Pelas Ruas de Casablanca
Viagem pelo Marrocos, com fotos de Odete Polesi (1/4)
─ Avenida Hassan II? Hmm!… Bem, é melhor seguir em frente, até o segundo feu rouge (sinal de trânsito). Lá, dobrem à esquerda.
A cara não transmitia muita segurança, mas que fazer? Celulares sem bateria, mapa precário, poucas ruas tendo placas com nomes… O jeito era tomar a direção que o homem sugeria.
Com o tempo ameno daquele nosso primeiro dia em Casablanca (e no Marrocos), estava agradável caminhar pela rua. Pelo menos no começo, quando imaginávamos a Hassan II logo ali adiante.
Passáramos meia hora circulando na medina, a cidade velha, e nos perdendo no enrosco de ruelas sinuosas. Talvez tenham sido as medinas que inspiraram o ditado marroquino “caranguejo coxo anda em linha reta”. Pagando uma ninharia, comêramos lá uma broa deliciosa e tâmaras melhores ainda (outra pechincha encontraríamos no dia seguinte, no Mercado Municipal: ostras enormes, saborosas, baratíssimas). Quando minha mulher quis saber por onde era a saída, não tive dúvidas:
─ Ali adiante! − apontei, envaidecido de minha intuição cartográfica −. Está vendo aquela avenida com trânsito? Foi de lá que nós viemos.
Mas não tinha sido. Com as voltas na medina, eu perdera o rumo e estava mostrando uma outra avenida, bem no lado oposto. E ao sairmos por detrás, ficamos longe da Hassan II e da sua linha de bonde.
Andamos uma boa pernada, e nada do primeiro feu rouge − muito menos do segundo! Era um bulevar largo e movimentado, como vários em Casablanca, e às vezes aparecia uma praça rotatória − legados da urbanização implantada sob o domínio francês, na primeira metade do século XX. Talvez acreditassem os franceses que estavam lá para sempre; nas escolas, as crianças marroquinas eram ensinadas a cultuar “os ancestrais gauleses”… E Casablanca seria uma das joias do império colonial. Em outro giro na cidade, ainda iríamos ver fachadas de prédios em que o art déco dos franceses se mesclou com o estilo marroquino, herdeiro das formas geométricas da tradição islâmica.
A certa altura, paramos para tomar chá de menta, costume local. Nas mesas, apenas homens, sozinhos ou em duplas, sentados lado a lado, voltados para a rua. Tomavam chá ou café − os bares abertos para a rua não servem bebidas alcoólicas. Segundo Tahir Shah, escritor britânico radicado em Casablanca, as mulheres marroquinas evitam esses bares por considerá-los redutos do machismo.
Retomamos a caminhada. Nas calçadas, a paisagem humana era diversificada, contrastando tradição e modernidade. Em sua maioria, os homens se vestiam no padrão ocidental, mas alguns usavam a jelaba, espécie de robe comprido com capuz. Como é habitual no Marrocos, muitas mulheres andavam de véu, mas outras sem ele, às vezes no mesmo grupo. Dias depois, já em Marrakech, numa entrada de toalete masculina, notaríamos a figura do homem engravatado, e na feminina, a da mulher com niqab.
Mas sopram ventos de mudança. Teríamos ainda a surpresa de nos deparar, em plena Casablanca muçulmana, com o cartaz de uma escola feminina de artes marciais. Um dia, abrirão academias mistas.
Como nosso destino parecia inatingível, tivemos de reavaliar o plano e voltar a pedir informações a transeuntes. Como dizem os marroquinos: “confia em Alá, mas mantém teu camelo bem atrelado”. Todos se mostravam prestativos e gentis. A cortesia marroquina tornaria a aparecer no dia seguinte, ao tomarmos chá em Le Petit Poucet, bar-restaurante frequentado por Saint-Exupéry, o autor de O Pequeno Príncipe, (aviador no Atlântico Sul, ele fazia escalas na cidade): um cliente que bebia cerveja puxou animada conversa e fez questão de pagar nossa conta.
Depois de vários feux rouges, encontramos por fim a Hassan II e a linha de bonde. Chegamos ao hotel com a língua de fora, mas com a impressão de termos captado uma boa amostra da cena urbana de Casablanca.
A maior atração local é a Mesquita Hassan II, inaugurada em 1993. Sua magnífica localização à beira-mar se inspirou na ideia de que o trono de Alá repousa sobre a água. Comportando 25 mil fieis, figura entre as maiores mesquitas do mundo − e na praça fronteira, cabem mais 80 mil. Na visita guiada, maravilhamo-nos com a amplitude e harmonia dos grandes espaços, vãos livres e cúpulas, e também com o esmero da decoração. Estão ali as três grandes tradições da cultura artística marroquina: nas incrustações em madeira, sobretudo cedro, a herança dos berberes, povo autóctone da região; nos azulejos, a dos árabes, que os trouxeram do Oriente; e nos trabalhos em estuque e gesso, a da Andaluzia, terra muçulmana até o final da Idade Média.
No caminho para lá, tomamos um drinque no Ricks Cafe, réplica do bar onde transcorre boa parte do filme Casablanca (Michael Curtiz, 1942). Como no tempo de sua produção o Marrocos estava sob ocupação nazista, todas as cenas foram rodadas em Hollywood , − e o Ricks do filme foi montado nos estúdios da Warner Bros. Mas o bar de agora faz sucesso, e não faltam casais em sessão de nostalgia, ao som de As Times Goes By.
Celebrado como um dos mais românticos filmes jamais feitos, Casablanca ainda tem fãs. Certa vez, Tahir Shah foi revê-lo no tradicional cinema Rialto. Na saída, conheceu um americano que participava de uma rede de admiradores − ou confraria de devotos − e viajara à Casablanca expressamente para assistir ao filme ali. Encontrava-se, contou, em peregrinação: seguiria depois para Atenas, Nairobi, Katmandu… O fio condutor eram as cidades onde estavam programadas sessões de cinema exibindo o filme. Há viagens para todos os gostos, por mais extravagantes que pareçam…