Personagens de viagem: A spring breaker

Roseane
Revista Passaporte
Published in
3 min readFeb 12, 2018

--

(Foto: Steve Allison)

Eu estava cansada depois de uma manhã dentro de um ônibus, de um encontro divertido pela tarde, de um dia todo comendo muito mal. Antes disso, uma noite inteira dentro de um outro ônibus, um dia cheio de novidades em uma cidade pequena, uma noite mal dormida com aula de salsa, fumaça e muitas risadas em boa companhia. E cansada de tantos dias, tantos lugares, tantas montanhas. Emocionalmente cansada de realizar sonhos. E tão cansada que estava, só desci ao bar, que fazia barulho suficiente para me fazer saber de sua existência, porque era minha última noite no Peru.

Lá estava a spring breaker. Antes mesmo de eu entrar no bar, sozinha, a vi acompanhada de seu copo, de uma ou duas pessoas, aquela risada já se mostrando bêbada ou quase. Uma menina!

Minha entrada no bar foi reparada como a de alguém que sabia o que queria, mas que estava fora de seu ambiente. Alguém que não estava se importando muito com o que pensavam. Uma pessoa séria que provavelmente não daria bola para ninguém ali. Estava sozinha, levemente perdida e pedi um pisco souer, afinal de contas era minha última no Peru.

Então ela chegou e puxou conversa. A spring breaker. Estendeu a mão delicada que não estava ocupada segurando o copo. Disse o nome com voz lenta. Sim, já estava bêbada. E me contou que estaria ali por um mês, que fazia faculdade, que estava viajando sozinha pela primeira vez, que conhecia todos que estavam ali e que sabia que já estava bêbada. Isso tudo ali, na minha frente, eu sentada nos bancos altos, bebericando meu pisco souer que descansava no balcão.

Também puxou conversa com duas garotas que estavam ao lado. Uma húngara e uma alemã. Estendeu a mão, disse o nome, contou novamente que era americana, falou algo sobre a mãe, contou quase tudo o que já havia me contado. E contou que estava quase apaixonada por aquele menino, aquele, aquele ali.

Talvez tenha sido as confissões que nos fez tão abertamente. Talvez a simpatia com que nos tratou. Talvez o sorriso leve alcoolizado. O fato é que logo em seguida estávamos as três com a sororidade desperta e cuidávamos dela. Uma foi ao banheiro quando precisou, outra foi ajudar a pegar outra bebida, outra afastou o rapaz que chegou com medo de que ele se aproveitasse dela. A rede de apoio estava firmemente montada.

Mas bêbada e apaixonada, em pouco tempo só tinha olhos para seu objeto de desejo. E dizia o quanto ele era lindo, o quanto era simpático, olha como é forte, etc. Em seguida dizia que não iria atrás dele, e explicava a razão:

- Eu sou mais bonita. Nós somos mais bonitas. Vocês são lindas. Eu sou de Nova York, eu sei quando uma pessoa é bonita.

E pediu mais um drink, Vodka Sprite. E reparava que ele estava dançando, que ele era muito sensual, que ele era lindo. Mas…

- Eu sou mais bonita. Nós todas somos muito lindas. Eu sou de Nova York, eu sei quando alguém é bonito.

E quebrou o copo em que bebia e pediu mais um Vodka Sprite. E reparava no sorriso do menino, e perguntava o que achávamos. Porque o que ela achava era:

- Eu sou bonita. Nós quatro somos lindas. Eu sou de Nova York, eu sei quando alguém é bonita.

Nós rimos com ela, rimos dela. Acompanhamos seu raciocínio sem acompanhar sua opinião porque o rapaz nem era assim tão bonito como ela achava. E continuamos com a nossa rede de apoio durante todo o tempo em que estivemos ali.

Mas no fim, ela esqueceu que era bonita, que era de Nova York. Esqueceu todas as receitas prontas e abraçou o menino de que estava a fim. Bêbada, muito mais do que antes, dizia coisas que ele nem sequer entendia. Não tivemos força suficiente para fazê-la desistir. A spring breaker se transformou em Felícia-vou-te-abraçar-vou-te-beijar-vou-te-apertar.

Os funcionários do bar conseguiram fazê-la separar-se da vítima e alguém a convenceu de que precisava dormir. E então eu vi a menina bonita, arrumada e maquiada, a menina de Nova York, que sabe das coisas, que é capaz de recuar e de avançar conforme o caso, se transformar. Abaixou a cabeça e seguiu para a porta, rejeitada, amparada e chorosa. Gente como a gente.

--

--