O dia em que eu caminhei entre mais de 200 MIL pinguins

Ilha da península antártica abriga pinguins-de-barbicha. Seja na praia ou subindo montanhas, eles se viram para dividir o espaço

Hailton Andrade
Revista Passaporte
5 min readDec 12, 2020

--

Deception Island, ou Ilha Decepção, na Península Antártica (Foto: Hailton Andrade)

As curtas noites de meados do verão antártico confundem o relógio biológico e madrugar é praticamente inevitável. Ou talvez tenha sido a ansiedade por começar a explorar a Ilha Decepção o motivo do despertar precoce. Dizia o capitão que estavámos a ponto de conhecer um dos lugares mais legais de toda a viagem, justamente no seu início. Após quatro dias em alto mar, finalmente passaríamos horas em terra firme. Os anfitriões: mais de 200 mil pinguins.

Ao contrário do que diz o nome, a Ilha Decepção não desaponta. Na chegada, esse vulcão ativo na ponta da península antártica nos serviu de abrigo. Considerado um dos lugares mais seguros para ancoragem de veleiros, o lugar tem uma baía fechada. Foi a primeira noite dormida no Fernande sem sentir o movimento das águas. Na manhã seguinte, deixamos a baía protegida rumo a outro setor da ilha, Baily Head.

Segundo os últimos levantamentos, o número de casais reprodutores que habitam a Ilha Decepção alcança o número de 100 mil, estimando uma população que pode variar entre 250 e 500 mil pinguins, a depender da quantidade de filhotes. As últimas estimativas também apresentam uma redução no número de habitantes de Baily Head, que abriga minimamente a maior colônia da península antártica.

Sociedade alternativa

Desembarcamos do veleiro e embarcamos em um pequeno bote inflável. Duas viagens seriam suficientes para levar os 12 viajantes a bordo do Fernande para terra firme. Antes mesmo de chegar até a praia de areia escura, era perceptível o tráfego de pinguins da água para a terra e vice-versa. Conversamos sobre como visitar a ilha sem interferir na rotina dos seus habitantes. A ideia é passar despercebido na que talvez seja a maior colônia de pinguins do mundo.

Com andar desajeitado, os pinguins são bons mesmo é de nado. Dificuldade para eles é entrar e sair do mar. As marolas os jogavam para fora ou para dentro da praia. Literalmente seguiam a filosofia Zeca Pagodinho do “deixa a vida me levar, vida leva eu”. Não tinham outra opção. Eram muitos, andavam em grupos, seguiam linhas, tinham sua organização. Um ou outro ficava na maciota, sozinho, com a pança na areia, só curtindo a brisa fria.

Atrás da praia, uma montanha. Um paredão de pinguins. Não havia trilha, o jeito era buscar escapar da aglomeração dos donos da terra, os pinguins-de-barbicha, e tentar subir. Pela primeira vez vi pinguins subindo e descendo montanha. Apesar das limitações, eles encaravam a subida. Um passo mal dado e rolariam ladeira abaixo. Pedras soltas eram um perigo. Aos bichos, não lhes falta coragem. Salvo se nos percebem. Cada um no seu quadrado.

Pinguins-de-barbicha. Foto: Hailton Andrade

Enquanto subia, admirava aquela civilização alternativa. Pareciam surgir a todo tempo. Cada ponto na montanha, um pinguim ou um ninho. Alguns filhotes passavam pela troca de plumagem. Protegidos e alimentados pelos pais. Um responsável saía para pescar, voltava com a comida na boca e alimentava o pequeno. O outro ficava a cargo de afugentar predadores. Muitas aves voavam à espera de um vacilo. Filhotes são presas mais fáceis.

No topo, o visual nos dava a dimensão do lugar. A ilha era imensa e havia outro lado repleto de pinguins. Algo de neve permanecia no lugar, mas as terras volcânicas estavam cada vez mais secas naqueles dias de verão. O Fernande parecia distante. E estava. A subida, felizmente, é mais fácil para a gente do que para os pinguins. O som do mar já não nos alcançava e os ruídos dos pinguins passavam a ser mais altos. Me acostumei rápido.

Estou certo de que se comunicavam, mas sabe-se lá que língua estão falando. Entre as informações seguramente estava a de que havia intrusos na ilha. Felizmente, os anfitriões não demonstraram hostilidade. Diria que indiferença era o sentimento dos nativos daquela terra. E era exatamente o que perseguíamos. Não queríamos incomodar, embora visitas inesperadas quase sempre sejam incômodas. Eles, literalmente, cagavam na frente da gente.

Baily Head, maior colônia de pinguina da península Antártica. Foto: Hailton Andrade

Vida selvagem

De cima, avistamos uma outra praia e um terreno mais plano do lado oposto ao do que vínhamos. Havia um rio e outra enorme quantidade de pinguins que caminhavam em fila. Começamos a descer pelo outro lado e o caminho nos mostrava as diferentes realidades da vida dos nativos daquela terra. Encontramos uma ossada de pinguins e, muito perto, vemos uma ave de maior porte se alimentando de um pinguim, aparentemente morto há pouco.

Enquanto nos aproximamos da outra praia, impressiona a organização dos pinguins-de-barbicha, agrupados em fila, cruzando a ilha de um lado a outro. Sempre haviam os dispersos, mas eram minoria. Assim como nós, humanos, vamos de um lado a outro com nossos meios de tranporte ou a pé, todos eles tinham um objetivo. Notei grande semelhança ao ver essa massa. Imaginei uma rodoviária, uma estação de metrô, uma avenida movimentada.

Na praia do lado oposto, percebemos a presença de focas em seu momento de preguiça. Curioso ver a convivência dos dois animais de forma pacífica na ilha. Ao menos nesse momento. Depois de avançar por cada canto possível e observar os pinguins, o caminho de volta ao veleiro chamava. Nós, os 12 estranhos, guardaríamos na memória os cerca de milhares de pinguins-de-barbicha que vimos. É bom poder voltar a esse dia de vez em quando.

--

--

Hailton Andrade
Revista Passaporte

Jornalista e mochileiro. Fracassei ao tentar uma volta ao mundo e não lamento. Amarrei meus cadarços em 19 países e na Antártida. Moro no Fim do Mundo