O pescador, a tempestade e a despedida

Rafiki
Revista Passaporte
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5 min readJul 20, 2017

Há alguns meses, fiz minha primeira viagem sozinho. Decidi de última hora, só sabia que precisava partir.

Sai do casamento do meu amigo de terno e gravata. Peguei o último ônibus para o Rio de Janeiro e reservei um quarto no mesmo dia.

Quando finalmente cheguei ao Rio, peguei um segundo ônibus de viagem rumo à Arraial do Cabo. Sempre quis conhecer aquele lugar.

E pra minha surpresa, quando cheguei ao Hostel que havia reservado, eu era o único hóspede.

Acho que nunca me senti tão em paz como naqueles tempos. E por muitos dias não falei mais do que duas palavras. Talvez porque eu estivesse em um diálogo interior ou porque não queria interromper o som das ondas, o sussurro dos ventos, a conversa das gaivotas.

Enquanto andava pelas ruas de Arraial, completamente perdido, com um celular sem bateria e consequentemente sem GPS, um homem gritou:

- Hei garoto! Cê tá pedido?

- Hum… Talvez? Eu estou procurando o meu Hostel, o Marina dos Anjos.

- Ah! Eu conheço a galera de lá, gente boa eles! Aquelas meninas são de ouro. Faz assim, segue reto e vira à direita. O Hostel é no final da rua.

- Obrigado. — respondi aliviado.

- Ô garoto, cê tá viajando sozinho? — perguntou de repente.

- Estou sim. — respondi.

- Então faz assim, amanhã minha esposa vai fazer um feijoada daquelas, cê devia vir almoçar com a gente. Assim cê não precisa almoçar sozinho.

Agradeci pela gentileza.

- Ah é, meu nome é Gaúcho. Eu sou pescador, mas também faço passeio de barco pelas redondezas. Se quiser um, é só falar comigo. Sou o capitão do Erica Barreto.- disse ele.

Voltei no dia seguinte. Sua esposa estava na varanda e quando acenei ela veio me receber.

Ela era um senhora de óculos e semblante divertido, tinha marcas deixadas por uma vida inteira de trabalho. Uma longa mecha branca no seu cabelo escuro deixava uma mensagem: — O tempo passa para todos.

Disse que conheci seu marido no dia anterior e que queria fazer um passeio de barco. Ela anotou meu nome em um caderninho com uma letra simples, mas caprichada. E coletou meu pagamento.

Curioso, perguntei se seu nome era Erica e ela me disse que não.

Seu esposo, o Gaúcho, chegou logo em seguida. Ele usava boné e óculos escuros. O sol e o sal deixavam suas marcas sobre a pele dele. Sinais da vida de um pescador, um homem do mar.

- E não é que você veio mesmo garoto? — disse com um sorriso, seguido de um abraço.

- Ele veio e acabou de comprar um passeio. — respondeu sua esposa animada.- Vish garoto, então cê deu azar. A marinha fechou o porto, disse que o tempo não tá bom pra entrar no mar. Mas quer saber de um negócio? Vou te dar um passeio especial hoje de carro pela cidade e amanhã a gente veleja.

Ele foi andando em direção ao carro que havia terminado de estacionar e me disse:

— Sobe aí garoto, não precisa ter medo não. Aqui em Arraial só tem gente boa.

Não queria fazer desfeita, então entrei no carro.Ele me mostrou todas as praias e paisagens que ele conhecia, me contou de como tinha saído do Rio Grande do Sul e se mudado para lá com amigos com o sonho de ser pescador.

- Naquela época, pesca dava bastante dinheiro. — Comentou.

Nós subimos por um morro íngrime. Quando chegamos no topo ele disse:

- Essa é a melhor vista que você vai ter de Arraial do Cabo.

O vento soprava com força e fazia minha tremular como uma bandeira.

Aquela vista era deslumbrante.

Ainda me pego olhando para as fotos de vez em quando.

Nós nos sentamos e eu perguntei porque o nome do seu barco era Erica Barreto.

Ele tirou o óculos e o boné e eu encarei o seu semblante. Era uma mistura de alegria, tristeza e cansaço. Os olhos de quem já viveu demais e viu demais. Ele provavelmente tinha idade pra ser o meu avô. E de certa forma até me lembrava dele. Eles até compartilhavam o mesmo sobrenome.

- É uma história longa garoto. Eu tinha um menino, um filho assim do seu tamanho. Era marujo de primeira. Ele adorava o mar. Mas um dia a tempestade levou ele de mim. A gente procurou pelo corpo por muitos dias, mas era tarde demais.

Silêncio. Apenas o sussurro dos ventos.

- Cê sabe o que acontece com quem morre no mar garoto?

Neguei coma cabeça.

- Depois de um tempo o mar devolve os seus mortos e eles boiam na superfície da água. Foi assim que eu perdi o meu menino. O mar levou ele. — disse com amargura. — E me devolveu todo inchado e roxo. Depois de um tempo também perdi minha menina. Ela teve um ataque epilético no banheiro e bateu a cabeça. Não resistiu. Ela tinha acabado de fazer 15 anos, ela era tão linda.

Ele colocou a mão no bolso e tirou um celular. No papel de parede via-se um pai e sua menininha com uma coroa, usando um vestido branco. Os dois estavam abraçados.

Ali, sem palavras, estava escrito: felicidade.

Ele suspirou profundamente e por alguns instantes a criança tomou o lugar do homem e vi a sombra de um tremor na tentativa de conter o choro. Era como uma represa que tinha sido vítima de uma enchente repentina, mas que resistiu bravamente à ameaça de se romper.

Naquele momento, não senti nada além de respeito, admiração e compaixão por aquele pescador.

Me pergunto qual a força necessária para encarar o assassino do seu filho todos os dias. E a dualidade de saber que ele também é aquele que te sustenta, que te deu tudo o que você tem, se você for um capitão ou um pescador. E como se não bastasse ainda dar o nome do que você mais amou na vida ao seu barco: Erica Barreto, sua filha.

Eu achava doloroso demais relembrar tantos traumas todos os dias. Mas nunca estive tão enganado.

Para ele nunca foi sobre “Olhe o que eu sofri”, mas sim “Sobrevivi”.

Nos dias em que ameaço desmoronar, imagino um senhor de sorriso fácil velejando à bordo de um barco vermelho, com a pele queimada pelo sol e me lembro da história do pescador, a tempestade e a despedida.

Como uma vez disse o meu comediante preferido:

Aprenda com o seu passado e seja alguém melhor por causa dele. A vida é cheia de dor. Deixe que ela te molde. Mas não se prenda à dor. Não se torne amargo. — Trevor Noah.

E onde quer que você esteja…Obrigado Gaúcho.

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Rafiki
Revista Passaporte

Explorador da alma que habita este corpo, que sem ela seria vazio, mesmo cheio de pele, nervo, carne e osso.