavorado que não queria falar nada com ninguém. Se tivesse juízo pediria pra descer ali mesmo. Por sorte não chovia. Finalmente o busão parou em um trecho. Pedi coca a um dos empregados, mas não sei se ele não me entendeu ou não quis me dar. Havia um garoto que ia descer num povoado pouco mais adiante, chamado Caravani. Puxei assunto com ele. Nesse nomento começou a chover. Desgraça pouca é bobagem. Ao entrar no bus peço coca ao garoto. Ele pede a sua tia e ela me estende um pouco. Gracias! Um pouco de alívio pra enfrentar a estrada mortal, agora com chuva.

Meu, Bolívia é um país muito louco. Duas da madrugada e passávamos por pueblitos com comércios tipo feira abertos no meio daquele frio intenso das montanhas andinas. A estrada agora, num espetáculo ainda maior, volta e meia era iluminada por relâmpagos, que me mostravam os mortais precípios abaixo de minha janela. Dormir? Não olhar? O caramba! Masoquista, eu me inclinava ainda mais pra olhar a armadilha em que eu tinha me metido. Mas ao mesmo tempo era linda demais aquela paisagem, bicho. Bolívia é bizarra, Bolívia é espetacular! Viajar por esse país é como participar de um absurdo e surreal filme de Lynch ou Jodorowsky.

Na chuva, com o busão se inclinando à esquerda, por mais duas vezes senti que meu fim estava próximo. Já estiveram perto da morte? Sabem qual é a sensação? Eu já. Por duas vezes estive perto de morrer afogado. Neste trecho que descrevo aqui, por umas cinco ou seis vezes, quando o busão se inclinava à esquerda, achei que ia pro beleléu. Não existe ateu nessa hora. Você diz meu Deus! em todas as línguas que conhece, começa a tentar lembrar do pai nosso, da ave maria, Iemanjá, Ogum, Goku, Joe Pesci, ou qualquer outra fé que tenha. É teste pra cardíaco. Pensei seriamente que meu fim tinha chegado.

Finalmente chegamos ao pueblo de Caravani, onde desceram o garoto e a senhora que deram coca. A partir daí saímos do trecho andino e começamos a entrar na selva amazônica. Outras aventuras me aguardavam, altos perrengues, mas nada tão perigoso como descrevi acima. Jack Kerouac, na moral, não é só por esse relato, o ‘On the Road’ americano é suave perto da aventura que é a estrada latinoamericana.

Em ‘O sétimo selo’, filme de Bergman, o protagonista joga xadrez com a morte. Tranquilo! Muito mais alucinante é fazer um rali com a morte nos precipícios andinos. Não desejo a ninguém, nem ao Michel. Nessa viagem de nove meses já me meti em briga, sofri tentativa de assalto, peguei carona com um psicopata, mas nada foi tão assustador quanto o rally da morte no busão enferrujado carregado de coca.

Obs: Dois dias depois dessa viagem ocorreu um terremoto de magnitude 6,8 na Bolívia. O tremor foi tão forte que até na Avenida Paulista o sentiram. Tive sorte. Minha experiência podia ter sido muito pior.

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