Para aqueles que estão fugindo #36: Não entender pode não ter fronteiras

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
15 min readAug 13, 2021

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Alugo um quartinho na casa de um casal do Couchsurfing no sul de Atenas. É janeiro e o inverno começa a pesar — apesar disso não usamos o aquecedor, para economizar. Durmo de gorro nas noites frias e passo os dias, boa parte deles chuvosos, trancado em casa, traduzindo. Encontro a Nefeli poucas vezes por semana. Ela mora a uma hora e meia de distância, no norte da cidade, está abarrotada de provas e tem que ajudar em casa. Em parte devido a esses desencontros, nosso romance passa por altos e baixos. Assim mesmo o amor cresce e amadurece — sinto cada dia mais que poderia passar o resto da vida com ela.

O clima social também é pesado, com a crise financeira. Um visitante recém-chegado a Atenas talvez não note, num primeiro momento. Os numerosos cafés estão sempre cheios, a cidade vibra. Uma observação mais apurada, no entanto, revela pessoas bem vestidas revirando lixo. Depois, histórias como a da grega que me aluga o quarto: é professora, não consegue emprego fixo e sobrevive dando aulas de reforço. Seu irmão é formado em engenharia e nunca conseguiu emprego na área. No último ano trabalhou como entregador de pizza, a pizzaria faliu e agora está desempregado. O próximo passo é tentar a vida na Alemanha, assim como uma multidão de outros jovens gregos.

Milhares de servidores públicos, que contavam com empregos supostamente garantidos até o fim das suas vidas, são demitidos, com mudanças na legislação. Sem meios de pagar o aluguel e comer, muitas pessoas cometem suicídio — as estatísticas que colocavam a Grécia como um dos países com menores índices de suicídio na Europa agora registram um crescimento brutal de casos. Um homem de oitenta e cinco anos vai à frente do parlamento, na praça Sintagma, e dá um tiro na própria cabeça. O bilhete deixado explica que com a redução da aposentadoria não tinha como se sustentar.

O partido neonazista aproveita o clima de desespero e protagoniza uma ascensão meteórica: todos os dias imigrantes africanos e asiáticos são atacados por bandos de homens brancos vestidos de preto, alguns são assassinados. A Grécia é o caso mais crítico na Europa, mas correm notícias de outros países em situação parecida ou no mesmo caminho — a sensação é de toda uma civilização desmoronando.

Nem tudo são nuvens negras, no entanto. Em meio aos escombros as pessoas vão encontrando pedaços de solo fértil. Ocupações de prédios abandonados funcionam como centros de difusão de arte, de ensino, de integração. Cada vez mais pessoas saem às ruas e plantam hortas comunitárias no centro de Atenas. Outras voltam a suas vilas, ao campo, num êxodo urbano ainda tímido: boatos falam do surgimento de ecovilas, a palavra permacultura parece se espalhar com o vento.

Em meados de março o tempo se torna mais ameno e eu aproveito as manhãs de céu azul para subir a montanha perto de casa, antes de começar o dia de trabalho. Quarenta minutos de caminhada suada, por uma trilha íngreme, levam a uma singela capela ortodoxa. A vista lá é maravilhosa: a vastidão de casas brancas, à direita, revela a metrópole mediterrânea. À frente os raios dourados do sol refletem no grande mar espelhado. Eu estendo o corpo numa rocha, embaixo de uma oliveira solitária, e abro um livro de Joseph Campbell. A leitura, a brisa fresca e a luz da Grécia são como intoxicantes — a alma voa longe.

Desço a trilha sentindo a vida em todo o seu esplendor: seus versos sagrados, presentes em tudo e em todos, são mais fáceis de absorver na forma de raios de sol e promessas de mais vida. Em casa escrevo uma carta virtual ao Eduardo, sentindo uma saudade cheia de felicidade e reverência. Para a minha surpresa, ele está online.

De volta ao Brasil, depois de cinco anos rodando pela Europa, sobrevive da sua música numa cidadezinha litorânea do Rio de Janeiro, acompanhado pela namorada grega, por quem se apaixonou naquele verão em Creta. Buscando uma metáfora para as nossas relações com as mulheres, passo a relatar a história do irmão do Roberto, um jardineiro italiano que construiu uma bela casinha no meio da floresta. Mas a conversa acaba descambando para discussões sobre a arte da vida:

“Gosto da arte pelas forças não humanas que ela possui… Estive a falar disso hoje.”

“Mas a arte pode ser uma canalização humana dessas forças não humanas, não?” — rebato, defendendo a singela arte humana de construir um lar na floresta, dar alguma ordem ao caos.

“Um devir… Uma carona num percepto, um transe humano! Veja a música gitana. Aqueles gritos, aquelas roupas, aquele violão como uma metralhadora… Aquilo é de uma não humanidade belíssima!”

“Mas a gente só se comove com essa não humanidade porque somos humanos… Se bem que, dependendo da intensidade da comoção, a gente se liberta de ser humano,” reconheço.

“Sim. A gente vira arte, vida, potência, criação… Força criadora, movimento, átomo, morte, nascimento, cometa!”

“Cometa…” — concordo com um sorriso invisível para o meu amigo, que digita do outro lado do oceano.

“De qualquer forma, humano é uma classificação. E, como tal, está cercada por limites dialéticos. Há definição… E a vida é indefinível. A coisa, o isto, a eloquência dos silêncios… Para que se diga uma coisa, precisa-se utilizar outra qual não é a coisa em si. Humano: definir-se-á como animal dotado de razão… E bla bla. Mil fumaças. Fumaças.”

“Mas existe comoção, sentimentos, vontades” — insisto.

“São potências. Quanto mais potentes, mais ventosas e vitais. Acender um simples cigarro pode ser mais potente e belo do que gritar hinos de bravura por aí. Há uma questão bonita, libertária, de uma medida… que é a seguinte: as causas às quais sinto vontade por isto e aquilo, sou ‘eu’ senhor de minhas afecções?”

“É uma boa pergunta. Talvez ‘a’ pergunta. Gosto que você realmente vive essas coisas, e não fala apenas por filosofar.”

“Há na filosofia uma beleza inaudita. Não a filosofia distante da vida, filosofia de intelectual de Ipanema. Mas conhecer homens que não se deixam levar por negociatas é um mergulho em conversações belíssimas. Ao fim, a filosofia é a vida… É a maneira de aprender a andar e escapar de hábitos que se desarticulam da vida. A vida é uma arte. A humanidade tenta diminuí-la ao entendimento. Entender é sempre limitado, mas não entender pode não ter fronteiras.”

Uau. “Conhecer homens que não se deixam levar por negociatas é um mergulho em conversações belíssimas…” A frase do meu amigo revolve forte no meu ser ao longo do dia, até que compreendo o porquê. Há meses sinto algo em gestação dentro de mim, e esse algo agora se revela, claramente: é um livro.

Escrever, para mim, é entrar numa espécie de transe: esquecer de mim mesmo, do tempo, da fome, do cansaço e me tornar as palavras jorrando, o fluxo universal, a criação. Realmente, essas são forças não humanas. O artista é um possuído.

Antes de partir para Londres, quatro anos atrás, um amigo inglês, já viajado, me presenteou com uma profecia: “Você vai passar por lugares lindos, paisagens maravilhosas, mas vai acabar esquecendo o nome desses lugares. Já o nome das pessoas que te marcaram, esses você nunca vai esquecer.”

Ele estava certo. No fim e no fundo, o que mais importa são as pessoas. E as mais marcantes e apaixonantes são aquelas que, de uma forma ou de outra, não se deixam levar por negociatas. O livro, então, se revela, todo escrito, já pronto em algum lugar nas profundezas do ser: é sobre essas pessoas que, apesar de tudo e de todos, e delas mesmas, buscam viver o que realmente são.

Logo em seguida, no entanto, mudo para Exarhia e a ideia de escrever é adiada. O bairro está mais próximo da Nefeli, dos cafés, dos protestos, no coração pulsante da cidade. Moro a duas quadras da praça anarquista, onde eu e ela tomamos cerveja com os moradores de rua três anos antes, voltando de Creta. O chão poeirento foi transformado num lindo espaço verde, com hortas, árvores, bancos decorados com mosaicos, um cantinho para cinema e reuniões.

A milenar Atenas se revela uma jovem rebelde e sensual: todos os dias rolam shows, peças de teatro, festivais antifascistas e outros eventos abertos e gratuitos pela cidade, em bosques, colinas, praças, parques. Os frequentes protestos chegam a reunir multidões de centenas de milhares de pessoas. Nas ruas de Exarhia imigrantes africanos e belas jovens gregas se cruzam pelas calçadas.

Elas lembram personagens da Antiguidade Clássica, do Oriente Médio: cachos densos, de um negro lustroso, longos cílios e olhos grandes. A postura é altiva, de quem sabe seu valor, sem traços de arrogância. Sandálias são intricadamente amarradas nas canelas com fios de couro, panos tão mediterrâneos e naturais quanto as oliveiras e as varandas envolvem o corpo. Andam com leveza e graça entre as ruelas grafitadas, o semblante transmitindo dignidade; o olhar, uma discreta sensualidade.

Quando a Nefeli chega em casa e, atrapalhada, deixa os seus cadernos na poltrona velha, eu mergulho os meus dedos nos seus cachos, a minha alma no seu olhar e agradeço ardentemente aos céus, enchendo-a de beijos. Tem em si toda a elegância feminina da Grécia, a profundidade e a poesia da noite, a entrega insana de uma amante apaixonada. Nossos encontros são rituais enlouquecidos e sagrados.

Tento estudar o grego, sozinho, todos os dias. Às vezes vou a uma ocupação anarquista em forma de café para traduzir. A rotina é um pouco solitária, no entanto, e decido ir a um encontro do Couchsurfing para conhecer gente. Converso principalmente com o sírio Mohamad, que teve que fugir do seu país por causa da guerra, e o Raul, um brasileiro da minha idade também descendente de gregos.

Uma semana depois vamos os três tomar cerveja em Exarhia. O Raul depois parte para o Oriente Médio, eu e o Mohamad nos tornamos amigos — de vez em quando saímos para um café ou cerveja, os papos invariavelmente sobre as belezas da Síria, das mulheres, da vida.

Em junho pego um ônibus a Volos, quatro horas ao norte de Atenas. O Pierre me espera na rodoviária. Seu carro velho, ele que usou para dirigir da França até a Grécia dois meses antes, está na oficina e deve estar pronto para a nossa viagem ao Monte Olimpo amanhã. Por isso vamos de táxi até sua casinha no alto da montanha, onde conversamos animadamente por horas, bebendo tsipouro, o destilado do norte da Grécia. Enquanto conta das suas viagens, reparo que o seu olhar se tornou mais sábio e profundo.

A última vez que tive notícias dele, antes de saber que vinha à Grécia para um semestre de mestrado, foi do Quênia, um ano atrás. Na sua viagem de carona em barcos à vela passou meses no Iêmen, pela Tailândia, Indonésia, Timor Leste, um semestre trabalhando como reparador de barcos na Austrália. Viajou por três semanas em mar aberto de lá até a África do Sul e depois subiu por terra até o Quênia, de onde me escreveu pedindo um conselho de amigo — estava apaixonado.

De volta à França, trabalhou num bar por uns tempos e depois começou o mestrado no norte da França. Antes de dormir percebo um livro velho em cima da mesa, do Henry Miller. A história parece fascinante: o relato de uma viagem pela Grécia em 1939. O Pierre não passou das primeiras páginas, entediado com a escrita, e eu ganho o livro de presente.

Saímos com o sol nascendo, na companhia da sua irmã, irmão e uma amiga dos Estados Unidos. Intercalo os papos e a contemplação da paisagem com a leitura do livro, que vai se revelando um dos melhores e mais inspiradores de todos os tempos. Chegamos à base da montanha na hora do almoço e imediatamente iniciamos a caminhada, entre cachoeiras e belas florestas. Após nove quilômetros de subida armamos acampamento na beira de um rio, pouco antes de escurecer. Ao redor da fogueira relembramos Sougia e falamos do Eduardo, com saudade.

No dia seguinte continuamos a subida até o pico, a dois mil e novecentos metros de altitude. De lá descemos diretamente à cidadezinha — chegamos de noite. Num mercado compramos pão, vinho, queijo, frutas, e partimos em busca de uma praia deserta para dormir. Com a fogueira acesa, o céu monstruosamente estrelado, caímos no mar, onde o suor de um dia inteiro de árdua caminhada é lavado.

Aquecido pela fogueira contemplo a beleza do momento: estar com bons amigos na natureza é como se tivesse saído mais uma vez da caverna de Platão para a vida real. De barriga cheia e alegres de vinho, os corpos moídos de cansaço, pegamos no sono um a um. A areia da praia é a cama, o céu estrelado o teto. Acordo com a luz do dia ainda pálida, a bola de fogo vermelha começando a sair do mar. Ao longe, o vulto elegante e pontiagudo do Monte Atos parece emergir da água, lembrando o seu irmão distante, Fuji.

O verão chega a Atenas com dias de até cinquenta graus. Trabalho em casa, com a porta da varanda e as janelas abertas, o suor pingando do queixo. Para economizar, e porque ela tem provas, a Nefeli e eu decidimos viajar por apenas uma semana no mês de agosto. Para a ilha de Samothraki, próxima da Turquia, no norte.

Uma aura de lenda permeia os relatos sobre o lugar, ouço falar de lá desde Creta: das suas belezas selvagens, ruínas de um importante templo antigo, florestas e cachoeiras com piscinas naturais — coisas raras em ilhas gregas, geralmente secas e áridas. Entre essas descrições, uma imagem em particular ficou na minha memória: a radiante visão de “meninas anarquistas de Atenas, de dezoito anos, nadando nuas nas piscinas naturais de águas cristalinas, como ninfas,” descrita pelo John, um ex-operário escocês que passa o verão vendendo artesanatos na vila de Sougia e o inverno no sul da Índia.

Na noite antes da nossa partida saio para comer um gyros vegetariano e reconheço um homem loiro sentado sozinho num pequeno bar cretense, ao lado da praça de Exarhia. É o Raul, de volta depois de meses de viagem. Compartilhamos algumas doses de raki enquanto ele conta dos dias no Líbano, quando suspeitaram que fosse espião, da generosidade e do calor das pessoas de lá — sua barba se tornou mais espessa, o olhar mais intenso.

Diz que anda escrevendo, pretende investir na carreira de escritor. Mergulhamos em conversações belíssimas, inclusive sobre as histórias dos nossos avôs gregos. Seu bisavô deixou uma vila de Creta aos doze anos de idade para vender laranja no meio da selva amazônica, numa época que nem correio existia direito. “Nossas viagens são brincadeira de criança perto do que eles passaram,” diz com um sorriso distante. “Sim,” concordo, com ar grave. Vai à Creta no dia seguinte e nos despedimos com um abraço de amigos que talvez nunca mais se encontrem na vida.

***

Depois de oito dias idílicos na ilha de Samothraki, quase prontos para voltar das nossas férias, estou terminando de ajeitar a barraca recém-desmontada na mochila quando alguém passando pela trilha dá um bom dia vigoroso. A Nefeli responde, “kalimera!”

Faço questão de também dar o meu kalimera a essa figura redonda e sorridente. Ele pergunta por que vamos embora desse lugar tão lindo, fazendo um gesto circular com os braços como que nos mostrando a grandiosidade da floresta. Talvez por eu ser estrangeiro, fala o grego pausadamente e usa bastante linguagem corporal, o que facilita a conversa. Ficamos sabendo que morou dez anos em Samothraki e agora está só de visita. Quando descobre que sou brasileiro fala, com esforço, algumas frases em português, rindo — aprendeu com uma brasileira que passou uma temporada trabalhando na ilha.

Após uma breve e interessante conversa o radiante sujeito pergunta se bate sol na barraca durante o dia — pensa em ocupar o nosso lugar — e se despede. Comento com a Nefeli que é uma pena encontrarmos uma figura assim logo no último dia, mas logo somos interrompidos pela vizinha Dafni. Depois de uma bronca por não termos passado mais tempo com eles, por sermos “muito românticos”, ela nos convida para o café da manhã.

Vindo da praia, o caminho para a barraca da Dafni é uma trilha entre árvores grandes e arbustos rasteiros. No começo há uma “casa” com duas barracas, mesa, cadeiras, louças penduradas nas árvores, brinquedos e outros objetos espalhados pelo chão. Depois a nossa “casa”, uma clareira rodeada por arbustos intransponíveis, sob grandes árvores, e então o fim da trilha, onde dormem a Dafni, o namorado e alguns amigos.

Estão cozinhando com uma grande panela de ferro, na fogueira, uma espécie de polenta doce, servida com mel e canela. O namorado da Dafni, mais ou menos da minha idade, barbudo e bastante bronzeado pelos meses vivendo na praia, está mexendo o cozido e conta que, quando trabalhava de pedreiro, às vezes provava a mistura de cimento. Nesse instante solta um sorriso puro e meio de risada, quase infantil, e subitamente se desfaz a imagem do homem durão e fechado que eu via nele toda vez que cruzávamos na trilha.

Ao lado da fogueira, ao redor de uma mesa de madeira, nuns bancos improvisados, estão sentadas duas italianas, a bela Dafni e o homem que tinha nos dado bom dia na trilha, chamado Yannis. A esposa dele, uma alemã de uns trinta e tantos ou quarenta anos, anda para lá e para cá e toma conta da comida.

Não é difícil reconhecer um verdadeiro mestre — um ser humano realmente vivo — no primeiro instante, então puxo conversa para aproveitar ao máximo a oportunidade. O Yannis, sorrindo, ressalta os valores nutricionais da comida sendo servida: fica até as três da tarde sem precisar comer mais nada. E como é belo Brasil, Grécia, “árabe”, Itália, Alemanha, todos dividindo, compartilhando, mas os governantes não querem isso — faz um gesto com a mão de dividir, criar fronteiras. Outro vizinho, morador da “casa” com as duas barracas e os brinquedos de criança — da sua filha de uns sete anos — aparece nu, conversa alguma coisa em grego, arrota alto e vai embora.

O Yannis brinca que o homem é um aborígine, realmente sabe viver na natureza, e até anda pelado como os índios — a maioria das pessoas nessa área de free camping nada e toma sol sem roupa, mas o “aborígine”, um cinquentão de barba e cabelos grisalhos e cacheados até os ombros, fica nu quase o tempo todo. A conversa vai então aos índios da Amazônia, sobre quem o Yannis assistiu um documentário. Fala deles com admiração, usando um inglês improvisado, às vezes o português e o grego, até o espanhol.

Ele mesmo foi um “índio” na infância, a pele queimada de sol. Na sua vila natal, perto de Xhanti, só de cueca, ia com o jegue e pegava queijo de uns pastores, roubava pão feito à mão — sempre se expressa utilizando o corpo todo e, através de mímica, mostra como o “pão de verdade” era feito. Passava o dia inteiro na praia, sozinho, nadando, em completa solitude, deliciando-se na natureza. A mãe ficava preocupada: onde está o meu filho esse tempo todo. Mas o avô a tranquilizava: eu sei o que o meu neto está fazendo. Ele então sorri para a gente, de modo a expressar a sabedoria das palavras do seu avô.

Mas o pai, com o tempo, o obrigou a ir à escola. Ele tinha notas boas, mas aquilo não era para ele, aquela pressão, aquela falta de vida. Com o tempo o pai dele dizia: você tem que fazer isso, tem que fazer aquilo, era muita pressão. Ele gostava da natureza, da liberdade. Então foi a uma agência em Xhanti e entregou seus documentos, e acabou indo trabalhar num navio de cruzeiro no Caribe, quando tinha dezesseis anos.

Nas suas viagens conheceu praias tropicais e mulheres do mundo todo. Ao contar isso a sua mulher está deitada na rede a certa distância e todos os outros já foram embora. Só resta eu, a Nefeli e o Yannis, com os seus curtos cabelos quase brancos e barriga redonda, seu sorriso também redondo, a pele queimada, os olhos claros e o coração visivelmente aberto. Conta então de uma namorada americana que rasgou todas as suas fotos, por ciúmes.

Sussurra para mim, como se a sua mulher não pudesse ouvir: foto de uma francesa, italiana, tantas mulheres, diz com um orgulho brincalhão, quase infantil. A americana rasgou as fotos, e ele disse a ela: você pode rasgar as fotos, mas as imagens estarão sempre aqui — nesse momento aponta com o dedo indicador para o interior da sua própria mente.

Com o olhar de quem já viveu muito, com certeza muito mais que os seus cinquenta ou sessenta anos, fala com reverência e amor à natureza, e nesse momento a natureza de Samothraki em particular, onde viveu por dez anos, e para onde pensa em voltar.

Aqui não precisa de muito, tem pesca, uma grande horta, e os poucos amigos nativos — a maioria é traiçoeira, só pensa em dinheiro — sempre dão presentes, ovos, ou até um porco inteiro, já cortado e pronto para pôr no freezer. Quando eu pergunto como ele ganhava dinheiro na ilha, fala que ajudava um aqui, outro ali, mas que não precisa de muito. A Nefeli completa dizendo que nas ilhas funciona assim, ajuda na construção, no turismo, na colheita.

Não tem muitas posses, não porque não pode, mas porque não quer, e aponta para a sua “Harley Davidson”, uma mobilete caindo aos pedaços, que usou para vir com a esposa de Xhanti ao porto de onde sai o barco pra ilha, uns cem quilômetros, gastando menos de cinco euros. Os índios, os índios. A verdadeira sabedoria é saber viver em harmonia com a natureza, por isso eles são mais evoluídos que nós, diz.

A viagem de volta a Atenas é longa: duas horas de barco até Alexandroupoli e quinze de trem, fora as muitas horas de espera entre um transporte e outro. Imerso em reflexões, observo através da janela do trem a floresta ficando pra trás, enquanto penso nas palavras do Yannis. As mesmas palavras pronunciadas por outra pessoa ou em outro contexto talvez não tivessem efeito algum para mim — o mundo está cheio de retórica vazia. Mas quando ditas por um Zorba de carne e osso, por seres que pulam em navios para fugir da vida que não é vida, adquirem um brilho completamente diferente, são expressões coloridas e vibrantes da própria existência. Sim, conhecer homens e mulheres que não se deixam levar por negociatas é um mergulho em conversações belíssimas.

Aproveitamos as horas de espera em Thessaloniki, entre um trem e outro, para caminhar na orla. Veleiros brancos e cargueiros enferrujados cortam o mar, gaivotas deslizam no céu azul, piando alto. Sentamos num banco de madeira, de frente para o mar. Tiro da mochila meu notebook e começo a escrever, para aqueles que estão fugindo.

FIM

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com