Os meios nada justificam

Samara Lima
Revista Passaporte
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3 min readMay 17, 2020
Arquivo pessoal, 2019.

Certa vez fui para o sertão pernambucano acompanhar uma amiga em sua mudança. Partimos do quadrado até o litoral via-céu antes de seguir sertão.

Voo estranho com gente esquisita.
Assim que saímos do solo ouvimos um barulho tec-tec vindo do lado de fora do avião, tão esquisito que, durante a manobra para mudar a direção do voo, imaginei que certamente iríamos voltar para trocar de aeronave; não, não.. seguimos com aquele barulho (in)comum.

Para além, escutei a tripulação dizer: para um voo mais tranquilo e confortável, fechem as janelas. Ao ouvir, pensei que grande desatino seria fechar as janelas. Mas foi o que muitos ali fizeram, incluindo a moça que estava ao meu lado.

Outra peculiaridade: havia muitos espanhóis —hablantes da língua, sabe-se-lá o país de origem — no voo, aos montes; parecia excursão para famílias falantes da língua espanhola. Contudo, não pareciam estar juntos ou, nem mesmo, se conhecerem.

Enfim, havia uma família dessas nas poltronas frente a minha: pai, mãe, filho ou, na minha memória, filho maleducado e seus pais que permitiam o caos.

Um voo escuro em plena tarde de um domingo: janelas fechadas sem vista para distrair, o menino da frente berrando, minha amiga do lado irritada com o menino e eu gargalhava alto, porque era o melhor a se fazer.

O que fez tudo isso valer a pena foi descer do avião e sentir aquele aconchego morno que só o Nordeste tem.

Saindo do aeroporto seguimos para o metrô e me veio à memória a única vez que peguei metrô em Recife: entramos, um amigo e eu, e, espontaneamente, era ambulante para lá e cá, cada um no seu ritmo e fala de venda, indo vagão por vagão. Comprei bombom, mas tinha coxinha e sacolé.

Ainda conhecemos um moço que fazia um som maneiro e, naquela viagem, acabou se tornando nosso companheiro de baldeações. Segundo ele, até cream cheese é possível comprar no metrô recifense (imagina!).

Com essa lembrança, fiquei feliz com a possibilidade de ir para a rodoviária de metrô. Contudo uma senhora muito educada sugeriu irmos de ônibus — menos trocas e menos movimento — e completou: dia de jogo é bagunça. Então, fomos de ônibus e não poderia ter sido melhor.

No trajeto, pude observar pessoas e cidade. Fui-me para a janela que dessa vez não me foi negada. Naquele instante me recordei de amigos que ali estiveram comigo ou de paisagens que lembravam outras paisagens.

Ver o fluxo da cidade: domingo é dia de igreja. Ver os botecos, Pitú estampada nas paredes. Ver a cidade-periferia e lembrar que, em meio a todo caos social-político ou caos-cidade, ela segue uma (des)ordem e vai se ajeitando, parede, tijolo, cantinho, ali.

É ver casas pobres em bairro pobre mas se sentir bem-vindo porque as pessoas, mesmo na precisão, acolhem e desejam sempre o melhor para ti, e com olhar e carinho te acompanham, mandam deus vir junto.

E penso como foram diferentes as viagens de um mesmo dia: um voo frio x um percurso em ônibus barato porém feliz, onde me senti preenchida e acolhida, e o saudosismo de outrora que abre o peito todo dia.

Chegando à rodoviária, pegamos o próximo ônibus sentido sertão.
Da vista da janela, a lua crescente dançava de uma lado para o outro por entre serra-céu.

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Samara Lima
Revista Passaporte

viagem, café, cinema, paisagem. aqui, pouco ou nada disso.