Para aqueles que estão fugindo #32: O milagre do mundo

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
4 min readFeb 15, 2021

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Desço do ônibus circular numa esquina da avenida Brigadeiro Faria Lima, um dos principais centros financeiros da América Latina, em plena hora do rush. Arranha-céus de vidro espelhado se sucedem como espigas de milho numa monocultura, um fluxo neurótico de carros é todo buzinas, helicópteros cortam os céus zunindo e homens engravatados povoam as ruas. Um suor frio escorre pela testa, o coração bate forte, enquanto me preparo para subir pelo elevador de uma dessas torres negras — será minha primeira aula de Business English a um executivo de uma corretora da bolsa de valores.

Em uma noite bem diferente seis meses atrás, no avião de Mumbai a Londres, a caminho do Brasil, lágrimas escorriam pelo rosto ao final de um filme meloso de Bollywood. Tudo vinha à mente, misturado: os três meses e meio na Índia, o total de um ano e meio rodando, tanta intensidade, entrega, encontros e desencontros, poesia pura. Agora a volta e uma avalanche de sentimentos e pontos de interrogação no peito. Pela primeira vez na vida tenho consciência da carga de expectativa que carregamos.

Ainda sobrevoamos algum deserto da Ásia, mas já sinto a expectativa vindo ao meu encontro, como um fluxo de energia, limitando meus movimentos. Vem da sociedade onde nascemos, de familiares e até dos amigos mais íntimos. Mesmo sutis, silenciosas, essas expectativas faladas ou não faladas tentam nos impor um lugar no mundo, exigem que desempenhemos um papel preconcebido, fingem saber quem somos. Para quem vem de uma longa jornada no desconhecido, de um mundo de relativo anonimato e liberdade, isso chega como uma espécie de prisão.

Por outro lado, coisas que sempre tivemos e nunca demos o devido valor se revelam bênçãos dignas da mais profunda gratidão. Aquele amor de vó — o conforto de ter familiares que se importam com você — é de repente um porto distante e inalcançável quando estamos completamente a sós e com febre num quarto embolorado na beira do rio Ganges. Também por isso uma das melhores partes de viajar é voltar.

Vou morar pela primeira vez em São Paulo, na casa do meu pai, e em menos de um mês consigo emprego numa escola de inglês. E logo vem outra revelação: viajar pode ser uma maneira de abrir os olhos para o milagre do mundo. Caminho rumo ao trabalho no anoitecer de São Paulo, entre o vapor quente dos carrinhos dos vendedores de milho cozido, sobre uma calçada úmida e rachada, a metrópole tropical pulsando em adrenalina, e um quase imperceptível sorriso se forma no rosto.

Ando nas ruas dessa cidade que sempre me pareceu tão cinza e detestável, mas meu maravilhamento é como estivesse na exótica Mumbai — a cidade é a mesma, mas minha percepção mudou. Fica claro que as viagens podem ajudar a desenvolver certa abertura buscada pelos místicos e buscadores espirituais: um estado de fascínio com o mundo, um despertar ou deslumbramento com os detalhes mais simples da existência, antes ignorados ou considerados banais.

Não existe nada mais belo que uma consciência límpida. As revelações dos cogumelos e os arrebatamentos das viagens pelo mundo são, no entanto, insights passageiros. Nunca mais voltamos a ser os mesmos, é claro. Mas, com o tempo, imperceptivelmente, a mente vai retornando aos velhos padrões e tende a perder-se nos labirintos do esquecimento e da confusão.

Com o passar dos meses essa constatação vai se tornando cada vez mais forte, e disso surge uma determinação: mergulhar fundo no zen budismo. Rodar o mundo mostrou que o que buscamos mais ardentemente não pode ser encontrado apenas fora. Aventuras e grandes amores são belíssimos e profundamente enriquecedores, mas, no fim, não resolvem a angústia mais primordial.

E o zen é um caminho para dentro. Um treinamento, uma prática que busca levar a consciência da essência universal — presente em nosso íntimo e em tudo — para o dia a dia comum. A experiência do infinito a cada simples gesto do cotidiano.

Algumas vezes por semana acordo antes do sol nascer e vou praticar zazen num templo no bairro japonês da Liberdade, mas anseio ir mais fundo. Assim amadurece um grande plano, mantido em segredo: trabalhar um ano e meio como professor de inglês em São Paulo, levando uma vida austera, para juntar dinheiro, e depois ir à Ásia. Lá, utilizar a experiência como professor para dar aula de inglês a asiáticos — nas viagens conheci pessoas rodando o mundo e se sustentando com aulas, mesmo não tendo o inglês como idioma nativo. Aí então, com alguma reserva de dinheiro, passar três anos num monastério zen.

Há dois anos tenho em mente um templo específico no Japão. Ouvi falar que o seu fundador foi um rebelde dentro do próprio zen, tentou trazer de volta à essência uma religião que se tornava cada vez mais vazia e engessada no contexto social do Japão. É uma pequena fazenda autossustentável com foco no zazen, onde quase tudo que é consumido é plantado lá mesmo, fruto do trabalho dos seus moradores e visitantes.

A ida para lá não seria, portanto, uma renuncia ao mundo material ou algo do tipo, mas uma tentativa de mergulhar mais profundamente em mim mesmo e no mundo, na vida. E uma preparação para o que está por vir.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com