Para aqueles que estão fugindo #11: Barcelona Highlove

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
7 min readMay 15, 2020

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Da janela do avião observo os Pirineus, branquinhos de neve, o mar Mediterrâneo e um doce céu azulado ao fundo. O frio na barriga é intenso, mas a tensão não se compara com a chegada a Londres quase um ano atrás — a ansiedade vem salpicada com boas doses de euforia.

Na saída do aeroporto, a presença de palmeiras na calçada parece anunciar um clima mais ameno. Enquanto o ônibus circular corta Barcelona, vou degustando as primeiras impressões da cidade mediterrânea: casas antigas de dois andares e pintura desbotada, espremidas umas nas outras, exibem em suas janelas enfeites rebuscados, flores dependuradas e lembram um pouco a arquitetura colonial brasileira.

A amiga da amiga, Larissa, mora num apartamento de quatro quartos com o namorado, Raul, de Barcelona. Ela está doente, na casa do sogro, por isso ele é quem me recepciona na Praça da Catalunha, com forte abraço e tapa nas costas.

É uma figura interessante, de roupas largas e longos dreads loiros. Um sorriso quase infantil raramente deixa o seu rosto. Depois de me entregar um bilhete de metrô, pula a catraca e vai falando em espanhol com sotaque catalão durante os vinte minutos de viagem — não entendo quase nada. Deixamos a minha pesada mochila na casa e em seguida voltamos de metrô à região central.

O Raul me explica no meio do caminho que iremos comprar maconha na casa de amigos no Raval, um bairro de imigrantes considerado um pouco perigoso. As ruelas escuras, de arquitetura sombria e encarapitada, talvez oriunda da Idade Média, me fazem imaginar passagens de alguma grande cidade do Marrocos ou Tunísia. A cada porção de metros uma figura estranha, na entrada de um beco, oferece artigos roubados, haxixe ou observa os transeuntes com olhar enigmático. Entramos numa portinha improvável e subimos por uma escada úmida e escura.

Não poderia ter imaginado a cena que encontramos: uns oito brasileiros com trajes de skatistas estão largados pelo velho apartamento, dois jogando videogame sentados num sofá. De uma caixinha de som sai um rap brasileiro. Dois quadros de mandalas coloridas na parede destoam um pouco do clima de desleixo total e indicam um possível toque feminino. Rápidas conversas revelam que quase todos são da mesma cidade da Larissa, no interior de São Paulo, não têm documentos legalizados ou “papel” e perderam os empregos há pouco tempo, com a chegada da grande crise de 2008.

Passam um baseado na minha mão, dou duas tragadas e me sinto loucasso, já com os sentidos a mil pelo surrealismo das primeiras horas em Barcelona. O Raul me chama a um quarto, onde damos vinte euros cada a um rapaz, que nos entrega dois saquinhos plásticos com um bom tanto de maconha solta. Descemos a escada, o Raul me entrega a chave do apartamento e diz que nos veremos no dia seguinte, pois vai dormir com a namorada na casa do pai.

Saio do Raval e caio num calçadão central chamado La Rambla — no entardecer de uma quinta-feira de inverno explode em vida, cores e aromas. Uma banda detona, ao ar livre mesmo, um som latino, cosmopolita, que lembra Manu Chao. São sete integrantes tocando diferentes instrumentos de forma alucinada, as letras falando de temas espirituais e revolucionários.

Barcelona me parece uma mistura de Belém do Pará, com sua vivacidade, ares de porto, extensas ruelas de casas centenárias, e talvez o norte da África e o seu clima árido, palmeiras e cactos, vendedores de rua e burburinhos.

Perdido intencionalmente nas ruas labirínticas da Cidade Velha, entro num bar em frente a uma pracinha e peço uma cerveja de comemoração. As paredes exibem pinturas gigantescas e envelhecidas, já descascando, de leões dourados sobre um fundo azul desbotado — o que me faz lembrar, vagamente, de algum filme sobre o Império Romano. No teto alguns ventiladores velhos giram tão devagar que parecem desacelerar o tempo, com o seu rodopiar. Sorrio comigo mesmo ao pensar que a decisão de deixar Londres e seguir viagem foi acertada.

A Larissa aparece em casa no dia seguinte. Conta que há três anos chegou na Espanha com apenas trezentos euros e uma enorme mala, com toda a sua mudança. A história de que iria passar um mês viajando simplesmente não colou na imigração, no aeroporto. Teria sido deportada se o oficial não tivesse simpatizado com ela — tanto que, além de liberar a sua entrada, fez uns xavecos e insistiu pelo seu contato.

Desde então vive apaixonada pela cidade, aprendendo o catalão e trabalhando aqui e ali como vendedora em lojas de roupa. Uma foto num porta-retratos na sala, do ano da sua chegada, revela que Barcelona também mudou sua aparência: as tatuagens e piercings que agora cobrem seu corpo não existiam naquela época.

Apenas nós três e um cão labrador moramos no apartamento, mas em breve um brasileiro e uma brasileira devem alugar os quartos restantes. O Raul está desempregado, vive de seguro-desemprego e passa o dia andando de skate, fumando maconha, ouvindo reggae e, mais que tudo, sorrindo.

O contraste com a casa de Londres é gritante. Amigos aparecem com frequência, num clima boêmio, não há regras e ninguém tem mania de limpeza. O tipo de lugar onde é possível encontrar a ponta de um baseado em qualquer canto. O que é ótimo, mas com consequências engraçadas. Graças a um problema no encanamento da pia da cozinha, supostamente irreparável, toda a água usada para lavar a louça cai num balde, que é esvaziado na privada quando cheio. Os restos de comida lhe dão um aspecto um pouco repugnante.

Antes de chegar a Barcelona criei um perfil no Couchsurfing, seguindo o conselho do Marlon. Além da possibilidade de hospedar e ser hospedado gratuitamente pelo mundo, o site também funciona como ponto de encontro entre viajantes e fórum online. Barcelona é cosmopolita como Londres, porém mais boêmia, mochileira, ensolarada e sensual: o ambiente ideal para uma movimentada comunidade do Couchsurfing. Encontros são marcados todos os dias, pessoas de diversas nacionalidades e todos os continentes combinam de praticar idiomas, escalar montanhas, tomar vinho na praia, fazer piquenique em parques.

Flertando com os milhares de perfis de couchsurfers na cidade escrevo à Marilyn, uma americana que se diz interessada por meditação e trilhas na natureza. Já está em Barcelona há alguns meses e responde que pode me levar para um passeio nas redondezas. O nickname do seu perfil no Courchsurfing é “Highlove”.

Domingo cedinho pegamos o trem para os subúrbios e passamos o dia caminhando entre colinas, florestas, pequenas vilas. Estar ao seu lado na natureza é como entrar num estado meditativo, sem utilizar nenhum tipo de técnica ou substância. Ambos ficamos espantados com essa sintonia e às vezes temos a impressão de nos comunicarmos por telepatia.

Ela tem trinta e dois anos, nove a mais que eu, e uma bagagem cheia de experiências: foi expulsa de casa aos dezesseis, passou um tempo seguindo a banda Grateful Dead, uma espécie de peregrinação hippie nos Estados Unidos, viveu com grupos nômades, em ecovilas, comunidades nudistas e deu aula de ioga até se encontrar como artista plástica. Em Barcelona faz um curso e trabalha com isso.

As histórias que conta são repletas de natureza e seres mágicos, dias de caminhada solitária, em jejum, por densas florestas norte-americanas, na companhia de um cachorro. Seu olhar transmite a dureza de uma vida com algumas dificuldades, misturada à ternura de quem não perdeu a capacidade de amar.

Em total deslumbre com a cidade, e com a nova fase que parece desabrochar, demoro mais que o planejado para começar a buscar emprego. Passo os primeiros dias em Barcelona encontrando amigos de conhecidos de Londres, em encontros do Couchsurfing, fazendo longas caminhadas solitárias pela cidade. Quase todas as manhãs medito no centro zen local.

Aos poucos vou me tornando um malabarista, profissional em curtir ao máximo gastando o mínimo de dinheiro. Compro um bilhete único de metrô por trinta euros que possibilita viajar ilimitadamente pela cidade o mês inteiro. Como é mais barato comer e beber em casa, faço muitas viagens durante o dia: vou e volto da meditação, da entrega de currículos, dos passeios e dos encontros noturnos, para cozinhar ou tomar umas latinhas de cerveja no apartamento.

Os encontros com a Marilyn continuam, dias mágicos na natureza, passeios de bicicleta pelas ruas estreitas de Barcelona. Ela já é bem experimentada no mundo das meditações e me acolhe como amiga e mestra. Muitas inseguranças vieram à tona durante o ano e meio de reclusão e afastamento do mundo, depois da viagem pela Transbrasiliana. Agora, na sua companhia, recupero forças, confiança e inspiração. No alto de uma colina, com vista para boa parte de Barcelona e o mar, um beijo acontece.

Combinamos de jantar na sua casa. Chego com uma garrafa de vinho espanhol, barato e delicioso, e ela prepara pimentões recheados — as duas amigas espanholas com quem mora saíram. A casa é a primeira bela impressão da noite, parece uma encarnação do Mediterrâneo num lar. As largas portas e janelas, que no verão certamente facilitam a circulação de ar, lhe dão um aspecto arejado e fresco. Os antigos móveis de madeira, rústicos, e os vários jarros de barro nas prateleiras oferecem um toque ancestral. Através das portas de vidro é possível ver duas pequeninas palmeiras no jardim, como talvez num palacete mouro de antigamente.

Após o jantar damos uma volta pelo bairro, prestando atenção nos pequenos e belos detalhes da vizinhança. Voltamos com o pretexto de assistir um filme. Impressionado com a limpeza da sua casa comparo, em pensamento, a minha própria casa a um chiqueiro. Entramos no seu quarto e ela liga música. O ambiente é perfumado e a decoração toda new age: cristais, pinturas oníricas, um filtro dos sonhos, livros sobre o tantra, meditação, ioga.

Deitamos na cama para supostamente ver o filme. Quando os beijos e amassos se tornam mais fortes e intensos, ela faz uma pausa e começa a desabafar sobre as feridas do seu último relacionamento. Eu ouço por um longo tempo, me esforçando para parecer interessado nos pormenores da história. Depois, me recebe nos seus braços, corpo, ser — passamos a noite entrelaçados.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com