Pega Ladrão!

Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte
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4 min readMay 17, 2018

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Photo by Benjamin Voros on Unsplash

Na ensolarada tarde de inverno em Barcelona, flanávamos alegremente no cenário colorido da Rambla. Era tão bom o astral que nem cheguei a estranhar quando o rapaz se aproximou sorridente, como a nos dar boas vindas, e passou um braço sobre meu ombro. Teria bebido uns tragos a mais? Seria meio louquinho? Não querendo ser rude, levei na brincadeira.

Mas o sujeito não me largava. Pior: tentava trançar sua perna na minha. Aí, já era demais, e me desvencilhei com um chega pra lá:

Déjame!

Com cara de ofendido, foi embora e se juntou a um pequeno grupo, dez metros adiante. Comentei com minha mulher, e ela:

─ Será que não sumiu nada?

Claro! Ele acabara de bater minha carteira!…

Ladrón! Ladrón! − e disparei berrando na sua direção.

O espertalhão se pôs a correr. Bem mais rápido que eu, lamento reconhecer. Com risco de ser atropelado, meteu-se entre os carros e ganhou a outra calçada. Quando atravessei, ele já tinha embarafustado pelas vielas do Bairro Gótico. Sumiu da vista.

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Na esquina de uma rua que dava para o bairro, ficamos lamentando o infortúnio e também o meu descuido de ter deixado a carteira no bolso traseiro da calça. Mas logo passou correndo outro indivíduo, no mesmo trajeto do larápio. Não entendemos nada.

Então, apareceram dois senhores. Contaram que bem ali na Rambla, uma policial acabara de prender um batedor de carteiras e achavam conveniente irmos falar com ela. Respondi que quem me roubou foi outro, aquele que me superou nos 100 metros rasos, mas os dois insistiram que seria importante uma conversa. Fomos até lá.

Trajada à paisana, ela tinha jeito de universitária. Eu nunca a imaginaria policial, mas devia ser hábil e forte, pois capturara um rapagão sarado e lhe pusera algemas. Afirmou que ele estava implicado no furto, e quando eu já ia dizendo que o gatuno era outro, me mostrou minha carteira − naquele momento, apenas para ter a confirmação de que seria, mesmo, a minha; a devolução ficaria para depois. Aquele rapaz era o cúmplice receptador, a quem o outro entregara a carteira a fim de não a ter consigo, se fosse preso.

Nisso, reapareceu o sujeito que passara correndo por nós. Era, também ele, policial à paisana, e trazia algemado o “meu” ladrão, que finalmente fora vencido por um corredor mais veloz. A dupla estava presa em flagrante.

Informaram-nos que precisávamos comparecer à delegacia para fazer a ocorrência. Era ali perto, fomos andando.

Ao chegarmos, os presos seguiram para exame de corpo de delito, e os dois policiais voltaram para a rua. Não tornaríamos a ver nenhum dos quatro. Na sala, enquanto aguardávamos o registro da ocorrência, escutamos a conversa dos escrivães − referiam-se aos ladrões como “los moros”. Perguntei então se eles não eram espanhóis e fiquei sabendo que não, tratava-se de dois argelinos.

Prestar depoimento incriminando imigrantes é muito desagradável, mas não havia como me esquivar − afinal, foram os meus gritos que desencadearam o flagrante. E sendo bem sincero, eu continuava furioso, menos pelo dinheiro − que esperava reaver com a carteira −, mas sobretudo pela humilhação de me fazerem de otário na via pública. Até na corrida, eu havia perdido!

Interrogado, contei o acontecido. Perguntaram-me quanto levava em dinheiro, respondi que talvez uns 150 euros. Dali a minutos, a carteira reapareceu nas mãos de um funcionário que veio lá de dentro. Na restituição, nova surpresa:

─ O senhor falou 150 euros. São um pouco mais: 180…

Até aí, ponto para a polícia de Barcelona. Mas viria uma nota destoante.

Não haviam me mostrado minhas declarações na tela do micro. Trouxeram-nas já impressas, para assinar. Ao ler, espantei-me com a afirmação de que, ao ser abordado pelo ladrão, logo teria percebido tratar-se de alguém “de raza mora”. Ora, em nenhum momento dissera eu tal disparate, que sequer me passara pela cabeça! E nem estava ali para colocar azeitona na empadinha dos que instigam preconceitos contra argelinos ou outros imigrantes. Só assinei depois que retiraram a expressão.

Ficamos sabendo que os dois amigos do alheio iriam dormir em casa: uma vez fichados, responderiam em liberdade. Nunca soube se foram condenados ou absolvidos, e nem tenho a menor ideia do rumo que tomaram. Reincidiram nos furtos? Tomaram juízo?

De reincidências, só posso falar da minha: tempos depois, voltei a guardar a carteira no bolso de trás, e ela não demorou a ser mais uma vez surripiada.

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Antonio Carlos Boa Nova
Revista Passaporte

Sociólogo. Autor do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”.