O corpo imundo e a alma lavada

Annamaria Marchesini
Revista Passaporte
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5 min readJul 3, 2019

Meus dias de voluntariado no Si Ma Bô, ONG que protege cães e gatos abandonados em Mindelo, Cabo Verde

A orelhudinha Sunday com Caipirinha, salva pela Si Ma Bô depois de ser atropelada

“Você saiu daqui pra passear com cachorros em Cabo Verde??”. Não, eu sai de São Paulo e embarquei para Mindelo, em Cabo Verde, para passear algumas horas por dia com cães abandonados num calor médio de 30 graus, dar a eles todo o afeto possível e vê-los pular de alegria cada vez que eu chegava ao abrigo do Si Ma Bô, ONG que recolhe, abriga, protege e cuida de cachorros e gatos abandonados na ilha de São Vicente.

E fiz mais:

  • vi de perto o que é lutar por uma causa num país digno, mas de poucos recursos,
  • dei-me conta do esforço — inclusive emocional — que envolve salvar animais que haviam sido descartados como objetos inúteis ou tratados cruelmente,
  • tomei conhecimento do que significa manter uma instituição de pé apenas com doações e a renda do Simabô Hostel — muito legal, por sinal.
  • acompanhei a batalha constante para mudar a maneira de toda uma comunidade agir em relação aos animais,
  • experimentei a deliciosa sensação de dedicar meu tempo integralmente a quem precisa.
Não sou boa de selfies e meus amigos pareciam não gostar de fotos

Silvia e Paolo Manzoni, criadores e coordenadores do Si Ma Bô, lutam todos os dias pela defesa dos cães e gatos abandonados da ilha com uma equipe formada por poucos funcionários e voluntários dedicados que chegam de diversos países. Eles os acolhem, tratam dos animais doentes, salvam suas vidas e os preparam para a adoção. De graça. Há cães do Si Ma Bô em vários cantos do mundo. Não é fácil conseguir adotantes, mas para eles não há obstáculos para dar aos animais uma vida digna. E mesmo depois de adotados, o casal continua acompanhando a vida dos bichinhos para evitar que sejam novamente rejeitados ou maltratados.

Quando apliquei para ser voluntária da ONG de Mindelo, a ideia era me dedicar aos cachorros e dar a eles o maior volume de afeto possível, passear e brincar. Mas à medida que ia conversando com a Silvia, nos dias que antecederam a minha viagem, vi que havia muito mais a ser feito e ajudei também fazendo fotos para as campanhas, panfletos e redes sociais da ONG. E se pudesse, faria mais. Mas o tempo era curto para tudo.

Com Silvia e os moradores do escritório da ONG em Mindelo

Que ninguém pense que tirei de letra. A cada tarde dos 15 dias de voluntariado eu caminhei, em média, 13 quilômetros com os cachorros (em duplas ou trios de cães a cada vez), num terreno árido, pedregoso, debaixo do sol. Nas horas mais quentes, brincava com eles dentro do abrigo, para que não ficassem expostos ao calor intenso. Chegava ao hostel cansada, fedida, monstrenga e feliz. Sério. Não havia em mim um pingo de ego, de preocupação com política, dor de cotovelo ou angústias. Só o corpo imundo e a alma lavada.

Esta foi minha estreia em voluntariado e sei que não adianta descrevê-lo e esperar que todos percebam inteiramente o que ele significou para mim. Dá para admirar a causa e a iniciativa de quem se dedica a ela, perceber o bem que o trabalho faz a quem o realiza e quem o recebe. Mas as transformações que ele provoca são sensações exclusivas que vão acontecendo aos poucos, durante e depois do voluntariado. Ser voluntário exige que a gente acredite e mergulhe na causa e ela te pega de jeito.

O descanso na sombra de um dos quintais do abrigo

Tenho certeza de que não serei totalmente exata em minha definição, mas muitas vezes, enquanto caminhava com os cachorros, eu me sentia como se estivesse me despindo de todo o peso supérfluo que carrego — às vezes sem saber — e minha vida se resumisse àquilo e aquilo me fazia feliz. Talvez os cães me entendessem: muitas vezes tive que interromper os passeios porque eles pulavam em mim e, com as duas patas dianteiras apoiadas em meu corpo, apenas me olhavam por alguns minutos e depois voltavam a caminhar. E eu os seguia, levinha, conversando com eles e comigo.

Em alguns dias eu já sabia o nome de muitos cachorros (são cerca de 90) e adorava chamá-los quando chegava ao abrigo. Luna e Branca vinham correndo. A pequena Sunday, ainda um filhotinho orelhudo e de olhos verdes, lambia meu rosto quando eu a aconchegava em meu pescoço. Os branquelos Messi e Neymar me puxavam com força de leões. Ferruja, com seu pelo de arame e olhos tristes, pulava à minha volta. O desengonçado Menino de Rua me derrubou duas vezes com suas demonstrações de amor. Serafina olhava de longe e parecia esperar meu chamado. A doce Pina, com 3 pernas, Peggy, Pantufa, Bobby, Paloma, Denis, Mingau, Caipirinha, Natalino, Silvia, Claudia. Todos me seduziam. Quando terminou meu período no Si Ma Bô e embarquei para Lisboa, levei um bocado de saudade deles e dos amigos que fiz durante aquelas duas semanas.

A charmosa e delicada Branca
E este olhar?

Saí de Mindelo, uma cidade muito interessante e que parece ter sido bordada ao redor da baía do Porto Grande — com suas águas de vários azuis e que se formou numa antiga cratera de vulcão — com a impressão de que havia sido picada pela mosca do voluntariado. Ando pesquisando outras possibilidades, dentro e fora do Brasil. Voltar ao Si Ma Bô é uma chance, inclusive. É impossível passar batido por uma experiência como a que tive com esta ONG. As duas semanas que passei lá também me permitiram conhecer um país muito especial, de natureza surpreendente e de gente bonita, solar e acolhedora.

Cheguei ao Si Ma Bô por intermédio do site WorldPackers, que reúne possibilidades de voluntariado ao redor do mundo. Mas quem estiver interessado em ter esta experiência também pode se inscrever pelos sites Giving Way e Volunteer World. O Si Ma Bô está no Facebook — www.facebook.com/simabo.org — e no Instagram como @simaboanimal e @simabohostel. Veja o trabalho deles. Se você gosta de animais, talvez a mosquinha te pique também.

A cadelinha Goa, no momento da adoção
A voluntária inglesa Jay Nee com Pitchbulinha e a veterinária voluntária Svetlana, da Bósnia
Quando eles interrompiam o passeio apenas para me olhar
Eu e a doce Pina

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Annamaria Marchesini
Revista Passaporte

Sobre lugares por onde passo e outras coisinhas mais. Afinal, tudo é viagem. As fotos são minhas, para o bem e para o mal.