Para aqueles que estão fugindo #34: Casa

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
12 min readAug 13, 2021

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Caminho, no aeroporto, rumo ao avião e a um destino incerto, o coração batendo estranhamente calmo. Já acomodado na poltrona apertada, no entanto, um batalhão de pensamentos e sentimentos surge do nada e fuzila o peito. Lembro que um ano e meio atrás voltava da Índia com uma determinação clara: pôr em prática o aprendizado das viagens e me preparar para mais uma longa expedição, que começa agora.

Talvez a última grande expedição, pois o objetivo não é só fugir da guerra, mas voltar fortalecido para lutá-la. Essas reflexões, sussurradas pela intuição, são frequentemente abaladas por pensamentos vacilantes, assim como o avião pelas fortes turbulências: o que acontecerá se isso ou aquilo der errado, o que estou fazendo da minha vida?

Vinte e oito horas depois, São Paulo, Salvador, Frankfurt e Milão para trás, entro no banheiro da casa do Roberto, no norte da Itália, e olho no espelho — tudo fica claro. Antes de partir várias dúvidas assombram a mente, a oportunidade é quase deixada para trás, perdida para sempre. Mas quando a decisão é tomada não existe arrependimento. Lembro mais uma vez das palavras de um viajante de longa data: quando nos abrimos para o universo, o universo se abre para nós. E aqui estou, na estrada, com casa, trabalho, comida, música, amigos e, em breve, minha amada.

A casa tem pôsteres de bandas de rock, metal e punk em quase todas as paredes e no teto. Uma cortina de plástico com estampa de folhas de maconha cobre parcialmente uma das janelas. Pelas mesinhas e cantos empoeirados estão montes de bugigangas das mais curiosas. O Roberto e o seu hóspede mexicano me recebem com sorrisos e um belo baseado de maconha orgânica, plantada pelo irmão do Roberto. Eu trago na mochila três garrafas de cachaça, abrimos uma e começamos a beber imediatamente. Toda a ansiedade se dissipa por completo: é bom demais estar em família.

Os dois se conheceram num hostel na Argentina e o Jimmy também veio trabalhar na lanchonete. Tem traços indígenas, é baixinho, troncudo, de olhar esperto. Destila um afiado senso de humor com uma risadinha sarcástica. Está ficando no sofá e eu dormirei no chão.

De manhã vamos ao trabalho, na lanchonete. Fica à beira do lago Maggiore e oferece sanduíche, salada, cerveja, café e sorvete aos banhistas. Meu trabalho é fazer um pouco de tudo, principalmente lavar alface, ralar cenoura, preparar cinco tipos diferentes de salada, limpar o chão. Ganho o dobro que ganhava em Sougia dois anos atrás e não tenho gastos com hospedagem ou comida. A não ser a janta, quando saímos juntos para comer pizza, massas ou delícias árabes num pequeno restaurante de imigrantes egípcios.

O Roberto não sorri tanto como na Bolívia e Peru, tem que se estressar com fornecedores, clientes, fiscalização, compras. Já eu não poderia estar mais feliz: a galera que trabalha na lanchonete — em média três de segunda à sexta, incluindo o Roberto, e até seis nos finais de semana — são amigos entre si, meio malucos, quase todos viajantes. Uma molecada brincando de trabalhar, ouvindo Johnny Cash, Gipsy Kings, fazendo piadas, aprendendo todos os palavrões possíveis em “mexicano” e dançando com as vassouras e rodinhos. Por isso mesmo nos empenhamos e trabalhamos com a alma.

A oferta de trabalho feita pelo Roberto ainda no Peru fez surgir um novo plano. Ficar uns meses na Itália juntando um dinheiro extra e depois seguir à Ásia por terra — e reencontrar a Nefeli no caminho. Trocamos emails apaixonados quase continuamente por dois anos, desde a despedida em Atenas: uma paixão alucinada, espera interminável. Ainda no Brasil a convidei para me encontrar na Itália — demorou um longo mês até a resposta positiva.

No ônibus, a caminho do aeroporto de Malpensa, onde ela deve chegar às nove e meia da noite, ouço Manu Chao pelos fones de ouvido e o corpo todo arde em emoção. À esquerda do ônibus, além da estrada e dos campos dourados, o sol se põe. À direita uma maravilhosa lua quase cheia começa a brilhar na noite que cai. Levo na mochila duas garrafas de vinho, azeitonas, um salgadinho caseiro de alecrim e velas.

No saguão do aeroporto caminho continuamente de um lado ao outro, com passos rápidos, sem parar. Quando os primeiros passageiros saem pela porta automática a respiração paralisa. Ela então aparece olhando à sua esquerda, diretamente no fundo dos meus olhos.

Nos seus braços, um poema do Rumi, que ela certa vez traduziu do grego e me mandou por email, se revela uma profecia realizada: fico mudo. Tenho tanto a dizer, mas fico completamente sem palavras, por minutos. Depois pegamos um taxi até um hotel, onde a dolorosa eternidade de dois anos transforma-se na deliciosa eternidade de um toque.

Nosso lar é a uma barraca no quintal da lanchonete, na beira do lago — só eventualmente dormimos no chão da casa do Roberto, no centro da cidade, a meia hora de carro. Ela me espera sair do trabalho tomando sol, lendo um livro e escrevendo no seu diário; às vezes ajuda na cozinha. Nos dias mais tranquilos saímos com o Roberto e o Jimmy, em alta velocidade no seu carro antigo, o vento na cara, enquanto ele berra para se fazer ouvir — contra a música altíssima — e conta histórias sobre as lendas do country e do folk americano.

Nas noites caminhamos até os vilarejos próximos, jantamos fora, saímos com o Roberto e o Jimmy, ou ficamos em casa e cozinhamos na lanchonete vazia, rodeados por uma natureza de colinas e ciprestes — faz um pouco de frio e o céu se cobre de estrelas. Na barraca, nos protegemos entre cobertores e abraços.

Sinto que são os dias mais felizes e calorosos da minha vida, entre grandes amigos, na companhia do meu amor, trabalhando, ganhando algum dinheiro, comendo e bebendo bem, próximo da natureza. Mas chega a hora de partir e nos despedimos do Roberto, do Jimmy e dos outros com eterna gratidão.

A ideia é ir por terra à Turquia, de onde seguirei para a Ásia e ela à Grécia. Mas antes vamos aos Alpes italianos, a três horas de distância. Depois de descer de um ônibus, subimos as montanhas de carona, no banco de trás de um fusca conversível, dirigido por um casal de cabelos brancos como a neve. Os nossos cabelos voam enquanto sorrimos incrédulos, admirando os picos nevados, as florestas de pinheiros, os lagos azuis.

Na cidadezinha alpina todas as hospedagens estão lotadas. Isso nos obriga a subir, a pé, com a mochila nas costas, por uma trilha de cinco horas. Chegamos com o entardecer num refúgio de alpinistas, no alto da montanha. Comemos polenta, tomamos vinho caseiro e caímos numa estreita cama de beliche, num quarto só pra nós. Completamente esgotados, sem energia para mover um dedo, sentimos nossos egos se dissolvendo num só abraço quente — finalmente em casa.

Viajando de ônibus e carona até a província de Rovigo, no nordeste de Itália, chegamos a uma cidadezinha onde o rio Pó deságua no mar Adriático. Logo de cara um velho italiano embriagado de vinho nos convida para um baseado. Conversamos em espanhol e ele se exibe falando algumas palavras em outras línguas, inclusive o português. Diz ser aposentado da Legião Estrangeira e nos oferece hospedagem na sua casa. Como dormir com a Nefeli na casa de um ex-mercenário bêbado não parece boa ideia, recuso o convite educadamente e procuro despistá-lo.

Sentamos num banco de madeira à beira do rio e abrimos um mapinha turístico, buscando informações sobre camping. No instante seguinte um homem de cabelos grisalhos se aproxima, puxando conversa, e eu utilizo o meu precário italiano para conversar com ele. Aluga bicicletas e já esteve no Brasil pedalando, no Rio Grande do Sul, onde conseguiu se comunicar apenas com o dialeto do Vêneto, ainda falado pela quarta geração de descendentes de italianos da região. Também nos oferece hospedagem grátis, acampar no quintal da sua casa. Titubeio um pouco e finalmente aceito o convite, seguindo a intuição.

Ele nos entrega duas bicicletas e indica os melhores lugares para pedalar: são extensas e lindas planícies, vastos pântanos e, mais ao longe, uma praia deserta, banhada pelo mar Adriático. À noite jantamos na sua casa e conhecemos sua mulher e filhos. Insistem tanto que acabamos ficando quatro noites, ao invés de uma, como planejado.

No último dia ele nos leva de carro até a cidade vizinha, onde compramos passagens de barco para Veneza. Quando tento pagar pelo aluguel das bicicletas ele é enfático: “Eu disse que alugava bicicletas, não disse que alugaria para vocês!”

Sem saber como expressar tanta gratidão, nos despedimos com fortes abraços e palavras de agradecimento. Duas horas depois entramos em Veneza de barco, contemplando o visual incrível. Mas logo nos enchemos das ruas transbordando de turistas e dos altos preços e pegamos um trem para Trieste. De lá, um ônibus a Liubliana, a capital da Eslovênia. Chegamos de noite e saímos pelas ruas procurando hospedagem, orientados por transeuntes extremamente simpáticos, até que conseguimos um quarto num hostel.

Liubliana é adorável, parece saída de um contos de fadas: a pequenina capital tem o frescor da juventude libertária, com intervenções artísticas por todos os lados, o ar do mediterrâneo, uma arquitetura medieval e, com gosto de norte, telhados pontiagudos, maçãs dependuradas em árvores nas calçadas, bochechas rosadas e deliciosas tortas folheadas com canela.

Caminhando pelas ruas, à noite, encontramos uma espécie de ocupação anarquista e artística, do tamanho de um quarteirão. Tomamos cerveja numa sarjeta quando, do bar da ocupação, vem uma batida conhecida: são os Racionais MC’s! Curiosíssimo, vou falar com a DJ e descubro que ela já morou no Brasil. Um tempo depois chega a polícia e leva preso um dos ativistas — o clima fica tenso e voltamos ao hostel.

Um velho trem nos leva a Belgrado. Ficamos só um dia na cidade, andando pelas ruas de paralelepípedo. Do alto de um antigo forte, mirando o encontro entre os rios Danúbio e Sava, lembro as histórias do meu velho avô, com um aperto no coração. Ele foi exilado da Grécia durante a Segunda Guerra e andou por essas bandas como soldado de Tito.

De Belgrado pegamos um trem para Istambul. Vinte e seis horas depois, numa manhã ensolarada, chegamos a uma rica e belamente ornamentada estação, provavelmente remanescente do Império Otomano. Caminhando com a pesada mochila nas costas, à procura de um lugar para passar a noite, contemplo mais uma vez a grandiosa Istambul. Por todas as ruas o comércio fervilha: especiarias, tecidos, queijos, azeitonas, peixes, bugigangas chinesas e uma infinitude de outras mercadorias. A cidade é cortada por um pedaço de mar, o estreito de Bósforo, e salpicada de suntuosas mesquitas.

A riqueza da sua história — batalhas entre impérios, choque de civilizações, milhões e milhões de almas humanas tragadas e esquecidas pela voracidade dos séculos — é sentida na arquitetura: um belo amontoado de cacos de diferentes eras. E pressentida nos olhares intensos, nos múltiplos chamados para prece dos muezins, na cor escura do mar salgado.

Após mais de uma hora subindo e descendo avenidas e ruelas, e uma briga desencadeada por motivos fúteis e favorecida pelo cansaço acumulado, acabamos no Hotel Paris — o Hotel Califórnia não tinha vagas. O chão é coberto por um velho carpete vermelho e o recepcionista assiste a uma novela turca. Por quarenta euros conseguimos um quarto com banheiro e cama de casal. Exaustos depois da longa viagem de trem, tomamos um longo banho cada e caímos na cama, para descansar uns cinco minutos antes de sair para o almoço — não conseguimos nem lembrar quando comemos uma refeição pela última vez.

Apesar da fome e do cansaço, beijos de reconciliação e corpos nus provocam um incêndio, violentos orgasmos. Depois, mais explosões, orgasmos. E então outro incêndio se alastra em novos orgasmos. Beijos e mordidas violentas, unhadas.

Quando finalmente relaxamos e os beijos selvagens se tornam mais suaves, eu fecho os olhos e tenho a visão de um infinito oceano azul, refrescante: sou o oceano e ao mesmo tempo mergulho nele. Então outro oceano, de beleza indizível, inunda o meu ser e o universo inteiro: choro pela primeira vez em anos. Algumas lágrimas com sorrisos dão lugar a soluços guturais — abraçamos e choramos juntos, agarrados.

O estreito de Bósforo divide a cidade de Istambul e o mundo entre Ocidente e Oriente. Para mim são dois caminhos, e agora eu fito ambos, indeciso: o da Ásia e da meditação, e o da Grécia, do Zorba. Há anos não leio Osho, mas uma ideia que ele lançou ao mundo nos seus últimos anos de vida tem visitado a minha mente com frequência. “Zorba, o Buda”, seria a união do materialismo na sua melhor encarnação — o Zorba, simbolizado pelo personagem de Kazantzakis, profundo amante da vida — com a transcendência e desprendimento do Buda.

A humanidade, até agora, teria produzido inúmeras gerações de seres aleijados espiritualmente. As culturas supostamente espirituais tenderiam a considerar a vida de carne e osso como profana, o que resultaria numa automutilação dos nossos centros de energia vital, na negação da vida. Por outro lado, sociedades materialistas demais como a nossa teriam perdido a conexão com o cosmos, com as nossas raízes, e acabado em utilitarismos estéreis, na destruição irracional da natureza, na transformação de gerações inteiras em robôs anestesiados e treinados para fazer girar uma gigantesca e escravizante linha de montagem.

Na busca de Zorba, o Buda, decidi ir ao Japão. Mas agora me deparo com a possibilidade de largar tudo por um grande amor. Ficar na Europa para estar próximo da Nefeli talvez tenha mais de Zorba que de Buda, e o Japão mais de Buda que de Zorba. Não sei, mas deixo o coração decidir.

De um cybercafé em Istambul mando dezenas de currículos para escolas de inglês da Turquia. Como a crise financeira atingiu a Grécia em cheio, talvez lá não seja o melhor lugar para procurar emprego agora. E, se eu conseguir trabalho na Turquia ou Alemanha, poderei ver a Nefeli talvez uma vez por mês, pegando voos baratos, até surgir uma solução melhor. O Bonito e uma colega de faculdade estão morando em Berlim e escrevo a eles.

De Istambul pegamos o trem noturno a Selçuk. Ao invés de visitar as famosas ruínas de Éfeso, passamos o dia deliciosamente trancados no quarto e só saímos à noite, para uma caminhada e uma maravilhosa janta turca. Todos os relatos dizem que é facílimo e seguro pegar carona na Turquia, tanto para homens como para mulheres. Pela manhã, então, estendemos os nossos dedões na saída da cidade. O primeiro carro encosta: são dois jovens turcos.

Parecem simpáticos, mas, juntando as palavras que nós falamos de turco e eles de inglês, não chegam a dez, então conversamos por mímica. Passado um tempo, o motorista sugere que eu dirija e eu ingenuamente aceito, mas a Nefeli me impede na hora — diz que o rapaz não para de encarar ela pelo retrovisor.

Os sorrisos e gestos amáveis então se transformam em atitudes cada vez mais agressivas. Eles repetem a palavra “Turquia” inúmeras vezes, gritando, e dizem “não” ao Brasil e à Grécia. O rapaz do banco de passageiros aponta uma maquina fotográfica na nossa direção, gargalhando. Nesse momento o instinto de sobrevivência e a adrenalina falam mais alto que o medo.

Finjo não entender a situação e discretamente tiro o canivete da mochila, escondendo ele atrás do punho cerrado, com a lâmina para fora. A mente se torna calculista e eu peso as possibilidades, o que fazer em último caso. O do banco de passageiros é magrelo, parece molenga e covarde. Talvez caia com um soco no queixo ou no estômago. O motorista é baixinho, troncudo e tem o olhar muito mais malicioso. Pode dar trabalho, ainda mais se vierem juntos, o que deve acontecer.

Quando finalmente chegamos a uma área habitada grito para pararem o carro. Eles encostam na hora e descemos na frente de um posto de gasolina. Sem ter outro meio de seguir viagem, continuamos pedindo carona.

Uma grande família sorridente, dirigindo um carro velho, nos oferece levar até a sua cidade, no interior. Como está fora da nossa rota, recusamos, mas ficamos imaginando que belos momentos poderiam resultar de uma carona dessas. Finalmente um velho de longos bigodes brancos nos leva no seu caminhão — conversamos somente por mímica e ele sorri o tempo todo. Ficamos numa rotatória e rapidamente conseguimos carona com um homem gordo, de óculos escuros, dirigindo um carro e ouvindo música eletrônica alta.

Ele também não fala inglês e nos deixa em uma rodoviária, onde encontramos um casal de Ancara com mochilas e barraca. Eles nos falam de Kabak, uma praia frequentada por campistas ao sul, e seguimos com eles até lá, de ônibus — a viagem dura algumas horas.

Na descida pela estrada de terra que leva à praia, no fim de tarde, somos surpreendidos pela passagem de uma velha pastora com cajado, seguida pelo seu rebanho de ovelhas. A poeira avermelhada que levantam é cortada pelos raios do sol se pondo, o contraste entre o azul do mar e o verde escuro da floresta de pinheiros ao fundo.

Após alguns dias idílicos de acampamento na praia finalmente seguimos de barco, passando pela ilha de Rodes, a Atenas, onde sou hospedado pela família da Nefeli. Quando chegamos, abro o email com enorme ansiedade e descubro que não há nenhuma resposta das escolas de inglês.

Já o Bonito escreveu me convidando para morarmos juntos em Berlim, e a colega de faculdade — a mesma que, anos atrás, falou de Alto Paraíso ao Dênis e provocou a nossa ida para lá — respondeu dizendo que na noite anterior à minha mensagem sonhou que nos encontrávamos em Berlim. É uma coincidência chocante, pois nunca fomos próximos e não falávamos há anos. O caminho em direção a Buda, à Ásia, terá que ficar para depois. Decido seguir a trilha de Zorba, o Grego.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com